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Outra Bizarra Salada
Estelle Valente

Outra vez salada? Uma peça para desconversar

Beatriz Batarda mexe nos textos de Karl Valentin, envolve novos actores, acrescenta-lhe mais música, e, 12 anos depois, serve ‘Outra Bizarra Salada’ no São Luiz. Mantém-se a Orquestra Metropolitana de Lisboa e Bruno Nogueira.

Joana Moreira
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Joana Moreira
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“Só pela imposição é que se consegue obrigar o nosso público a vir ao teatro. Tentou-se durante dezenas, dezenas de anos convencê-lo com boas palavras. Está-se a ver o resultado. Truques publicitários para atrair as massas, como, por exemplo, a sala está aquecida, pode-se fumar no foyer durante o intervalo”. O excerto anterior é da versão televisiva de E Não Se Pode Exterminá-lo?, peça da Cornucópia, estreada em 1979, e da qual existe um registo em filme para a RTP, assinado por Solveig Nordlund. A encenação de Jorge Silva Melo, com base em textos de Karl Valentin (1882-1948), inspira o espectáculo que se estreia este sábado, 18 de Fevereiro, no São Luiz. 

O “truque publicitário” em 2023 é o mesmo que em 2011 levou a que Uma Bizarra Salada esgotasse em todas as suas récitas. A peça juntava Beatriz Batarda, Bruno Nogueira, Luísa Cruz e a Orquestra Metropolitana de Lisboa (OML). E qual é o truque? “É o Bruno Nogueira, e sabemos que o Bruno é fácil de trazer público”, dizia a directora artística do Teatro São Luiz, Aida Tavares, em entrevista à Time Out, em Outubro, falando sobre “projectos que são naturalmente mais imediatos no apelo ao público”. Na sua última programação enquanto directora do teatro municipal, Tavares quis voltar a este espectáculo com “uma temporada maior”. Neste regresso, 12 anos depois, com um novo nome e algumas mudanças, Outra Bizarra Salada volta a juntar Beatriz Batarda, como encenadora, Bruno Nogueira e OML.

Por enquanto, ainda não há datas esgotadas para ver aquilo que é tudo menos uma peça de teatro ou um concerto convencional. É difícil categorizar o espectáculo que se está a montar a partir de uma selecção de textos de Karl Valentin e que é interpretada por Rita Cabaço, além de Nogueira, numa orquestra em convulsão em que actores tocam instrumentos e músicos representam. “Este espectáculo é muito original com todas essas componentes”, frisa agora o maestro Cesário Costa, depois de um ensaio. “Os músicos saem um pouco daquilo que é o seu trabalho normal e também para os actores presumo que é um desafio”. “O Bruno [Nogueira], como sabem, faz carreira como pianista há muitos anos”, brinca. “Mas fala-se pouco”, retorque o humorista, que está envolvido no projecto desde o primeiro dia e assina a dramaturgia do espectáculo com Beatriz Batarda. 

outra bizarra salada
Estelle Valente

Em palco, Nogueira é um músico que procura desestabilizar uma orquestra em plena revolução cultural, desafiando uma maestrina (e ser mulher não é um detalhe), equilibrando-se num texto que revela influências do dadaísmo e do surrealismo, com jogos de palavras, de rimas sonoras e significados. “Há uma espécie de conflito de pessoas que são contemporâneas, mas que de certa maneira ainda usam palavreado que não é tão contemporâneo quanto isso. Esse desencontro funciona bem”, diz sobre a abordagem a um “texto que tem tanto de cómico como de trágico, como de desencontros, de exasperante”. Tal como Rita Cabaço, é um ponteiro no relógio de Outra Bizarra Salada, que com precisão vai cronometrando os tempos de comédia, que nos leva ao riso, e só pontualmente à gargalhada farta. “Não é aquela comédia de punch line, em que sabes que de frase a frase vais ter uma gargalhada garantida. É muito desconfortável, às vezes. É... estranho”, resume Bruno Nogueira. “Dá vontade de rir porque te está a dar uma espécie de pânico pela pessoa que está ali.” 

“Quem é a besta das quotas?”, questiona a personagem de Rita Cabaço , a maestrina que escuta uma conversa de corredores que coloca o seu lugar em causa (na versão de 2011 a actriz em palco era Luísa Cruz). Logo no primeiro sketch, Fanfarra, “vem cheia de pujança enfrentar uma orquestra que não conhece”, descreve Beatriz Batarda. Se “no texto original do Karl Valentin há uma disputa entre um maestro velho, ou seja, o poder velho instalado, contra os jovens músicos”, a encenadora optou por fugir à “guerra de poder entre gerações, entre jovens e velhos” e trabalhar sobre “o mesmo mecanismo de guerra, mas desta vez entre géneros”. “Entre a divisão do feminino e do masculino, temos este confronto da maestrina mulher, no seu cargo de líder, e que é boicotada sistematicamente por este músico chamado Valentin”, explica. 

Uma bizarra salada
Estelle Valente

Em palco, o público observa assim “uma disputa sexista, com piadas sexistas que as mulheres ouvem muitas vezes”. “Esta mulher tem um cargo de chefia, teve um bebé há pouco tempo, já não está de licença, mas ainda está a amamentar, está exausta e não dorme”, enumera. São estes os ingredientes que servem para, através de “uma escrita crítica e política” nos confrontar com os preconceitos de um mundo ainda desigual. “No trabalho destes dois actores conseguimos reconhecer tiques da sociedade contemporânea. Tiques de comportamento, entoações, pequenos hábitos, que são características de uma contemporaneidade”, diz Batarda. 

“O Jorge Silva Melo referia-se ao Karl Valentin como o grande desconversador”, evoca a também actriz, que deu os primeiros passos no Teatro da Cornucópia. Em Outra Bizarra Salada conversa-se na desconversa, através dos temas que se levantam, seja no texto, seja na música (com peças de compositores portugueses contemporâneos, como Anne Victorino d’Almeida e Tiago Derriça). Numa orquestra que pretende ser metáfora para questionar o mundo, artistas e intérpretes mostram, com novos ingredientes e temperos, como os tempos mudaram, mas ainda há tanto a fazer – uma salada de cada vez. 

São Luiz Teatro Municipal – Sala Luís Miguel Cintra (Lisboa). 18-25 Dez. Qua-Sáb 20.00, Dom 17.30. 8-15€

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