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Beatriz Rodrigues, do Ursula Reading Club, com duas estantes atrás de si e um livro a tapar-lhe a cara
© Francisco Romão Pereira / Time OutBeatriz Rodrigues é a fundadora do Ursula Reading Club, um clube de leitura dedicado a sci-fi feminista

Clubes de leitura. “Quando nos sentamos em roda percebemos o poder do encontro”

Os clubes de leitura estão a multiplicar-se. Fomos ao primeiro encontro do Ursula Reading Club e saímos com a sensação de que, mais do que ler, é a partilha que importa. À conversa com leitores de outros clubes, confirmámos a suspeita.

Raquel Dias da Silva
Escrito por
Raquel Dias da Silva
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Este artigo foi originalmente publicado na revista Time Out Lisboa, edição Inverno 2023/2024.

Beatriz Rodrigues esteve envolvida no movimento anarquista durante anos. A certa altura, afastou-se para arejar as ideias e ficou a pensar como poderia juntar o interesse pelo activismo social e político à paixão pela “ficção especulativa libertária, esperançosa e cozy”. Agora que descobriu a pólvora e fez nascer o Ursula Reading Club, a ambição é juntar pessoas para conversar sobre como a literatura feminista também é uma ferramenta para projectar futuros. “A Ursula K. Le Guin dizia que temos tendência a achar que a forma como vivemos é a única forma possível”, conta, antes de nos assegurar que esse preconceito está longe de ser verdade. Autoras de ficção-científica como Octavia E. Butler, Becky Chambers e a própria Le Guin, que inspira o nome e o manifesto do seu clube de leitura, têm passado muito tempo a escrever sobre outros modos de habitar o mundo. Basta abrir os seus livros para nos confrontarmos, não com uma, mas com várias alternativas.

Na sessão de inauguração, na Tigre de Papel, em Arroios, contamos uma dúzia de pessoas. A mais velha tem 70 anos, as mais novas andam na casa dos 20. Beatriz tem 34. Nem todas adoram ou são leitoras assíduas de ficção-científica. A maior parte está familiarizada com o género, até mais por c ausa do cinema e da televisão, como é o caso de Maria Duran Marques. “O meu pai tinha umas cópias da Guerra das Estrelas, mas só comecei a ler ficção-científica com uns contos de Asimov. Foi aquele clássico de ler I, Robot e começar a pensar como é que o mundo foi construído e as relações de poder que o sustentam. Depois descobri a Ursula, por me ter sido recomendado The Left Hand of Darkness [A Mão Esquerda das Trevas, na tradução da Relógio d’Água]”, revela a jovem de 25 anos, que considera os livros de Le Guin “potentes, às vezes prescientes”.

Clube de Leitura de Poesia
© Francisco Romão Pereira / Time OutClube de Leitura de Poesia

É a primeira vez que Maria participa num clube de leitura sem ser em contexto académico. Tomou conhecimento através do Instagram e ficou logo rendida à possibilidade de, por um lado, discutir ficção-científica a partir de leituras feministas; e, por outro, de explorar a obra de uma autora que tanto admira. “A partilha de pareceres é interessante, mas mais ainda é a criação de um espaço-lugar onde as temáticas dos textos são abordadas com peso e clareza. É necessário, como Le Guin propôs, acreditar em formas de criar novas e mais igualitárias possibilidades do real. O mundo é difícil de mudar e a literatura não salva ninguém dos tempos em que se vive, mas um clube de leitura parece-me um bom lugar para começar.”

A proposta é simples. Todos os meses define-se um tópico inspirado na obra de Le Guin e, a cada encontro, apresentam-se textos de ficção-científica ou de não-ficção que se relacionem com o tema em discussão. Pontualmente, pode haver uma ou outra sugestão de contos ou ensaios curtos para reflexão conjunta, como Aquelas Que Abandonaram Omelas, do livro de Le Guin O Dia Antes da Revolução e Outros Contos, editado pela Barricada de Livros. “Espero que as mulheres e as pessoas queer portuguesas percebam que existe espaço para nós na ficção-científica. Há muito tempo que deixei de ler homens brancos, mas a maior parte da ficção-científica traduzida em Portugal é muito masculina e imperialista”, lamenta Beatriz, que tem encontrado conforto no chamado hopepunk, um sub-género literário que destaca o papel da cooperação na luta por mudanças positivas.

Pilha de livros de Ursula K. Le Guin
© Francisco Romão Pereira / Time OutSugestões de leitura do Ursula Reading Club

“Segui-la [a Beatriz] no Instagram foi talvez dos momentos mais transformadores da minha vida”, confessou-nos Ana Sofia Lopes, a uma semana do segundo encontro presencial – também há sessões online e a quarta ronda deverá ser marcada para Maio (basta ficar atento ao Instagram de Beatriz Rodrigues). “Em geral, sinto que leitores de sci-fi se sentem um pouco sozinhos”, confessa a estudante, que adorou ouvir quem já lê o género há algum tempo, como o editor Mário Rui Pinto, da Barricada de Livros, que se juntou ao clube. Por outro lado, conhecer outras pessoas – e reconhecer nelas os mesmos receios – fê-la sentir-se acarinhada. E a verdade é que esta sensação de estarmos acompanhados, não no espaço mas na experiência, é ao que parece o grande atractivo dos clubes de leitura que se têm multiplicado por Lisboa.

O poder da partilha

“O acto da leitura é solitário e silencioso, pelo menos assim o entendo. Mas quando nos sentamos em roda percebemos o poder do encontro na partilha da palavra; passa do espectro individual para o colectivo, e é aí que reside a magia”, afirma Alexandra Melão, que vive em Beja, mas frequenta – através do Zoom – o clube da livraria Greta, nos Anjos. A cada dois ou três meses, Lorena Travassos, fotógrafa, investigadora, professora e livreira, reúne um grupo interessado em teoria feminista para falar de obras como Feminismo Decolonial, de Françoise Vergès. Para participar, é preciso inscrição e o preço, que varia, inclui o livro em discussão ou, se já o tiver, um vale para comprar outro título. “A ideia é discutir o que os textos despertam em nós e falarmos sobre como trazemos ou podemos trazer a teoria para o dia-a-dia”, esclarece Lorena. Para Alexandra, tem sido “uma experiência de desconstrução e inclusive terapêutica”.

clubes de leitura em que, ao contrário do que acontece no Ursula e no Greta, as leituras se fazem mesmo em conjunto. Mas o objectivo maior continua a ser, mais do que ler, criar oportunidades de diálogo, que quebrem a correria da vida e a cultura de consumo sem pensamento. “Estar neste clube é como estarmos sentados no sofá a falar sobre os dias que correm, mas em formato de poema”, diz Cátia Almeida, que é membro do Clube de Leitura de Poesia, promovido pela Casa Fernando Pessoa e a Biblioteca-Espaço Cultural Cinema Europa. “Saio a correr de casa para não perder pitada do que lá se passa”, revela. “Pode parecer um exagero, mas valorizo cada palavra que é ali partilhada.” Não é a única. Isabel Machado, que coordena esta biblioteca, garante-nos que o sucesso é tal que até há uma lista de espera.

pessoa a segurar um poema de Raquel Serejo Martins
© Francisco Romão Pereira / Time OutRaquel Serejo Martins foi uma das poetas trabalhadas no Clube de Leitura de Poesia

“Desde Março que dinamizo o clube em parceria com a Teresa Monteiro, da Casa Fernando Pessoa. Foi necessário exigir inscrições, por causa da lotação dos espaços, e também para manter o vínculo do grupo, que tem entre 12 a 15 pessoas fixas. A mais nova tem 22, a mais velha quase 80”, diz Isabel – mas, nesta nova temporada, em 2024, os encontros do Clube de Leitura de Poesia são de entrada livre, ainda que sujeita à lotação dos espaços. “Numa fase mais final, trabalhamos a leitura em voz alta com a Teresa Lima, que é uma profissional da arte de dizer, para fazermos uma partilha pública, muito informal, sobre os poetas que fomos analisando. Começámos com António Ramos Rosa, Ruy Belo, Luísa Neto Jorge e já vamos em poetas como Vasco Gato, Raquel Serejo Martins e José Carlos Barros, que escrevem no nosso tempo.”

O entusiasmo e a felicidade de descobrir coisas diferentes através dos outros – incluindo novos favoritos – é comum tanto a Cátia como a Isabel. “Isto é quase um grupo de amigos”, brinca esta última, acertando na mouche. A actriz Nídia Roque, do Teatro da Cidade, que co-dinamiza um clube de leitura de teatro, diz-nos o mesmo: “É um encontro que todos gostaríamos de ter com os nossos amigos.” Neste caso, tem lugar no Teatro da Politécnica, no Príncipe Real, e chega a juntar até 40 pessoas (a veterana é Joana Terlica, com mais de 70 anos, que a seguir à primeira sessão já estava a enviar um e-mail a agradecer). “É muito bom”, remata Nídia, “termos este tempo para, juntos, descobrirmos textos. No dia-a-dia acaba por ser mais difícil, porque ler teatro não é a mesma coisa que ler um romance e é muito melhor ler uma peça acompanhados do que sozinhos.”

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