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O Rouxinol
© António Pedro FerreiraO Rouxinol, uma ópera para a infância de Sérgio Azevedo

Uma para agora, outra para embalar. Como é que se faz música para a infância?

O que é que os miúdos gostam de ouvir? Como é que se escreve e compõe para gente de palmo e meio? Decidimos perguntar a quem sabe, de Sérgio Azevedo a José Barata-Moura.

Raquel Dias da Silva
Escrito por
Raquel Dias da Silva
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Se já está a imaginar rimas fáceis, acordes predizíveis e ritmos mais do mesmo, faça tábua rasa. A música para a infância não tem de ser isso. E não somos nós que o dizemos, são os entendidos – conversámos com uns quantos, mas antes, a razão para o fazermos: a ópera para crianças O Rouxinol, uma nova versão para ópera do conto O Rouxinol e o Imperador da China, de Hans Christian Andersen, que estreou em Janeiro e volta a cena já em Maio, nos dias 6 e 7. Com direcção musical do maestro João Santos e encenação de Mário João Alves, trata-se de uma encomenda do Teatro Nacional São Carlos (TNSC) a Sérgio Azevedo, que assina a música e o libreto. “Em 2017, levámos a palco L’enfant et les sortilèges, mas já não tínhamos uma nova produção de ópera para crianças de um compositor português pelo menos desde 2011”, diz ao telefone Elisabete Matos, que assumiu o cargo de directora artística do TNSC em 2019, meses antes de a pandemia dificultar a ambição de, por um lado, o tornar um “teatro internacional à séria” e, por outro, reforçar o Serviço Educativo e de Pedagogia. Agora, com o mandato renovado até ao Verão de 2023, a soprano convida-nos a testemunhar como, apesar dos reveses, não fez ouvidos moucos ao desafio.

A programação do TNSC para crianças entre os seis e os 12 anos é uma aposta fundamental para Elisabete e a sua equipa, que tem desenvolvido tanto as séries online O que é que a ópera tem? e ABC… Compositores!, como visitas guiadas e encenadas, que inspiraram a edição de Em Andante Appassionato, um livro de Jorge Rodrigues, ilustrado por Beatriz Bagulho, que dá a conhecer aos mais novos o teatro da ópera em Portugal e quem lá trabalha. “É necessário desmistificar esta ideia de que as crianças não entendem”, aconselha. “Não vamos, evidentemente, colocá-las a ouvir uma ópera de Wagner pela primeira vez, ainda que seguramente lhes despertasse emoções e sensações, mas temos de começar a cativá-las com óperas escritas a pensar nelas e por um compositor que vive e vai estar presente, inclusive para conversar sobre a sua criação.” O compositor é o já nomeado Sérgio Azevedo, que já tinha apresentado na Casa das Artes de Famalicão uma versão de bolso de O Rouxinol, não só destinada a ser fruída mas também interpretada por crianças.

O Rouxinol
© António Pedro FerreiraO Rouxinol, uma ópera para a infância de Sérgio Azevedo

“Esta [segunda] versão é mais ambiciosa [só poderia ser tocada por adultos], mas a abordagem é suficientemente simples para uma criança, a partir dos sete ou oito anos, seguir o espectáculo com compreensão e, eventualmente, não se aborrecer”, esclarece Sérgio, cujo repertório inclui uma grande produção para a infância, quer coral quer instrumental. “Todos os grandes compositores que escreveram para crianças, como o Ravel e o Stravinsky, simplificaram. Mas simplicidade não é simplismo, nem uma peça sofisticada e profunda deve ser chata. Uma coisa chata é uma coisa mal feita”, avisa. “A diferença está na duração – em vez de três horas, demora 45 a 50 minutos – e na forma como se conta a história.” Ou seja, tornar a linguagem mais acessível e respeitar o grau de desenvolvimento e os interesses dos miúdos não significa renunciar a certas complexidades nem à riqueza da música, neste caso operática, que inclui desde momentos sérios e dramáticos até situações com mais graça e melodia. Em princípio, é assim que deverá ser com outros estilos e formatos.

Mais do que escutar, vivenciar

“É preciso criar para as pessoas que temos à frente de uma forma instigante”, diz-nos Madalena Wallenstein, coordenadora da Fábrica das Artes do Centro Cultural de Belém e defensora acérrima de espaços de experimentação e descoberta, por exemplo através de iniciativas como o festival de música e aventura Big Bang. “Enquanto programadora, procuro não confinar os mais novos.” Promover espectáculos multidisciplinares, que não menosprezem o papel do dispositivo cénico, é uma das maneiras de o fazer. Esta é também a visão de Ricardo Neves-Neves. O director artístico do Teatro do Eléctrico tem demonstrado uma grande inclinação para cruzar o teatro com a música, razão pela qual tem trabalhado com nomes como Martim Sousa Tavares. “O foco deve ser sempre, na minha opinião, a combinação entre o estímulo à curiosidade, à surpresa e à narrativa”, afirma Martim, que estreou este ano, no LU.CA, Uma outra Bela Adormecida, em co-criação com Beatriz Brás e Francisco Lourenço. “Parte de um texto pouco conhecido de Agustina Bessa-Luís em que a autora re-interpreta o famoso conto de Pérrault”, revela sobre o espectáculo, que também voltará a subir a palco, também nos dias 6 e 7 de Maio. “Será muito diferente de O Anel do Unicórnio [a última produção com o Teatro do Eléctrico, que também deverá voltar à cena em breve] na medida em que não terá maestro em cena e os músicos tocarão de memória.”

O consenso que parece existir em relação à importância da experiência à volta do processo de escuta não é de agora. Quem o diz é José Barata-Moura, um dos maiores contribuintes para o cancioneiro infantil português, do Olha a Bola Manel ao Fungagá da Bicharada, que nos revela como a sua obra nasceu de momentos de conversa e brincadeira com os mais novos, muito antes de imaginar vir a gravar. “As primeiras escrevia-as em 1966, quando namorava com a minha mulher, que tinha uma família muito grande, inclusive miúdos que era preciso entreter entre o vir da praia e o jantar, e as vozes dos primeiros discos são as vozes daqueles com quem efectivamente as compus”, conta. “A força das minhas cantigas [muitas vezes apropriadas por outras vozes], e eu não sou modesto, está de facto aí [na convivência que as originou] e não numa mensagem ou doutrina que se queira agora incutir.”

José Barata-Moura
© Francisco Romão Pereira/ Time OutJosé Barata-Moura

Esta ideia de que se deve evitar cair em tendências paternalistas ou excessivamente formativas também é subscrita por vários compositores e cantautores actuais, de Martim Sousa Tavares a Capicua. “A proposta da Mão Verde [projecto que se assume pela natureza e a ecologia sem ser panfletário] sempre foi fazer música para crianças que pudesse agradar a todas as gerações”, explica a portuense, que está até convencida que, às vezes, “é na música para adultos que surgem muitos hinos da infância”, como A Formiga no Carreiro, de José Afonso.

O segredo do sucesso, no que à música para a infância diz respeito, estará, porventura, em entender que o mundo dos crescidos é o mesmo dos miúdos. Não há um prontuário único, mas múltiplos caminhos – e, apesar de a nossa atenção estar hoje muito mais dividida, fruto de uma maior oferta em termos de entretenimento e de canais de divulgação, continua a haver quem queira conversar com as crianças, ou com a criança que se foi. Barata-Moura nomeia quer os que continuam a dar a conhecer as suas canções, como a banda Fungaguinhos, quer jovens criadores, como os prolíficos Inês Pupo e Gonçalo Pratas, que também têm encantado gerações com projectos como o Galo Gordo, e não só, que saem quase sempre dos audiolivros para os palcos. E remata: “A possibilidade de pegar no material sonoro, de o levar às crianças e de o fruir com elas, mais do que o executar, e de isso ser um pretexto para as próprias crianças explorarem, é a grande questão.” Em relação a haver ou não novos clássicos, capazes de fazer concorrência a uma Joana Come a Papa, só o tempo o dirá.

Teatro Nacional São Carlos: O Rouxinol. 6-7 Mai, Sáb-Dom 16.00. 5€-20€ | LU.CA – Teatro Luís de Camões: Uma Outra Bela Adormecida. 6-7 Mai, Sáb-Dom 16.30. 3€-7€

Artigo actualizado, originalmente publicado na revista Time Out de Inverno 2022/2023, n.º 661

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