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No local onde hoje se encontra a Igreja de Nossa Senhora da Conceição Velha, na Rua da Alfândega, foi construída no início do século XVI a primeira sede da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que aqui se instalou em 1534. É por isso que, a encimar o portal manuelino, encontramos a Virgem da Misericórdia, com o seu manto protector aberto, sob o qual se encontram várias figuras ajoelhadas – à sua direita figuras do clero (papa Leão X incluído), à esquerda da nobreza (D. Manuel e a sua irmã D. Leonor, fundadora das Misericórdias, são duas das figuras).
A ladear este pórtico estão dois enormes janelões manuelinos, e no remate das suas colunas encontramos motivos decorativos semelhantes aos presentes na fachada: uma carantonha grotesca, motivos vegetalistas, um par de dragões... Mas também algo que nada tem a ver com o resto: um desconcertante alto relevo de um rapazinho a correr com um cão.
Note-se que este menino não é um anjo, como os que aparecem nas laterais do portal: não tem asas e veste uma casaqueta. E o cão não é confundível com os restantes animais fantásticos. É mesmo um cão, e sorri, tal como o rapazinho. Desprende-se das duas figuras uma leveza e alegria que contrasta com o peso e solenidade de todas as restantes.
A interrogação é legítima: porque temos uma imagem tão dissonante nesta fachada manuelina? Junto dos historiadores da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa não encontrámos resposta, o que é compreensível: é uma figura pequena, e irrelevante, não é de supor que tenha algum significado associado. Mas, ouvindo o historiador de arte Fernando António Baptista Pereira no programa da RTP Visita Guiada dedicado a esta igreja, surge uma pequena hipótese de explicação.
Com o terramoto de 1755, o complexo assistencial da Santa Casa que aqui existia ruiu. Além da igreja, existiam aqui edifícios hospitalares, de assistência e de recolhimento, que ocupavam um enorme quarteirão com uma área aproximada de seis vezes a da igreja actual. De tudo isto, só sobreviveram, em estado recuperável, o portal e janelões manuelinos da fachada e um altar lateral. A Santa Casa retirou-se para a Igreja de São Roque e as ruínas foram entregues aos freires da Igreja da Conceição Velha, que trouxeram com eles, entre outras, a imagem de Nossa Senhora da Conceição, que hoje se encontra no altar-mor, e uma valiosa estátua de Nossa Senhora do Restelo.
Na reconstrução pombalina da igreja, do século XVIII, só foi aproveitada a fachada manuelina e, mesmo assim, diz o historiador, “não temos a certeza que as imagens que estão nos nichos são as originais. Sabemos que pertenceram à igreja, mas podem não estar nos lugares originais”. “Foi tudo tão mexido, que grande parte do acervo não é daqui originalmente”, acrescenta. Talvez seja também o caso do menino com o seu sorridente cãozinho.
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