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O olhar é atraído para uma pedra da fachada como se ali houvesse um íman. Não pode ser. Mas só pode ser. É. Aquele é o monograma do Hospital Real de Todos os Santos, um O com um S dentro, iniciais de Omnium Sanctorum, o nome em latim do primeiro grande hospital central de Lisboa, que recebeu os seus primeiros doentes em 1502 e foi destruído pelo terramoto de 1755. Mas esse enorme edifício, de três pisos, ocupava o que hoje é a Praça da Figueira, e este emblema está na fachada de um prédio da Rua das Portas de Santo Antão. Como veio aqui parar?
Uma primeira hipótese de explicação: as pedras dos edifícios arrasados pelo terramoto foram reutilizadas para erguer novos prédios durante a reconstrução da cidade. Esta pedra, que nem sequer está sobre a porta do prédio, talvez não tenha passado de mero material de construção, um pouco como acontece com as lápides romanas que se encontram em paredes de edifícios que lhes são muito posteriores. Esta bela teoria cai por terra quando se recua uns passos e se passa a ver todo o edifício. A posição daquela pedra não é fruto do acaso. Não é material de construção, é uma placa e está precisamente no centro da fachada, foi ali posta por alguma razão. Tem de haver uma ligação deste prédio com o hospital.
Levanta-se uma segunda hipótese. Logo após o terramoto, com o Hospital Real de Todos os Santos em ruínas, foram instalados hospitais provisórios nas redondezas, para atender à população – um deles na Rua das Portas de Santo Antão. Terá este edifício sido construído em 1755, sendo-lhe então posta esta placa a identificá-lo como propriedade do hospital? Está na hora de ir ver o que nos diz o Google sobre esta morada.
Há poucos, mas bons, blogues sobre a história da cidade de Lisboa. Graças a eles descobrimos que esta foi a morada do Hospital de D. Maria de Aboim, fundado por seu testamento em 1375 e administrado por muitos anos por diferentes provedores, acabando por ser incorporado, em 1502, por D. Manuel I, no Hospital Real de Todos os Santos. Tudo bate certo, mas falta-nos a peça final – a que nos diz que aquela placa é inequivocamente um emblema do hospital de Omnium Sanctorum.
Deep Google adentro, percorremos ecrãs e ecrãs de referências irrelevantes até que surge uma pérola: chama-se “Placas foreiras do Hospital Real de Todos-os-Santos no acervo fotográfico da coleção Mac-Bride” e foi publicado em 2019 nos Cadernos do Arquivo Municipal. O artigo debruça-se sobre o levantamento fotográfico destas placas, feito em 1945 por Eduardo Portugal, seguindo as indicações de Alberto Mac-Bride, médico cirurgião e olisipógrafo com particular interesse pela história do Hospital Real de Todos os Santos. Embora nunca tenha sido fotografada, a placa foreira das Portas de Santo Antão, neste preciso edifício, é referida, o que significa que aquela placa foi ali instalada com o propósito de assinalar que aquele prédio passara a ser propriedade do hospital. Agora sim, tudo encaixa.
Alberto Mac-Bride foi um apaixonado por Lisboa e grande coleccionador de documentos e objectos de relevo para a história do Hospital Real de Todos os Santos e do seu sucessor, o Hospital de São José. A ele se deve também a reintrodução, em 1927, do antigo monograma, do S inscrito no O, no frontispício dos formulários de medicamentos. Actualmente, este emblema é usado como logotipo do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central numa série de objectos, que vão dos cartões de identificação aos automóveis, placas de trânsito, lençóis e batas.
O comum lisboeta tem o privilégio de poder ver nas Portas de Santo Antão o emblema original numa placa com mais de 500 anos de existência – talvez este seja o mais antigo logotipo português em uso.
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