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“Eu só quero prantear/ Este mal que a muitos toca…”, confessa Maria Parda, forçada a representar, uma vez mais, as patologias de uma cidade afectada por um ano devastador. Agora, como há cinco séculos, a figura, que a tradição vestiu de negro, continua sem eira nem beira. Decidido a reescrever a história e a História, Miguel Fragata parte do texto de Gil Vicente à escuta das vozes daqueles que temos, por perversidade ou ignorância, deixado para trás. Com Cirila Bossuet no papel principal, a única em palco, Pranto de Maria Parda convoca o país a reflectir (com redobrado afinco) sobre negritude, feminismo e a cidade que, juntos, queremos construir. A estreia está marcada para 21 de Outubro, no Teatro Nacional D. Maria II, no âmbito do Próxima Cena, projecto que promove o acesso à cultura e a valorização de públicos em territórios de baixa densidade populacional.
Se Tiago Rodrigues não o tivesse desafiado a pensar a cidade de hoje a partir de um texto com 500 anos, Miguel Fragata nunca se teria reconectado com Maria Parda nem com uma Lisboa desfigurada que urge – mais do que restaurar – reformar. “A minha relação com Gil Vicente nunca foi a melhor”, confidencia o encenador, entretanto persuadido a fazer as pazes com o “pai” do teatro português. Por um lado, precisamente por ter essa oportunidade de trabalhar, à luz do presente, uma peça com um certo “peso e antiguidade” que, de certa forma, evoca problemáticas contemporâneas, ainda mais evidentes durante a pandemia. Por outro, pelo prazer de criar um espectáculo com portabilidade e autonomia. “Para promover a descentralização e a democratização. Para levar o teatro e os textos clássicos dos autores fundadores da literatura portuguesa a locais com menos acesso.”
Sátira à escassez e à carestia do vinho, o texto vicentino foi escrito em 1522, no rescaldo do “anno da sterilidade”, um período de fome e seca extrema que agudizou as difíceis condições de vida de uma franja da população, de que Maria Parda é símbolo. Para facilitar a sua compreensão, fizeram-se “actualizações de linguagem”. Cirila Bossuet irá interpretá-lo na sua totalidade, mas dentro de uma nova dramaturgia, assinada por Miguel Fragata, que inclui música original dos rappers Capicua e Chullage. Ambos formados em Sociologia, foram convidados a escrever canções de intervenção, que não só reflectem sobre a condição da mulher, em particular da mulher negra, como denunciam o racismo e as desigualdades sociais, exacerbadas por processos de gentrificação. “Montar [a peça] foi uma espécie de quebra-cabeças”, diz o encenador, que desvenda ter contado com consultoria de especialistas como José Camões, Joana Gorjão Henriques, Mamadou Ba, Marta Araújo, Naky Gaglo e Sílvia Maeso.
Já em cena, em cima de uma espécie de altar, Maria Parda apresenta-se a ela e ao ano em que tudo começou: 1521, ano em que se morria nas ruas, de peste e barriga vazia. Recuperadas essas memórias, diz-nos que está na hora de enterrar o ano mau com um último sacrifício. “De repente, tornou-se evidente o paralelismo com o ano mau de 2020-21. A cidade também ficou deserta, os estabelecimentos também fecharam, os preços subiram”, recorda Miguel. “A pandemia permitiu-nos ver, muito claramente, o desequilíbrio de privilégios e a forma como nos organizamos socialmente. Bastava observar os barcos e os comboios para perceber como as pessoas que continuaram a trabalhar, que nunca pararam, foram pessoas ligadas à manutenção dos edifícios, às obras, às limpezas. Muitas delas continuam a ser pessoas racializadas.”
É com essa realidade, a de uma sociedade em loop, que continua a ostracizar quase todos em prol de uns poucos, que vamos sendo confrontados. Através do texto, mas também dos elementos móveis e do registo visual de uma Lisboa confinada que invade o espaço cénico para nos transportar no tempo. “Mas basta um grão de areia na engrenagem”, dir-nos-á Maria Parda numa missiva de protesto, pronta para encher o ataúde com nada e as praças com estátuas à medida de todos. Afinal, está viva e é essa a sua mais-valia: estamos vivos e é essa a nossa mais-valia. “Neste pensamento sobre que cidade queremos construir e como colectivamente reagimos a uma situação de crise, existe esse mote de unidade. Será que não nos podemos sacrificar todos? Será que temos mesmo de sacrificar alguém? E para quê? E para o bem de quem?”
Teatro Nacional D. Maria II. 21 de Outubro a 5 de Novembro. Qua-Sáb 19.30 e Dom 16.30. 11€.