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Carta de Amor a Lisboa: Filipa Martins

Desafiámos alfacinhas com jeito para as palavras a escrever a Lisboa, a cidade do nosso coração.

Escrito por
Editores da Time Out Lisboa
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Técnicas para colar corações

(Carta de Amor à verdadeira Lisboa)

Fui na conversa da Maria Albertina, Tininha com a proximidade, para depois voltar a ser Maria Albertina, quando lhe partem o coração, é assim que ela fala.

‘António, partiste-me o coração’, sempre de olhos fechados.

‘Eu que nada fiz!’

‘Ainda bem que admites’, e cruza o xaile, agita as argolas, segura o peito cheio, vira o corpo e, já de costas, ‘Partiste-me o coração, António’.

E, irra!, o coração de uma fadista é feito de porcelana importada e não há flores ou carinhos que lhe colem os cacos.

Mas fui na conversa da Maria Albertina, que me encheu os ouvidos com a ‘modernização da oferta de restauração do bairro’ e as teorias de fusão do tradicional e do moderno e como devemos ter uma oferta aconchegante, mas arejada, sofisticada, porém descontraída, preservadora dos sabores tradicionais, mas aberta a novos ingredientes, respeitadora das minorias, dos que comem bifes ou se benzem ao verem um enchido a escumar gordura.

‘Não estamos bem como estamos, Tininha?’

‘Não me chames assim, António. Tenho o coração partido, António.’

Que mal tem a taça dos Pastéis de Belém, à entrada, ganha pelo clube com mérito? Que mal tem a fonte de marisco na montra? Se as crianças se debruçam para experimentarem o picar dos caranguejos. Que mal têm as toalhas gastas e os tecidos às flores? A loiça desigual e os copos riscados? O vinho é bom e vem da terra. É o que interessa. Que mal tem o retrato da Severa, tão parecida contigo que até mete medo? E os dizeres pendurados que rimam fiado com pecado? Que mal tem?

Mas fui na conversa. Despi as paredes como acontece com as árvores. Os diplomas. Os calendários. As santolas da Bordalo Pinheiro guarnecidas com cebolas de loiça. Pedi aos músicos mais atenção nos modos, que deixaram de palitar os dentes ao ritmo da guitarra. Mudei a ementa. Anunciei numa placa de ardósia comida vegetariana em cinco línguas. Encomendei nova placa para substituir Suxi por Sushi. Tenho um cozinheiro brasileiro que corta peixe como um japonês, dois ucranianos a tocarem guitarra portuguesa e um chefe de sala com conhecimentos de línguas adquiridos nos McDonald’s da Europa. Sirvo cabrito com mandioca e não há cozinhado que não leve um fio de vinagre balsâmico, labiríntico no prato, para preencher o espaço que antes era ocupado pela comida. A Tininha já palreia em cinco línguas, debruça-se em demasia sobre as mesas dos clientes, e isto me dizem os olhos e não o ciúme, e já não há o respeito de outros tempos perante a frase ‘silêncio que se vai cantar o fado’.

Portuguesa é a palavra saudade. Eu sinto falta da sardinha no pão. Agora, comem peixe cru e cantam de olhos abertos. Um dia, trespasso a casa de fados e aprendo a colar corações.

Filipa Martins, Escritora

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