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É uma coincidência impossível de ignorar. Nas colunas ouve-se: “É só contar até três/ 1, 2, 3, Vou nascer outra vez/ Fechar os olhos/ 1, 2, 3, Vou nascer outra vez/ Respirar bem fundo/ 1, 2, 3, Vou nascer outra vez/ Começar de novo…” A música dos Ritual Tejo encaixa como uma luva nesta reabertura do Velho Eurico, cinco meses depois de o restaurante ter fechado para obras. É uma espécie de renascimento que se vive por aqui. Começa-se de novo o que já corria tão bem, mas que se acredita poder correr ainda melhor. A música não é sequer um detalhe, é a continuidade, tal como as caras de quem recebe quem chega, de forma sempre igual – sejamos amigos da casa ou estreantes, embora por estes dias sejam mais os amigos a voltar. O resto está diferente, embora nem tanto. O Velho Eurico continua a ser uma tasca punk, mesmo de paredes (ainda quase) vazias. A diferença é que agora tem melhores condições para todos.

Desde o início de Maio que a romaria ao Largo de São Cristóvão, na Mouraria, se voltou a sentir – não em direcção ao Castelo, mas às portas do Velho Eurico, a tasca que Zé Paulo Rocha e Fábio Algarvio transformaram em 2019, com respeito à história da casa deixada pelo casal minhoto Eurico Ferreira e Carolina Cunha. A música alta q.b., as cantorias, a agitação, os pequenos ajuntamentos à espera de mesa, a fila à porta. É só mais um dia normal e estranho é quando alguma destas coisas não acontece. Reservas para jantar, por exemplo, até Agosto, já são muito poucas. Ao almoço o cenário é muito semelhante. Há sempre a lista de espera, para aqueles que tentam a sorte no dia.
“Nunca imaginei isto quando abri. Foi tudo muito depressa”, confessa-nos Zé Paulo Rocha, apressando-se nas justificações. “A localização também é muito boa e a comida que fazemos também é agradável”, ri-se. É, obviamente, mais do que isso e já por aqui escrevemos algumas vezes. Para lá de toda a informalidade, o trabalho na cozinha é levado de forma séria. A cozinha é tradicional e despretensiosa com o conhecimento de quem podia estar num fine dining, o que é cada vez mais evidente até. Não foram os pioneiros – são filhos da Taberna Sal Grosso, em Alfama, então de Joaquim Saragga Leal (hoje n’Os Papagaios) –, mas é inegável a sua influência actualmente no panorama gastronómico, pelo menos numa geração mais jovem.

“Acho que influenciámos a malta da nossa geração a começar a olhar para a comida portuguesa de outra forma. Para a comida e para o serviço”, aponta Zé Paulo. “Às tantas, o pessoal olhava e via um bando de miúdos a reabrir uma tasca… Era uma opção possível, é um negócio que funciona”, continua, defendendo que a sua geração “procura muito mais restaurantes com comida tradicional portuguesa”. “Há cinco, dez anos, se calhar, o panorama não era assim”, diz. “Não sei onde é que nos inserimos. Não sei se é nas neotascas, se é nas tabernas, acho que o que fazemos é fruto daquilo que gostamos de comer, da forma como gostamos de ser servidos.” Sem merdas, diriam.
A clientela é tão ecléctica quanto a loiça desirmanada ou a lista musical, que ora vai de Quim Barreiros e Rosinha a Mata-Ratos, António Variações, GNR, Ornatos Violeta ou Capitão Fausto. Misturam-se locais e turistas, novos e velhos. “Começámos a sentir que a cozinha era pequena. Sentávamos 55 pessoas dentro, mais 20, 25 fora. Para a cozinha que tínhamos era apertado. A ideia sempre foi tentar aumentar a cozinha, sem perder muitos lugares e foi com esse intuito que decidimos fechar.”

Era para ter sido uma pausa de dois meses apenas, mas as obras acabaram por descarrilar. Houve tempo até para uma passagem pela Crack Kids, no Cais do Sodré, onde Zé Paulo e a equipa serviram durante algumas semanas muitos dos petiscos do Velho Eurico. “Deixou-me um bocado frustrado o facto de ter que estar muito em cima da obra e todos os problemas que isso trouxe. Íamos abrir em Fevereiro, depois passou para Março, depois passou para Maio. Tive algum tempo livre para testar [pratos], mas não foi tanto como o que eu queria.”
É por isso, explica, que neste arranque a carta faz-se em grande parte de clássicos como os croquetes de borrego (4€), o bacalhau à Brás (15€), a lula e laranja (17€) ou o arroz de pato (14€), “que é para não ser tudo novo”. O tudo é, essencialmente, a cozinha que ganhou o dobro do espaço e que obriga agora a uma nova forma de trabalho.

“Precisávamos aumentar a cozinha para a poder tornar também mais organizada, mais operacional, para podermos fazer coisas mais interessantes”, conta. “Às tantas queríamos pôr um prato, uma cena diferente, e ou não tínhamos um forno em condições, ou não tínhamos espaço de roda para ter mais duas ou três caixas com dois ou três elementos diferentes. Não tínhamos espaço, não tínhamos tempo, não dava muita margem para brincar”, recorda. “Agora conseguimos trabalhar por estações, cada um tem a sua mise en place. Há espaço suficiente para ter mais um prato de cada, mais um de carne, mais um de peixe, mais um side. Sobremesas temos quatro, mas queremos pôr cinco, ganhámos mais margem de manobra”, resume.

São menos mesas, mas tentou compensar-se com um novo balcão. Na outra sala, usou-se também a janela aberta para a rua para se instalarem ali mais dois lugares. A esplanada ainda não está a funcionar em pleno para que tudo se possa fazer com calma. As paredes outrora preenchidas por mensagens dos clientes estão limpas, embora aos poucos comecem a ser preenchidas – e nem precisa de pedir o marcador porque ele chegará, tal como o medronho ou a aguardente (já faz parte da tradição da casa).

Pode, então, dizer-se que o Velho Eurico está hoje melhor? “Caminha para melhor, ainda não está”, considera Zé Paulo. “Ainda não estou muito contente, ou seja, acho que está igual ao que estava. A minha ideia é que consigamos pôr pratos na carta com mais rotação. Pratos interessantes. Gastronomicamente mais interessantes”, corrige, explicando que há pratos que justificam ter mais um ou dois elementos”. “Dou-te o exemplo da torta [de laranja]. É uma sobremesa com quatro ou cinco elementos. Antes, tínhamos um buraquinho para fazer sobremesas. Fazer quatro sobremesas num aparador do IKEA era lixado.”

Entre as novidades na carta, há um prego (10€), uma morcela de arroz que acompanha com um puré de nabo, umas ervilhas com entrecosto (13€), um atum de cebolada (14€) ou uma pescada com todos (12€). Nas sobremesas, a torta de laranja (5€) surge ao lado de sugestões como um pudim (4€), aparentemente simples, mas com uma textura difícil de encontrar. “Já não consigo ver pudins à frente. Testámos tantas receitas”, confessa.

“O objectivo agora é tornar a cena consistente e depois aí vamos começar a mexer na carta com mais regularidade.” E avisa: “Pratos como o bacalhau e o arroz de pato se calhar não saem para já, mas eu gosto da ideia de tirar um clássico e depois voltar a pôr. Já fazia isso. Por exemplo, o chambão saiu, é capaz de voltar quando começar o Inverno”. Até lá, há ainda muito trabalho para fazer. “A ideia seria, a longo prazo, abrir todos os dias, mas isso será lá para o final do Verão. Tão cedo acho que não vai dar, até para o pessoal não sentir grande sobrecarga agora”, antecipa.

Já para um futuro mais longínquo, a visão é mais ambiciosa. “Eu gostava muito de avançar com um projecto um bocadinho diferente do Velho Eurico. Gostava muito de ter um fine dining ao estilo Velho Eurico, de preferência perto do Velho Eurico, mas na mesma onda”, revela. “Isto está a ser pensado quase desde a abertura do Velho Eurico. Já há projecto em papel, já está tudo mais ou menos pensado, só falta oportunidade e disponibilidade emocional, mas era algo que eu queria muito fazer. Quero muito ter um Velho Eurico onde me divirto a fazer o que se faz no Velho Eurico. E quero ter um Velho Eurico 2.0 onde me divirto também, mas de uma forma diferente”, conclui.
Largo São Cristóvão 3 (Mouraria). Ter 19.30-22.30, Qua-Dom 12.00-15.00/19.30-22.30
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