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Samotracias
João Catarino

No Teatro Ibérico há migrantes em trânsito e “uma ânsia de chegar"

Num espectáculo a três vozes e três línguas, há um coro (ou um grito) de vontades e sonhos por uma vida melhor. ‘Samotracias’ estreia-se este fim-de-semana.

Joana Moreira
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Joana Moreira
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Paris, 2014. Do outro lado da rua onde mora, na banca de um alfarrabista, Carolina Santos encontra o livro de Nicole Caligaris, Les Samothraces. O texto, publicado em 2000, faz um retrato da feminização das migrações, com histórias de mulheres migrantes, anónimas em países também eles nunca nomeados, que viajam com esperança, mas sem a certeza de chegar. “Era na altura uma migrante privilegiada, a trabalhar, mas havia palavras que me estavam a tocar de uma maneira muito profunda”, recorda hoje à Time Out. “Decidi que um dia mais tarde, quando tivesse possibilidades, este livro teria de ir a cena”. Esse dia chegou. A 12 e 13 de Novembro sobe ao palco do Teatro Ibérico Samotracias, uma produção colectiva e internacional integrada no festival Solos Ibéricos.

Carolina Santos, da Mákina de Cena, Letícia Blanc e Ulima Ortiz começaram a desenhar o espectáculo em 2021. “Na altura ainda nem tinha explodido a guerra na Ucrânia, havia um outro contexto”, lembra Carolina, uma das três criadoras que agem também como intérpretes do texto dramatúrgico trilingue (português, francês e espanhol) que se une na homogeneidade de vontades e sonhos. “Partir é o que as une”, ouve-se poucos minutos depois de o pano levantar. 

“O foco é a viagem. De repente universaliza-se esta questão da migração. Não é importante de onde vêm, nem para onde vão. Acaba por se condensar toda a identidade destas pessoas e todo o fado, todo o destino que elas têm, na viagem, e no modo como elas são sacudidas pelas vontades exteriores às delas. Desde quem lhes dá um carimbo para um visto até quem as mete ilegalmente dentro de um barco, quem abusa delas para as ajudar a passar”, descreve a criadora. “Há uma ânsia de chegar, sem terem grande controlo sobre isso”, resume. “O que é que as leva a partir?”, questiona.

Sissi, a mais jovem das personagens, procura fama e sucesso fora do seu país. Sandra, uma mãe viúva, quer fugir a um casamento forçado e oferecer um futuro à sua filha. “É um pouco esta ideia de mulher que acaba por estar subjugada à vontade de todos à sua volta”, explica Carolina. Pepita, que passou a sua vida a servir os outros, incluindo a própria família, procura um fim diferente para os seus dias. Durante pouco mais de uma hora, o público acompanha as travessias individuais (e muitas vezes solitárias, ainda que acompanhadas em circunstâncias) em direcção ao desconhecido. Sem rumo, casa ou sorte, as mulheres seguem em movimento, num estado de trânsito permanente. 

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Um cruzamento vital para a forma final do espectáculo que agora se apresenta em Lisboa depois de passar por Loulé, Lagoa e Faro, foi a inclusão de testemunhos de mulheres migrantes no Algarve (a associação cultural Mákina de Cena é sediada em Loulé). “Uma das grandes preocupações que tínhamos era como é que nós, no nosso papel de privilegiadas brancas europeias, conseguimos falar disto sem parecermos assépticas e maternalistas? Porque há esse perigo ao falarmos de algo tão denso e tão longínquo”, reconhece Carolina Santos. “O que nos pareceu mais lógico foi perceber como é que no sítio em que nós estamos, partindo do universal para o local, vivem estas mulheres migrantes, qual é a história delas”.

As criadoras juntaram-se a associações locais de apoio a migrantes e apoio à vítima para conhecer mulheres migrantes residentes na região algarvia. “O que nos permitiu foi humanizar as personagens. Tornámo-las mais próximas”. Deste coro, destacam-se vozes e histórias de quem está perto. “Mudou o foco do espectáculo. Deixou de ser sobre uma vontade de trazer o livro a palco e passou a ser sobre estas mulheres e para estas mulheres”.  

É sem se focar no particular, mas unindo as histórias-fragmentos de cada uma destas mulheres, que se cria uma narrativa que se pode questionar quanto tem de ficcional num mundo em que a luta pela igualdade de género ou a crise dos refugiados são temas prementes. A nuance pode estar no que, existindo também no domínio do real, tem habitualmente menos tempo de antena: a feminização das migrações e a perda de identidade quando se luta pela sobrevivência.

Teatro Ibérico. Sáb 21.00; Dom. 17.00. 10€

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