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Gregório Duvivier
©Pedro BonacinaGregório Duvivier

Gregório Duvivier: “O absurdo pode ser deprimente, mas também fonte de comédia”

O actor brasileiro traz novamente ‘Sísifo’, uma peça que é uma espécie de GIF vivo e uma crítica ao absurdo da nossa condição humana, que se apresenta em Dezembro em Lisboa, Porto, Coimbra e Águeda.

Escrito por
Mariana Morais Pinheiro
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Só um actor multifacetado, versátil e elástico como Gregório Duvivier é que conseguiria interpretar 60 histórias diferentes, mas repetitivas, sem nunca se tornar monótono. Juntamente com o encenador da peça, Vinícius Calderoni, o co-criador do colectivo Porta dos Fundos escreveu Sísifo, um espectáculo que vai do riso ao pranto, inspirado na mitologia grega, e que faz um paralelismo entre a história do mortal condenado pelos deuses a empurrar uma pedra pela montanha acima por toda a eternidade, e a nossa condição humana contemporânea. Dos absurdos do quotidiano, passando pelo mundo digital, onde cabem GIFs e memes, até à política brasileira, nesta peça, que se estreou em Portugal em 2019, há de tudo. Como diz Duvivier: “No teatro, a gente consegue contar qualquer história”. Para ver no CCB, em Lisboa, dia 7 de Dezembro; no Teatro Sá da Bandeira, no Porto, no dia 8; e nos dias 9 e 10, no Convento de São Francisco, em Coimbra, e no Centro de Artes de Águeda, respectivamente.

De toda a vasta mitologia grega, cheia de metáforas e analogias, porquê contar a história de Sísifo?
Boa pergunta. Porque acho que é um mito que explica um monte de coisas. Ele tem algo que a gente sentiu que captava o espírito de um tempo: essa coisa cíclica, sobretudo depois da pandemia, que deu, inclusivamente, outra leitura ao mito, porque ficámos presos aos dias repetitivos, à timeline que parece cíclica, e também a um Brasil com uma democracia que parece cíclica e que está sempre meio fadada ao ocaso, com a gente lutando o tempo todo para reconstruí-la. Então, sentimos que Sísifo era uma óptima maneira de falar de diversas situações. É uma peça meio rapsódica, porque ela tem vários sketchs tipo Porta dos Fundos. Tem comédia, mas também tem partes líricas e poéticas, e é essa metáfora de Sísifo que une todos os personagens, eles estão todos presos dentro de um ciclo. 

Esses ciclos podem ser equiparados aos empregos fúteis e repetitivos de que Albert Camus fala no seu Mito de Sísifo, por exemplo? É uma alegoria, uma metáfora da nossa condição humana?
Sim, exactamente. O Camus tem essa leitura, mas também tem outras possíveis. A gente pode falar de Sísifo como o actor. O actor é uma espécie de Sísifo porque está sempre repetindo as mesmas coisas em palco e tem que retirar algum prazer dessa repetição. Com um apaixonado acontece o mesmo. Sabemos que o apaixonado, em certo momento, vai desapaixonar-se também. Acho que a gente está o tempo todo lidando, na vida, com essa questão do eterno retorno das coisas, como diria Nietzsche, e com a ideia de que todo o esforço é vão porque ele está fadado ao recomeço. Você escova os dentes sabendo que vai sujá-los. Você toma banho sabendo que vai precisar de tomar outro. Todo o esforço na vida é vão e esse absurdo, que é o termo que Camus usa, pode ser deprimente, claro, mas também pode ser fonte de comédia.  

Gregório Duvivier em ‘Sísifo'
Daniel BarbozaGregório Duvivier em ‘Sísifo'

E como é que se transforma o absurdo da vida em comédia?
O humor serve para olhar para o absurdo da vida e tirar proveito dele, porque esse absurdo é muito engraçado. O Porta dos Fundos vive disso, de extrair o absurdo da vida. Uma mesma situação que te pode deixar completamente perplexo, se você conseguir ter um olhar humorístico, um olhar distanciado, no qual você vê a sua própria vida como um espectador, você consegue libertar-se do absurdo. O olhar humorístico é um olhar no qual você consegue olhar para si mesmo como se fosse outro. A capacidade de você se rir de si mesmo é uma libertação, é a sublimação de todos os males da vida. Esse distanciamento, como se você estivesse numa grua de cinema, é o objectivo dos comediantes, mas acho que das pessoas também, de um modo geral.

É esse distanciamento, essa capacidade de nos rirmos de nós mesmos que torna a existência mais fácil e que não seja tão doloroso carregar essa tal bola de mármore pela montanha acima, como Sísifo estava condenado a fazer?
Exactamente. Todo o esforço da psicanálise e também todo o esforço da comédia, é fazer você entender que o que consideramos ser a grande tragédia das nossas vidas, é também uma máscara, que pode ser ridícula – não sempre, claro, mas quase sempre. E foi isso que me fez querer ser comediante quando era criança. Vi que coisas que eram muito dolorosas para mim, eram muito engraçadas para os outros. Lembro-me de subir ao palco com nove anos, morrendo de medo, porque era muito tímido. Subi obrigado porque os meus pais eram artistas e queriam que eu fizesse teatro porque era tímido demais. Eu não falava um oi, não dava um bom dia, mal-educado, não sabia conversar, nem olhar para as pessoas, não conseguia interagir. E aí, os meus pais me botaram no teatro meio à força. Subi no palco e com a minha voz muito aguda, falei: “Meu nome é Gregório” [diz com a voz esganiçada]. Acho que o nome deve ter feito as pessoas rirem porque é um nome ridículo. Em Portugal, mais ainda, né? No Brasil é um nome centenário, não nasce um Gregório há uns cem anos [risos]. Nesse momento as pessoas morreram de riso e eu percebi que o que para mim era um peso, um fardo – que é esse nome, essa voz –, fez as pessoas felizes. Então, eu posso ser uma dessas pessoas se eu conseguir olhar para mim como elas me estão olhando. A percepção de que é possível olhar para as nossas dores de uma maneira cómica é muito libertadora.

Gregório Duvivier em ‘Sísifo'
Daniel BarbozaGregório Duvivier em ‘Sísifo'

Foi uma espécie de epifania? Perceber, naquele momento, que querias fazer teatro para o resto da vida?
Foi. Foi um momento que eu vou lembrar para sempre, porque foi muito catártico: perceber que consegues organizar toda a tua vida em torno de uma experiência de troca. Aquilo que para você é seríssimo, não precisa de ser. E a sua falha pode ser, na verdade, um grande aliado. A percepção de que a sua vulnerabilidade é um tesouro é o que você tem de melhor, de mais precioso. As pernas arqueadas do Chaplin, o tamanho comprido do Jacques Tati ou aquele semblante do Mr. Bean... Em qualquer outra profissão atrapalharia. Não sei se você confiaria num médico com a cara do Mr. Bean [risos]. O comediante é alguém que faz desses defeitos uma qualidade, exacerbando-os. 

Esta peça tem várias histórias dentro dela, que vão da comédia à tragédia, da poesia ao drama. O que é que é mais difícil fazer?
Olha, é difícil dizer mas acho que a comédia é das coisas mais difíceis que já fiz na vida. Mas é, ao mesmo tempo, também a mais gostosa e desafiadora, porque o fracasso na comédia é muito facilmente percebido. Ele é gritante. Você não consegue ouvir se as pessoas estão chorando ou se emocionando, mas na comédia é muito facilmente perceptível quando ela fracassa. O silêncio é o pesadelo de todo comediante. Quando você consegue ouvir o ar condicionado ou o reflector que faz “tzzzzz” [risos]... A comédia é muito difícil por isso. O acerto e o erro são gritantemente diferentes.

Vocês já sofreram com a cultura do cancelamento?
Eu acho que cada um tem um posicionamento e, claro, talvez exista um ou outro exagero nessa política, mas eu nunca senti isso. Há mais críticas hoje na Internet porque as pessoas têm mais voz e, hoje em dia, todo o mundo tem um perfil e um canal para dizer o que pensa, mas isso não significa que não se possa dizer mais nada. Pelo contrário, você tem mais liberdade. A Porta dos Fundos é a prova disso. Nós tentávamos fazer os sketches do Porta dos Fundos na Globo, mas não conseguíamos. Diziam que não se pode falar de política na TV aberta, não se pode falar de marcas, não se pode falar de nada. O cancelamento já existia nessa época. Só que era um cancelamento mais corporativo. E na Internet a gente conseguiu falar do que a gente queria. Não posso dizer que o mundo está chato, não. Pelo contrário, o mundo, para mim, está mais livre do que nunca. 

Gregório Duvivier em ‘Sísifo'
Daniel BarbozaGregório Duvivier em ‘Sísifo'

Voltando à peça, como é que a mitologia grega se relaciona aqui com os memes e os GIFs actuais?
O barato do teatro é que nele cabe tudo. No teatro, a gente consegue contar qualquer história. O cinema e a Porta dos Fundos têm restrições orçamentais, não se consegue filmar qualquer coisa, porque é preciso produzir um cenário, uma arte, um figurino, tudo… Já no palco, você consegue falar “Povo hebreu” em cima de uma rampa e aquela rampa, de repente, vira o mar Morto e a plateia vira o povo hebreu seguindo Moisés. De repente, eu viro e digo “Meu amor, calma” e estamos no meio de uma briga de casal em que a plateia é a mulher amada. O teatro tem esta possibilidade. Pode contar tudo. E, a partir do momento em que o actor fala algo, aquela realidade se instaura e passa a ser verdadeira, palpável, concreta. Isso só se encontra no teatro. E é assim que a peça opera, usa o mito como um meme, como algo que tem mil interpretações. A rampa, a montanha, é uma metáfora. Às vezes ela é a vida humana inteira, às vezes ela é o trabalho árduo, às vezes ela é o amor, às vezes ela é um deserto. Então, a gente preenche esse meme que é Sísifo (uma imagem que pode ser preenchida com vários significados), de mil situações da vida contemporânea quotidiana: o amor, a timeline, as produções sem sentido, a política. Há muitas coisas que cabem nesse mito.

E quem são essas personagens que dão corpo a Sísifo?
Tem de tudo. Tem Moisés discursando para o povo hebreu; tem um vendedor de mate na praia do Rio de Janeiro; tem um casal onde o homem discute a relação – esse homem num outro momento se apaixona e, num outro ainda, termina –; tem um pai falando com um filho; tem um homem fazendo uma live enquanto se suicida. Tem de tudo. São sketches que se vão conectando ao longo da peça.  

Porque é que vale a pena ir vê-la?
Porque é um espectáculo que vagueia por diferentes géneros. Tem um pouco de Porta dos Fundos, de humor, mas tem também poesia e tristeza. E o português tem um humor muito sério, entende? Diferente do brasileiro, que faz humor rindo. O humor do português tem uma seriedade, um cinismo, tem essa coisa trágica. E a peça, por sua vez, tem um humor com fatalismo que os portugueses adoram. E que eu adoro nos portugueses.

Gregório Duvivier em ‘Sísifo'
Daniel BarbozaGregório Duvivier em ‘Sísifo'

Centro Cultural de Belém (Lisboa). 7 Dez (Qua) 21.00; Teatro Sá da Bandeira (Porto). 8 Dez (Qui) 21.30; Convento de São Francisco (Coimbra) 9 Dez (Sex) 21.30; Centro de Artes de Águeda. 10 Dez (Sáb) 21.30. 20-32€.

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