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Livros antigos não são coisa do passado. E estes alfarrabistas modernos provam-no

Ao lado de alfarrabistas antigos, convivem hoje novos vendedores de livros usados, que trazem novas propostas com eles. Fomos descobri-los e ouvir o que têm para dizer sobre este novo velho ofício.

Beatriz Magalhães
Escrito por
Beatriz Magalhães
Jornalista
Pedro Castro e Silva
Sara Hawk | Pedro Castro e Silva, da Livraria Castro e Silva
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Este artigo foi originalmente publicado na revista Time Out Lisboa, edição 673 — Primavera 2025

Ser alfarrabista tem muito que se lhe diga. Não se trata apenas de comprar livros usados, mas também de saber procurar e seleccionar. Trata-se de saber que os livros depois de lidos uma vez continuam em perfeitas condições para serem lidos mais duas, três ou dez vezes por mais duas, três ou dez pessoas. E trata-se de saber cuidar. Alguns dirão que ser alfarrabista é uma arte, mas uma arte que vai evoluindo e se vai transformando ao longo do tempo. Foi o que aconteceu com a Livraria Castro e Silva, que abriu em 1957 no Bairro Alto, ou com a Ulmeiro, que nasceu em 1969 em Benfica. Outras, que foram surgindo nos últimos anos, já encontraram um mercado diferente, como é o caso da Leituria, da Stuff Out, da Re-Read ou da Ecolivros. A premissa é a mesma, ainda que estes últimos não se sintam na posição de se auto-nomear de alfarrabistas – preferem antes livreiros de livros usados. É sem dúvida um novo tipo de alfarrabismo, que não se prende a nichos de mercado, nem sempre se faz numa livraria e que vai ganhando popularidade.  

Pedro Castro e Silva cresceu no meio dos livros antigos. O avô fundou a Livraria Castro e Silva e o neto foi para lá trabalhar aos 15 anos. “Antigamente, havia muito menos oferta. Havia mais alfarrabistas, mas os alfarrabistas também só trabalhavam com um determinado tipo de livro. Não trabalhavam com tudo, escolhiam muito, ou porque não tinham espaço, ou não tinham possibilidade”, recorda. À medida que foi ficando no ramo, tendo-se entretanto tornado proprietário do negócio de família, o panorama foi mudando e as estantes começaram a dar lugar a todos os géneros literários, a livros mais e menos antigos.

Livraria Castro e Silva
Sara HawkLivraria Castro e Silva

“No princípio, quando era mais novo, decidi especializar-me em livros raros. Depois, com o tempo e com as oportunidades que foram surgindo, acabei por começar a trabalhar com todo o tipo de livro.” A sua mais recente livraria, que abriu no final de 2024 na Avenida Almirante Reis, é prova disso. O espaço amplo, que em breve se estenderá ao piso inferior, abarca títulos a perder de vista. Encontramos ficção literária, infanto-juvenil, romance ou até literatura técnica. “Portugal não tem muita escala, é um país relativamente pequeno, e temos de trabalhar com todo o tipo de livro. Em Portugal, o alfarrabista tem essa característica que é trabalhar com tudo. Se se especializar, tem mais dificuldade”, acredita Pedro.

Vale tudo

O mesmo acontece na Re-Read, cadeia espanhola de compra e venda de livros usados que chegou a Lisboa, mais concretamente à Avenida de Roma, em Novembro de 2024. Aqui, todos os livros são bem-vindos, não importa o género ou quantos anos tem. E todos os exemplares têm o mesmo valor. “Para nós, os livros têm todos o mesmo valor na compra e na venda. Nos alfarrabistas, não é bem isso que acontece, há uma variação de preços grande. Temos um modelo mais transparente e acho que ganha pela sua simplicidade, aliada ao conforto e bem-estar de uma livraria bem organizada”, garante Inês Toscano, proprietária da Re-Read lisboeta. Cada título é comprado por 25 cêntimos e o preço de venda vai dos 4€ aos 15€, dependendo de quantos livros compre – se um ou cinco. Dois, por exemplo, ficam por 7€.

Tal como a Re-Read, outras livrarias de segunda mão, como a Stuff Out e a Ecolivros, também não olham a género. “O que queríamos era um negócio ligeiramente diferente [do alfarrabismo], não queríamos especializar-nos num nicho de mercado, não queríamos trabalhar só com livros de valor acrescentado e coisas antigas. Queríamos trabalhar com todo o tipo de livros que existem no mercado”, diz Rui Castro Prole, da Stuff Out. Encontra-se de tudo – “livros desde 1,20€ a livros antigos e raros, como uma primeira edição da Mensagem ou da Peregrinação, e textos do século XVI e XVII que são coisas para milhares de euros.”

Inês Toscano, proprietária da Re-Read
RITACHANTREInês Toscano, proprietária da Re-Read

A Ecolivros, criada por Frederico Felicíssimo, segue a mesma lógica. Os livros são geralmente comprados a quem se quer livrar das suas bibliotecas pessoais, muitas vezes em lotes de centenas ou milhares de edições, que podem custar cerca de 500€. “Tento seleccionar os livros que sei que são bons e que as pessoas estão à procura, porque às vezes compro lotes e é um bocado ao calhas. Outras vezes, vou aos sítios e posso escolher os livros. Às vezes, é preferível pagar um bocado mais pelos livros e ter uma selecção feita do que ser tudo ao calhas, porque depois muitas coisas vão para o lixo”, sublinha Frederico. Os preços também variam – há livros a 5€, 10€ e 40€. 

Analógico ou digital?

A Leituria, por sua vez, dedica-se à ficção, poesia, história, arte e ciências sociais, sendo que a política de preços é a mesma das anteriores. Consoante as especificidades de cada exemplar, podem ir dos 5€ aos 400€. “Às vezes as pessoas contactam-nos, ou nós procuramos aqui ou acolá, e tem sempre de haver uma triagem. Sou livreiro desde 1996 e há um conhecimento que se vai adquirindo ao longo dos anos, por um lado literário e, por outro, do mercado livreiro em si. É saber que determinados livros ou autores que já não estão disponíveis podem ter mais valor ou mais procura”, diz o proprietário Vítor Rodrigues.

A livraria abriu em 2019 na Estefânia, mas, devido a um conjunto de razões pessoais, desde o final do ano passado passou a funcionar apenas online. “Hoje em dia, embora continue a ser importante ter uma loja física, há uma dificuldade óbvia e, muitas vezes, inultrapassável que é a questão do valor das rendas de espaços comerciais em Lisboa. Qualquer local minimamente bem localizado que não tenha só dois metros quadrados tem custos incomportáveis para negócios de rotação lenta, como é o caso dos livros em segunda mão”, nota Vítor. Por outro lado, “não há um negócio que não tenha de dar atenção ao online”, acredita. A Castro e Silva e a Ulmeiro, por exemplo, também têm sites.

Livraria Stuff Out
Sara HawkRui Castro Prole, proprietário da Stuff Out

 

E até há casos em que a loja online chegou mesmo a surgir antes de um espaço físico. Rui Castro Prole despediu-se do seu emprego na área da banca e começou a utilizar a garagem da mãe para armazenar os livros que depois vendia em feiras ou mercados. Estava a Stuff Out pronta a abrir portas quando, em 2020, soaram os alarmes de uma pandemia. “Fomos todos para casa e aí o negócio acabou por mudar bastante, porque nos tornámos maioritariamente online, uma coisa que nos acompanha até hoje”, explica Rui. Na altura, acabou por criar um site próprio, já que as opções que existiam neste campo não eram as melhores.

“A minha sensação era que não havia uma boa solução tecnológica para o mercado de segunda mão, porque não há uma forma fácil de digitalizar livros em segunda mão e também não existem soluções de raíz. As alternativas que existem em Portugal, como o OLX, o Facebook Marketplace, a Vinted mais recentemente, a Trade Stories, são tudo plataformas de marketplace, em que os consumidores estão a interagir entre si”, o que levanta problemas, como a falta de garantia de que aquilo que se está a comprar é exactamente o que está a ser anunciado ou a impossibilidade de fazer devoluções. Para Rui, este tipo de sites não substitui o trabalho da Stuff Out, que vai da avaliação e compra ao embalamento, triagem e separação por categorias, temas e estados de conservação.

Livraria Stuff Out
Sara HawkLivraria Stuff Out

Depois, vem a questão da acessibilidade. A livraria fica perto do Príncipe Real e, por isso, quem é do centro de Lisboa não demora muito tempo a lá chegar, mas para quem vive fora da capital ou mesmo em aldeias ou vilas mais recônditas, o site da Stuff Out é a forma mais fácil de chegar aos livros já lidos. “Vendemos o mais barato possível, tendo em conta o valor de mercado de cada livro, e queremos chegar a todo o país, independentemente de a pessoa viver numa vila, aldeia ou no centro de Lisboa. E isso tem a ver com o facto do nosso site ser o mais acessível possível”, afirma, realçando que muitos clientes são de pequenas localidades, que chegam ao site da livraria em segunda mão através da página no Facebook.

Na Ecolivros, as dificuldades no início também se prenderam ao nível das vendas online. Numa arrecadação de quatro metros quadrados, que guardava quase dois mil livros, Frederico começou a fazer as suas vendas através do OLX e da Vinted. O processo de colocar cada livro à venda, manualmente, tornou-se demasiado moroso. E então a Inteligência Artificial entrou na equação. “Eu uso a biblioteca de dados do ChatGPT, a OpenAI, para fazer programação. Integra uma linguagem de programação que é um script e que vai buscar os dados necessários às fotografias, como o título, a edição, etc.. Em 100 livros, pode haver um ou dois que falhe”, explica. “Poupa-me oito horas [por semana]. Provavelmente noutras livrarias ou alfarrabistas, precisa de haver dois ou três empregados para fazer tudo, tirar as fotografias, fazer os envios… Eu, sozinho, estou a conseguir fazer isto porque tenho a IA a gerar esses anúncios.”

Mais do que livros nas estantes

O site da Ecolivros foi lançado em Dezembro de 2024, mas Frederico não se ficou por aí. Decidiu concretizar um sonho que já trazia consigo desde os tempos do OLX, em 2023, e abrir uma livraria, na zona de Miraflores. “Diria que hoje em dia até é mais rentável [uma livraria] manter-se só online. Se fosse inteligente, tinha-me mantido só com o online, mas queria ter o contacto social, mais contacto com os clientes”, diz, prevendo que a livraria também venha a receber lançamentos de livros, pequenos concertos ou outros eventos, o que não é muito diferente do que acontece com outras livrarias que vão abrindo ou reabrindo na cidade.

Frederico Felicíssimo, proprietário da Ecolivros
Rita ChantreFrederico Felicíssimo, proprietário da Ecolivros

 

A Ulmeiro abriu em 1969, em Benfica, e partir da década de 1980 enveredou pelo alfarrabismo. Quando a livraria-distribuidora de José Ribeiro fechou em 2016, a surpresa foi geral. Acabou por se mudar para a Fábrica Braço de Prata, sítio onde se mantém activa até hoje, e há cerca de um ano regressou à Avenida do Uruguai, numa parceria com a Junta de Freguesia de Benfica. E não regressou apenas como livraria, antes como uma associação cultural, onde quem entra encontra mais do que livros à venda. “Agora, nós somos uma associação cultural, mas na prática sempre fomos”, defende José Ribeiro. 

Na agenda, em que se incluem várias actividades culturais ligadas à literatura e à leitura, o livreiro e editor destaca as sessões pensadas para as crianças que, com a reabertura, foram uma das grandes apostas. “O livro deve estar ao alcance dos miúdos. Eles só serão leitores se tiverem acesso aos livros, se puderem ouvir histórias, pegar nos livros, se puderem ter contacto com os livros. É a parte que eu acho mais importante. É um trabalho de agricultor, é pensar que, ao continuarmos assim, a semente da leitura vá germinando lentamente e que chegue um dia à casa desses miúdos.” Para o proprietário, é uma oportunidade de fazer deste espaço “uma espécie de pólo cultural”.

Aberta há menos tempo, a Re-Read tem a mesma vontade de criar um lugar onde as pessoas se podem encontrar, quer seja para ler, trabalhar ou só para estar. É aqui que Inês Toscano conta dinamizar diversos tipos de propostas. “Já fomos abordados para palestras de escritores e lançamentos de livros. Temos de decidir quais é que fazem sentido. Um dia também gostaríamos de criar uma hora de conto. São tudo ideias que temos, vamos fazendo uma de cada vez e avaliando o impacto”, avança. Em Abril, está marcada a primeira proposta – um clube de leitura –, que “para já, está a ter uma adesão óptima”.

Espaço Ulmeiro
© Francisco Romão Pereira / Time OutNa cave do Espaço Ulmeiro

Na verdade, tal como a própria livraria. “Desde início, continuam a vir pessoas novas, que ouviram falar por amigos ou pelas redes sociais, e que ficam impressionadas com o nosso espaço”, diz a proprietária. Entram, percorrem as estantes, folheiam e muitas acabam a encontrar aquele livro que andavam há séculos à procura. O interesse não diminuiu e Inês não é a única que o nota – também o notam Vítor Rodrigues, Pedro Castro e Silva, José Ribeiro e Rui Castro Prole.

O primeiro acredita que se deve, principalmente, ao preço mais baixo dos livros em segunda mão: “As pessoas compram em função do preço, porque muitas vezes não têm outra opção. Têm que, de facto, gastar o menos possível e, portanto, esse é o principal filtro que usam para comprar aqui ou acolá. E não é por acaso que as grandes cadeias são aquelas que estão sempre a promover descontos e o melhor preço.” Por outro lado, é uma forma de chegar a livros ou edições que já não se encontram no circuito dos livros novos e que o alfarrabista, ou livreiro de livros em segunda mão, terá, à partida. 

Livro usado que cheira a novo

Já Pedro e José verificam que há um maior interesse na leitura, especialmente nos mais jovens. “Ao contrário daquilo que as pessoas de uma forma geral pensam, que as novas tecnologias vinham ter uma influência tremenda e que ia andar tudo à volta dos telefones, as pessoas lêem. Evidentemente têm telemóvel, mas o espaço do livro físico, do livro em papel não está em risco, nunca esteve e jamais estará”, acredita o proprietário da Ulmeiro. O dono da Castro e Silva concorda – “É um mito urbano. Os jovens interessam-se cada vez mais por livros, ao contrário do que se pensa. É uma ideia feita, os livros vão sempre existir.” E, aliás, sublinha como “há menos preconceito em comprar um livro usado e mais o gosto, até pelo cheiro dos livros antigos.”

Ecolivros
Rita ChantreEcolivros

É também o que destaca Rui Castro Prole – hoje cada vez mais pessoas preferem comprar livros em segunda mão, não por necessidade, mas por questões ecológicas ou até como um statement. “Antigamente era visto como velho e agora tem mais valor. Há aquela coisa de um livro contar as duas histórias – a que está dentro do livro e a do seu percurso desde que foi comprado até chegar às tuas mãos.” 

Para o livreiro, quanto mais livrarias houver, melhor. Mais antigas ou mais novas, com livros usados ou novos, com ou sem um site, com mais ou menos programação cultural. “Ter uma livraria de segunda mão, ou primeira mão, é sempre um acto de resistência. Ninguém está aqui para ficar rico. É um negócio que se faz por gosto à leitura e por ver o mundo a abrir mais, as pessoas a ler mais e os livros cada vez mais acessíveis”, remata.

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