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O primeiro Kingdom Hearts, lançado em 2002 na PlayStation 2, foi um dos jogos mais fáceis de vender da história. A Square, na altura uma das mais bem-amadas editoras e produtoras de videojogos do Japão e do mundo, convenceu a Disney a deixá-la usar as suas mais icónicas personagens num RPG (role-playing game, ou jogo narrativo) japonês e, para chegar a um público mais vasto e crescido, juntou os protagonistas de Final Fantasy ao Rato Mickey e companhia. O sucesso foi tanto que, desde então, foram editadas mais de duas dezenas de jogos e colectâneas com as palavras “Kingdom Hearts” no nome. E quase todos estes títulos podem, desde terça-feira e pela primeira vez, ser jogados no PC.
Os títulos que podem ser comprados desde terça-feira, na Epic Games Store, são quatro: Kingdom Hearts HD 1.5 + 2.5 ReMix (49,99€), Kingdom Hearts HD 2.8 Final Chapter Prologue (59,99€), Kingdom Hearts III + Re Mind (59,99€), e Kingdom Hearts: Melody of Memory (59,99€). Os dois primeiros, no entanto, compilam nove jogos diferentes, e o terceiro junta o último capítulo da trilogia principal à sua expansão, intitulada Re Mind. Todos eles estão disponíveis também na PlayStation 4 e, desde o ano passado, na Xbox. Além disso, os três primeiros podem ser jogados de graça, na consola da Microsoft, pelos assinantes do serviço Xbox Game Pass.
Estes jogos tiveram várias encarnações ao longo dos anos. Kingdom Hearts HD 1.5 + 2.5 ReMix, por exemplo, saiu em 2017 na PlayStation 4 e reúne duas colectâneas feitas para a PlayStation 3, Kingdom Hearts HD 1.5 ReMix (2013) e Kingdom Hearts HD 2.5 ReMix (2014). A primeira junta o Final Mix do primeiro Kingdom Hearts (2002) a Kingdom Hearts Re:Chain of Memories (2007) – uma versão melhorada de Kingdom Hearts: Chain of Memories, editado três anos antes no Game Boy Advance – e Kingdom Hearts: 358/2 Days (2009), originalmente um jogo da Nintendo DS, mas aqui reduzido a um filme. Já Kingdom Hearts HD 2.5 ReMix compila o Final Mix de Kingdom Hearts II, um clássico da PlayStation 2; o Final Mix de Kingdom Hearts: Birth by Sleep, lançado na PlayStation Portable em 2010; e mais um sumário cinematográfico de um jogo da Nintendo DS, Kingdom Hearts Re:coded.
Kingdom Hearts HD 2.8 Final Chapter é mais uma compilação pensada originalmente para a PlayStation 4, em 2017. Reúne Kingdom Hearts: Dream Drop Distance HD, uma versão remasterizada de Kingdom Hearts 3D: Dream Drop Distance, um spin-off lançado na 3DS da Nintendo em 2012; Kingdom Hearts 0.2: Birth by Sleep – A Fragmentary Passage, uma história directamente relacionada com Kingdom Hearts III e criada com o mesmo motor gráfico; e ainda Kingdom Hearts χ Back Cover, mais um filme animado por computador, desta feita ligado a um spin-off para browsers e telemóveis, Kingdom Hearts χ.
Os parágrafos anteriores serão suficientes para deixar muita e boa gente com um nó no cérebro. Mas a história que todos estes jogos contam consegue ser ainda mais complicada. O que começa por ser um monomito tradicional, no primeiro título, em que o protagonista Sora tenta salvar os seus amigos e os mundos por onde passa, na companhia do Pateta, do Pato Donald e de outros heróis animados da Disney, vai-se tornando mais impenetrável a cada spin-off. Não só são introduzidas personagens novas, como algumas são réplicas de outras, e a trama torna-se mais confusa à medida que avança e retrocede no tempo. Quando finalmente chegamos a Kingdom Hearts III, que na verdade é o décimo capítulo de uma narrativa metafísica sobre o bem e o mal, é difícil descortinar o que se está a passar e quem é quem.
Sem contar com as centenas de personagens dos filmes da Disney e de sucursais como a Pixar – que vão desde o Jack Skellington de O Estranho Mundo de Jack e do Jack Sparrow de Piratas das Caraíbas às princesas da Disney, e até Woody ou Buzz Lightyear, de Toy Story – e com os protagonistas de vários jogos da franquia Final Fantasy, ao longo dos anos foram entrando e saindo de cena mais sete heróis desenhados de raiz por Tetsuya Nomura, o criador da saga, e duas dezenas de antagonistas concebidos por ele. Decorar os nomes e as motivações de tanta gente é mais difícil do que um exame nacional de matemática, sobretudo porque muitas personagens são fusões e versões diferentes de outras.
Apesar de a história ultrapassar o limiar da incoerência em mais do que uma ocasião, mas também por isso, os sucessivos fascículos da saga Kingdom Hearts são artefactos culturais fascinantes. Ainda hoje não se percebe como é que a Disney, uma das empresas que mais zela pela sua propriedade intelectual, deixou um iconoclástico designer (e argumentista e realizador) japonês, como Tetsuya Nomura, fazer o que queria com as suas personagens, e usá-las como peões numa rocambolesca e operática trama ao longo de quase 20 anos. Mas o que é certo é que deixou. Pelo caminho, deixou-nos jogar e amar uma série de RPG japoneses mecanicamente robustos e complexos, com elevados valores de produção e um elenco vocal de luxo. Em que cada novo nível lembra uma área temática de um parque de diversões.
Todos os jogos disponíveis para PC, PlayStation 4 e Xbox One.