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Noite de Reis
Estelle Valente

Ricardo Neves-Neves: “É possível que nos cancelem por termos um elenco só de homens”

O encenador estreia-se em Shakespeare com ‘Noite de Reis’, uma tempestade amorosa de amores não correspondidos, trocas de identidade e questões existenciais – que podem extravasar a cena, como esta: se nós, humanos, não somos directos, porque haveria de ser o teatro?

Joana Moreira
Escrito por
Joana Moreira
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Duas nuvens enormes pairam no centro do palco. Atrás delas, há uma orquestra só de mulheres. À sua frente, um elenco totalmente masculino. A brancura das nuvens contrasta com tudo o resto visível aos olhos: tudo é colorido, vibrante e bem-humorado em Noite de Reis, uma das mais conhecidas peças de William Shakespeare, aqui encenada por Ricardo Neves-Neves e em cena no Teatro da Trindade, em Lisboa, até 19 de Março. 

Na comédia do dramaturgo inglês, escrita provavelmente por volta de 1601, a abordagem é assumidamente musical, como de resto têm sido as incursões de Ricardo Neves-Neves e do Teatro do Eléctrico nos textos clássicos, que “trazem consigo um género de responsabilidade redobrada porque são um género de peça que sobreviveu até hoje”, diz-nos o encenador, antes de um ensaio. Opondo-se à sacralização das peças clássicas, assume que “muitas vezes se presume que o manuseamento deva ter um certo cuidado. Isso traz algum medo, é preciso alguma coragem”. Foi Diogo Infante, director do Teatro da Trindade, que lhe lançou o repto em 2019 de se estrear em Shakespeare. 

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Nesta “comédia de enganos e travestis”, como lhe chamou Jorge de Sena, salta à vista desde logo a escolha de um elenco totalmente masculino, ideia proposta por Infante e acolhida por Neves-Neves – curiosamente quando, umas ruas abaixo, mostrava no São Luiz Banda Sonora, peça só com mulheres –, tal como se fazia no teatro isabelino “que considerava o palco um lugar impuro para as mulheres”, recorda o director do Teatro do Eléctrico. Por esta hora, dá-se uma situação similar no Teatro da Comuna, onde se mostra uma versão 100% masculina de A Casa da Bernarda Alba, do espanhol Federico Garcia Lorca.

Voltando a Noite de Reis. Não é que Neves-Neves orquestre a equipa a regra e esquadro em busca de uma paridade de género, mas frisa que o ensemble musical é totalmente feminino. Também o cenário é de Ana Paula Rocha, os figurinos de Rafaela Mapril e o desenho de luz de Cristina Piedade, directora técnica da Companhia Nacional de Bailado. Uma semana depois de um protesto no Teatro São Luiz a pedir mais representação trans no elenco da peça Tudo Sobre a Minha Mãe, Neves-Neves reconhece que este é um momento sensível e não descarta “a possibilidade de alguma coisa acontecer”. “Vamos ver se não nos cancelam por termos um elenco só de homens, há essa possibilidade, claro, de virem para aqui partir uns vidros, ou darem um tiro a um actor ou a mim, e o espectáculo ser cancelado”, diz. “Como não sou mulher, não posso falar pelas mulheres, mas tenho muita vontade de perceber se há alguma mulher que se sinta ofendida com o espectáculo. Honestamente queria perceber isso.”

Na peça, 13 actores levam à cena a história que tem como intriga principal um naufrágio que deixa Violeta à deriva e que a obriga a fazer-se passar por um homem, Cesário. O que se sucede é uma tempestade amorosa de amores não correspondidos, trocas de identidade e questões existenciais. Três homens interpretam Maria (Adriano Luz), Olívia (Filipe Vargas) e Violeta (Cristóvão Campos). "Queria brincar um bocadinho com o que já está no texto. O que é que nós estamos a ver? Estamos a olhar para o actor masculino, estamos a olhar para a personagem verdadeira que é feminina ou estamos a olhar para o disfarce que é masculino?”, questiona o encenador, que recorda que a palavra “drag”, “foi inventada por Shakespeare, dressed as girl, e é um acrónimo que vem precisamente desse período em que os homens se vestiam de mulheres, era uma forma de identificação, era uma identificação cénica e o drag vem daí”. E continua: “Apesar do peso da sociedade patriarcal, de as mulheres estarem proibidas de pisar o palco, etc., havia também uma certa atracção pela androginia, pela confusão entre os sexos”.

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Na peça que agora se estreia no Teatro da Trindade não há essa ambiguidade. “Acho que estamos todos esclarecidos quem é que são os actores e quem é que são as personagens masculinas e as personagens femininas, portanto acho que a verdadeira confusão não existe. Agora, fala-se sobre isso no espectáculo. Eles comparam-se, olham-se, dizem ‘tu pareces um homem, mas és uma mulher’, falam muito sobre aquilo que é o coração do homem, a forma de sentir, o coração da mulher, a forma de sentir, e quebram rapidamente essa diferença”. “Isso já está presente numa peça que tem 400 e tal anos, não é só uma coisa de agora”, lembra. 

Yo, I'll tell you what I want, what I really, really want, ouve-se a dada altura, antes de uma mota romper palco adentro. Spice Girls, Destiny’s Child, veículos motorizados em movimento, bombas de asma colocadas estrategicamente dentro de perucas. Há toda uma parafernália que reforça o lado cómico do espectáculo. “A comédia é um género de que eu gosto muito, em que me sinto muito à vontade de trabalhar, que me diverte, que me continua a entusiasmar, que me continua a empolgar”, admite Ricardo Neves-Neves. “Existem pessoas que acham que a comédia é um género menor e que fazer comédia é fácil, eu acho completamente o oposto. Não é nada fácil, não é nada óbvio, porque a comédia mistura tanto o lado racional como o lado emocional.”

Na verdade, as duas horas de Noite de Reis têm tanto de comédia como de melancolia. É “a natureza do texto”, explica o encenador, que para a dramaturgia partiu das traduções de António M. Feijó (encenada em 1998 por Ricardo Pais para o Teatro Nacional S. João), Henrique Braga e da brasileira Beatriz Viégas Faria. “O texto tem zonas vincadamente cómicas, mas depois toda a questão do amor... A fúria, a tristeza, a sensibilidade à flor da pele que o amor desperta também, leva a que o espectáculo tenha um certo lado lunar”. “Muita jura fazemos, mas pouco amor revelamos”, ouve-se em palco. Em Noite de Reis “ninguém é correspondido até no final de facto serem correspondidos. Metade do elenco ama a outra metade do elenco, mas ninguém é correspondido. Este constante desencontro faz com que as personagens passem por momentos melancólicos. Acho que nós nos identificamos todos com isto porque toda a gente já teve uma paixão não correspondida." 

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A importância do subtexto

Das escolhas musicais (a direcção musical é de Mrika Sefa), ao cenário etéreo ou ao tom cartunesco das personagens, há uma leveza que atravessa o espectáculo e que contrasta com as questões com que Neves-Neves espera confrontar a audiência. “É uma coisa que tenho procurado há muito tempo, como é que nós transmitimos e comunicamos qualquer coisa de forma leve. Sem aquele sentido pesado que às vezes é entendido como pedagogia, da alma, da lição”, diz. “Para mim o símbolo continua a ser muito importante. Seja o símbolo visual, seja o símbolo da palavra. A descodificação do subtexto continua a ser uma coisa muito importante, uma coisa que é às vezes até um bocadinho subvalorizada, porque tem havido uma tendência para as coisas serem muito directas. Acho que nós, o ser humano, não somos directos por natureza. E a nossa linguagem também não é directa. Quantas vezes dizemos uma coisa, mas a nossa expressão facial diz outra e a nossa expressão corporal diz outra?”. Em tempos de peças-manifesto, textos que reflectem urgência e acção (por vezes literal), Ricardo Neves-Neves crê que “a pedagogia, o lado documental, claro que são importantes, mas nós temos outra forma de comunicar. Tem de continuar a fazer parte da arte o símbolo e o subtexto. Como isso é uma característica do ser humano, se nós desaprendemos a interpretar o símbolo, o subtexto e o indirecto, começam-se a gerar mais equívocos entre as pessoas”.

Teatro da Trindade (Lisboa). 26 Jan-19 Mar. Qua-Sáb 21.00. Dom 16.30. 10€-20€

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