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Espólio do antigo Hospital Miguel Bombarda
Francisco Romão PereiraEspólio do antigo Hospital Miguel Bombarda

“Nós é que somos os malucos.” Como um pequeno grupo está a tentar salvar o espólio do Bombarda

O primeiro hospital psiquiátrico do país fechou em 2011, deixando mais de um século de medicina, fotografias, pinturas e poemas de pessoas diagnosticadas com doença mental. Seis pessoas lutam para que esse património não se perca.

Rute Barbedo
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Rute Barbedo
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Ainda não se encontraram todas as peças que Vítor Freire, antigo administrador do Hospital Miguel Bombarda (HMB) e grande impulsionador do museu que ali chegou a existir, identificou como elementos importantes da primeira instituição psiquiátrica do país. Os croquis, por exemplo, ainda não apareceram. Também há desenhos de tatuagens por catalogar, mas alguns já estão reservados, numa caixa. Há um “amor de mãe” pensado para o braço esquerdo, um “liberty”, um coração com o nome da cidade inglesa de Portsmouth e um esboço particular, que enregela a atenção, de uma campa feita de pedras encabeçada por uma cruz. Nela lê-se: “Aqui jaz amôr de mãe.”

Há mais de um ano que Ana Paula Santos, bibliotecária do Hospital Júlio de Matos onde hoje se encontra, a título provisório, uma boa parte do acervo do Bombarda, na sequência do fecho do hospital, há 13 anos , e Amélia Lérias, ex-psiquiatra do HMB, andam à volta destes desenhos, pinturas, cadernos, equipamentos médicos e outros bens que um dia fizeram parte da vida do asilo da Colina de Santana. Se Vítor Freire havia catalogado mais de 10 mil peças (faleceu em 2022), o trabalho feito não tinha o rigor exigido pela então Direção-Geral de Património Cultural (DGPC, agora dividida entre a Museus e Monumentos de Portugal e o Património Cultural) para a sua classificação. Foi por isso que Ana Paula e Amélia tiveram de refazer tudo, desde o início, e pedir ajuda. Entretanto, o grupo cresceu e hoje é composto por seis pessoas, três das quais voluntárias e três funcionárias da Unidade Local de Saúde São José. “Nós é que somos os malucos”, diz Ana Paula, para Amélia Lérias continuar: “Se tivéssemos ficado só as duas, estaríamos até 2030-2040 a inventariar tudo.” 

Isabel Fernandes, Ana Paula Santos e Amélia Lérias
Francisco Romão PereiraIsabel Fernandes, Ana Paula Santos e Amélia Lérias

Com o apoio do Fórum Cidadania Lx, numa primeira fase, foram à DGPC perguntar o que achavam do acervo. Teria valor? “A DGPC achou logo que sim, mas pediu para seguir um determinado método”, conta Paulo Ferrero, do Fórum.  Formou-se, então, o grupo de trabalho. Uma vez por semana vão ao Panóptico do HMB e ao Júlio de Matos analisar e escrever as fichas de cada peça. “Fora o trabalho que fazemos em casa... No início, eram noites e noites”, recorda Ana Paula. Em cada ficha, colocam o número do objecto, descrevem-no quanto à dimensão, ao formato, ao material. O objectivo do grupo é um: que o acervo do Bombarda não se perca e possa ser devidamente valorizado e exposto, em contexto de museu. “Achámos que era importante tentar proteger tudo isto e dizer que existia.” Fizeram-no por livre iniciativa.

Espólio do antigo Hospital Miguel Bombarda
Francisco Romão PereiraEspólio do antigo Hospital Miguel Bombarda

Em causa estão milhares de fotografias, registos clínicos e de entrada de doentes no ainda Hospital de Rilhafoles (1848 e 1850), objectos médico-científicos, poemas, cartas, cadernos de notas, pinturas, os tais esboços para tatuagens e outras obras artísticas feitas por pessoas com diagnóstico de doença mental que passaram pelo manicómio com 163 anos de história. Antes de morrer, em Outubro de 2022, Vítor Freire fez um último telefonema à bibliotecária do Júlio de Matos. Pediu-lhe que anotasse tudo o que ia dizer com atenção. “Nunca me contou que estava doente, estava longe de saber que aquela era a última vez que ia falar com ele. Mas anotei”, conta Ana Paula Santos. Vítor Freire era um entusiasta da arte bruta, marginal ou outsider, como é chamada, e defensor acérrimo do património do Bombarda, não só o móvel como o edificado. “Foi por causa dele que o Panóptico e o Balneário D. Maria II foram classificados como imóveis de interesse público”, realça Amélia Lérias. Vítor “só confiava nela”, Ana Paula, por isso, deixou-lhe o testemunho da memória do museu. Não queria que, após a sua morte, todas aquelas histórias de vida, arte e psiquiatria se perdessem. 

Sem destino há 13 anos 

A 23 de Dezembro de 2010, um apelo em defesa do património do Bombarda foi entregue às ministras da Saúde, Ana Jorge, e da Cultura, Gabriela Canavilhas. O receio subjacente era que o arquivo médico e o acervo de obras artísticas feitas pelas pessoas que um dia foram ali sujeitas a tratamento estivessem em risco. Entre os signatários figuravam os nomes de Paula Rego, António Damásio, João Pinharanda ou Joana Vasconcelos. “​​A destruição desses arquivos representaria uma enorme perda”, escreveu o neurocientista. “Existem em Lausanne, em Nova York em todo o mundo museus dedicados a Arte Marginal ‘Art Autre’. Visões directas do Inconsciente que nos ensina e nos comove profundamente. É a arte que mais admiro. (...) Os aflitos têm de ter acesso a espaço com material de arte para eles próprios descobrirem o que os tortura”, explicou a artista luso-britânica. 

Pintura de Araújo, espólio do HMB
Francisco Romão PereiraPintura de Araújo, espólio do HMB

No ano seguinte, em Março, após a fusão dos hospitais Miguel Bombarda e Júlio de Matos e da criação da Estamo, a empresa que ficou responsável por gerir o património imobiliário do Estado, o administrador Vítor Freire saiu do HMB. Cá fora, no entanto, não deixou de se empenhar na defesa do Museu Miguel Bombarda e do seu espólio, através da Associação de Arte Outsider, que co-fundou. Vítor era “a única pessoa” que conhecia “profundamente” o acervo do hospital, como alertou a associação Fórum Cidadania Lx, pelo que a sua saída foi vista como “preocupante” numa altura em que a instituição estava prestes a encerrar, sem que o seu espólio estivesse “totalmente recolhido e inventariado” e sem que existisse um projecto de continuidade para o “único Museu de Arte de Doentes/Outsider Art e de Neurociências da Península Ibérica". Em Julho, o Hospital Bombarda fechou e o museu passou a abrir muito esporadicamente, até 2018, ano do seu encerramento.

Com as mudanças e fusões que deram origem ao Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, começaram a chegar da Colina de Santana até ao Hospital Júlio de Matos, em Alvalade, carrinhas com uma importante parte do espólio do Bombarda. Vieram muitas “caixas de cartão com livros de registos dos doentes, os desenhos e as fotografias”, conta Ana Paula Santos, que anos mais tarde descobriu que mais peças haviam sido, entretanto, transferidas para Alvalade. Entre elas, estavam telas de grande formato, como o pai Natal assinado por Araújo, ou pinturas de Valentim de Barros, o primeiro bailarino português a internacionalizar-se, que viu a dança dissipar-se nos 47 anos em que esteve no Bombarda, com o diagnóstico de “homossexualidade”. Havia “telas de grandes dimensões no chão, com as molduras partidas — possivelmente para ser mais fácil de transportar —”, algumas “tinham sido pisadas”, relata a bibliotecária, continuando: “Enrolei-as da melhor forma que pude, fiz o melhor que sabia.” Recentemente, em colaboração com o Fórum Cidadania Lx, o grupo pediu a um especialista que averiguasse a viabilidade de restauro de algumas obras e também que os ajudasse a proteger e conservar as peças guardadas no Júlio de Matos.

Além das telas, vieram fotografias dos utentes do Bombarda dispersos em torno da torre de vigilância, retratos que serviram de meio complementar de diagnóstico para quadros como a histeria, o delírio alucinatório, a esquizofrenia ou o delírio de perseguição. Entre as fotografias meticulosamente guardadas em dossiers e fechadas à chave dentro de um armário da biblioteca, há homens de corpo inteiro, de frente, de perfil. Uns estão nus, outros vestidos com os casacos grossos de fazenda que se usavam no hospital. Vêem-se deformações do crânio, corpos magros, olhos que parecem não ter dormido. Naquele tempo, acreditava-se que algumas morfologias propiciavam certas doenças. “Os mais altos e magros estavam associados à esquizofrenia, por exemplo… Essas referências já não se usam em ciência, mas ainda existe aquela ideia de que os mais gordinhos são mais saudáveis, não é?”, comenta a ex-psiquiatra do Bombarda, Amélia Lérias, enquanto passamos as mãos pelo álbum.

Magneto para doenças nervosas (século XIX), espólio do HMB
DR/Amélia LériasMagneto para doenças nervosas (século XIX), espólio do HMB

Há também dezenas de cadernos de registos clínicos, como este, que destaca dois episódios relativos a Lúcio Almeida (nome fictício): a “siphilis cerebral” surgida em 1911 e, nove anos depois, a morte por enterite. Mas para o Júlio de Matos também se transportaram secretárias, cadeiras ou o retrato pintado do Marechal Saldanha, que esteve pendurado acima da secretária do psiquiatra Miguel Bombarda e que guarda hoje o buraco da bala saída da arma de Aparício Rebelo dos Santos, o homem que o assassinou. 

Mais de 500 bens nas mãos do Património Cultural

É no antigo Pavilhão de Segurança do Bombarda, o Panóptico, no entanto, que estão “os objectos mais relevantes do foro médico-científico e da arte dos doentes”, salienta Amélia Lérias. Foi ali o principal pólo do Museu Miguel Bombarda, mas o edifício, fechado há seis anos, já revela sinais de degradação. “Há vidros partidos e chove lá dentro”, conta Paulo Ferrero. Para os terrenos do Bombarda está prevista a construção de um empreendimento que inclui habitação para arrendamento acessível, salvaguardando-se o Panóptico e o Balneário D. Maria. E enquanto a obra não arranca, os jardins do Bombarda vão acolher um pólo sócio-cultural dinamizado pela cooperativa Largo Residências. 

Ainda que o acesso ao Panóptico dependa das autorizações pontuais dadas pela Estamo e seja, por isso, condicionado, foi por ali que o grupo começou o trabalho, pelo que esta parte do acervo já foi praticamente toda inventariada e, em breve, deverão ser registadas as últimas peças. Tudo o resto está no Júlio de Matos, totalizando cerca de 10 mil objectos, sem contar com os registos documentais. “Se contássemos com isso, ficaríamos cá mais uns dez anos”, brinca Amélia Lérias. Em Dezembro, o grupo de trabalho entregou à DGPC um requerimento para a abertura do procedimento de classificação de mais de 500 bens, entre os quais 400 obras artísticas (368 seleccionadas pela investigadora da Universidade Nova de Lisboa, Stefanie Franco), 44 fotografias (escolhidas pelo Arquivo de Documentação Fotográfica da DGPC), 131 objectos e cinco quadros de não-doentes, bem como peças do próprio Convento de Rilhafoles. Aguarda agora uma resposta, enquanto prossegue o trabalho em Alvalade.

Espólio do HMB
Francisco Romão PereiraEspólio do HMB

O que fazer ao espólio do Bombarda? “Não vou dizer que tudo será relevante, mas creio que há quadros bastante bons, melhores do que em muitos outros museus de outras cidades europeias, talvez, para estarem a deteriorar-se. Por outro lado, do ponto de vista médico-científico, estamos perante um património muito, muito interessante e, às vezes, muito difícil de inventariar…”, reflecte Amélia Lérias. Em suma: “Há aqui toda uma importância histórica, académica e científica que nos parece importante preservar e dar a conhecer a toda a gente”. 

A 14 de Novembro de 2023, uma nova petição em defesa do património do hospital foi endereçada à Assembleia Municipal de Lisboa. No documento, a reabertura do museu é destacada como “fundamental”. E pede-se uma acção urgente quanto ao acervo do hospital, “para que se garanta a sua preservação in situ”; “para que as pessoas tomem consciência da sua existência”; “para que a história do HMB não se dilua”; “para que a colecção tenha o reconhecimento público que merece, enquanto valor cultural e histórico do país, e para que não se disperse, mais do que já se dispersou”.

Nota: Do grupo que está a inventariar o espólio do antigo Hospital Miguel Bombarda fazem ou fizeram parte Amélia Lérias, Ana Paula Santos, Carlos Boavida, Célia Pilão, Fátima Palmeiro, Isabel Fernandes e Pedro Janarra.

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