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Fábio Porchat
Arlei Lima

Há uma tendência na comédia? Para Fábio Porchat, “o humor sem graça”

Porchat está de volta à estrada com um solo de stand-up. Em entrevista, o humorista brasileiro do Porta dos Fundos fala das memórias de Portugal, do equilíbrio do discurso politizado e da ascensão do que chama de “humor do bem”.

Joana Moreira
Escrito por
Joana Moreira
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Em momentos difíceis, o humor pode servir para dar alfinetadas no governo, chamar a atenção para temas fracturantes, aprofundar questões sérias. Fábio Porchat concorda com tudo isso. E, ainda assim, o humorista brasileiro e co-fundador do Porta dos Fundos lança-se numa primeira tour europeia com um espectáculo “zero político”. “Senti que as pessoas estavam querendo rir, estavam querendo coisas mais leves, rir junto”, diz sobre O Novo Stand Up de Fábio Porchat, espectáculo que se estreou em Portugal no ano passado, e que torna aos Coliseus do Porto e Lisboa a 13 e 15 de Fevereiro, respectivamente. A crítica mordaz fica para os outros meios em que se move. “Faço humor no cinema, no teatro, na internet, na televisão. Não preciso ser político em todas as frentes.”

O Novo Stand Up de Fábio Porchat não é um novo stand-up de Fábio Porchat. O que é que há de novo?
Pois é. Na verdade, quando estreei este show novo, a estreia mundial foi aqui. Não tinha título e falei ‘vamos chamar de O Novo Stand Up de Fábio Porchat’. Até porque tem tudo a ver com Portugal, que gosta da literalidade das coisas. Agora vou voltar para a tour na Europa. Se eu chamo de Histórias do Porchat os portugueses vão achar que é um espectáculo diferente, e é o mesmo. Diria que há 30% de novas coisas em relação àquele show que o pessoal assistiu da última vez. [Acrescentei] novas histórias, tirei algumas outras. O espectáculo está mais redondo, já entendi como ele funciona. No final de contas, fiquei em cartaz no Rio de Janeiro sem parar cinco meses, fazendo quatro vezes por semana. Isso dá um outro ritmo para o espectáculo também.

Andou um pouco por todo o país, com Viagem a Portugal, a série sobre Saramago que fez para a RTP. Alguma peripécia dessas viagens entrou para o texto do espectáculo? 
Entrou. Começo em Portugal a peça de outro jeito, falando de Portugal, da minha estada aqui, das minhas confusões, e tem funcionado muito. No ano passado funcionou e espero que funcione agora. 

Como por exemplo...
Não vou dar spoiler, mas uma das coisas que aconteceu foi no Porto, quando fui visitar a Fundação de Serralves e me confundi um pouco com o taxista que me levou até lá. Me perdi um pouco na tradução [risos]. 

No Brasil, tem um programa televisivo em que pergunta aos entrevistados, entre outras coisas, sobre as primeiras lembranças. Qual é a sua primeira memória de Portugal? 
A minha primeira memória de Portugal foi em 98, na Expo. Vim com a minha família para cá e era a Copa do Mundo. Lembro-me de assistir à final, em que o Brasil perdeu, e de os portugueses estarem torcendo pelos brasileiros. Lembro disso com carinho. Também era fácil torcer pelo Brasil porque era contra a França. Tenho essa recordação daquele pavilhão da Expo, eu com uns passaportes. Você ia nos lugares e eles carimbavam no seu passaporte. Tinha o quê, uns 14 anos. Lembro que o Oceanário já estava pronto também. Tenho bons momentos. Lembro de comer muito. De falar ‘meu Deus do céu, que lugar é esse onde não se pára de comer’.

Num país tão grande como o Brasil, tornar-se um dos comediantes mais conhecidos é sinal que a comédia é profundamente transversal, ou democrática?
Acho que a comédia se está tornando democrática. A gente está num momento no Brasil, e no mundo também, em que a gente está gerando mais opoprtunidades para comediantes mulheres, comediantes negros, para que eles tenham destaque. Antigamente o humor era totalmente masculino. Ainda é. Mas hoje em dia já tem muitas mulheres fazendo comédia, por exemplo. É sempre uma grande reclamação das mulheres no mundo todo que a comédia é um meio muito machista, de muito homem. Vejo isso a mudar. Está se tornando um pouco mais democrático, o que é óptimo. A gente precisa de novos olhares, de novas opiniões, de novas pessoas fazendo comédia. Não só o meu tipo fazendo comédia.

Fábio Porchat
Arlei Lima

Numa entrevista, em 2016, disse “que o próximo passo do stand up era fazer a pessoa rir e pensar ao mesmo tempo”. Ainda acredita nisso? 
Acredito. Isso digo no Brasil porque o stand-up é muito recente. Claro que o Jô Soares já fazia stand-up, mas muito com piada pronta, com causos, não era esse stand-up em que o comediante escreve o próprio texto, é dono da própria piada. Isso é uma coisa que vem de 2006, 2007 para cá. Inclusive eu faço parte dessa retomada do stand-up, dessa nova geração aí escrevendo o próprio texto. Começa tudo caótico, falando muito palavrão, falando muito das situações mais corriqueiras. Um avanço para o stand-up é começar a se aprofundar em questões mais sérias, como nos Estados Unidos, onde eles falam de racismo, de política, contra o politicamente correcto. O Brasil tem de caminhar mais para esse lugar. Com esse novo espectáculo eu não fui para esse lugar porque a gente vinha de um momento diferente, que era pandemia, que era um governo muito difícil para o país. Senti que na retomada as pessoas estavam querendo rir, estavam querendo coisas mais leves, rir junto. Fiz exactamente um espectáculo zero político, zero polémico, para que incluísse todos. Falo das minhas viagens. Para todo o mundo rir das minhas bobeiras, rir das minhas bobagens. O Brasil estava precisando disso. E isso se mostrou muito certeiro. Vi o público voltando ao teatro e a peça foi um sucesso justamente porque as pessoas falaram ‘nossa, eu nunca ri tanto, estava precisando rir assim’. Claro, a gente estava há três anos rindo sozinho. E rir sozinho é diferente. Você está em casa a ver um filme, por mais engraçado que seja você faz [ri-se em tom baixo]. Você não faz [solta gargalhada]. É muito difícil isso acontecer sozinho. Quando tem mil pessoas à sua volta rindo você ri assim. 

O seu posicionamento público tem caminhado para aí, tem-se tornado mais politicamente activo. Mas o seu humor não necessariamente, é isso?
Não. Eu tenho tantas frentes… Faço humor no cinema, no teatro, na internet, na televisão. Não preciso ser político em todas as frentes. Na Porta dos Fundos continuo super político. Nos programas, fazia parte do Papo de Segunda, que era um programa de opinião lá no Brasil, super político. Mas também posso ser mais leve. É equilibrar. Se não viro o chato que está o tempo todo falando contra isso tudo que está aí. Chega a uma hora que você fala: ‘pelo amor de Deus, me conta aí uma piada de marido e mulher para me dar uma aliviada’. Tento equilibrar. Nesse caso senti que no teatro era melhor eu ir um pouco mais leve. Até porque os nervos no Brasil estavam à flor da pele, as pessoas um pouco nervosas. Ainda estão, mas as coisas estão tomando outro rumo. No teatro senti que podia ser um pouco mais leve, para na internet poder ser um pouco mais incisivo. Para nas mídias sociais poder me impôr mais. Tento fazer um equilíbrio.

Se tivesse de dizer uma tendência actual do humor, qual seria? Essa politização?
Está havendo agora o humor sem graça. É uma luta pelo humor que quer muito mais lacrar, que quer muito mais mostrar que é correcto, e que fala e que chama a atenção para assuntos importantes, mas que não tem a menor graça. Isso está acontecendo muito, sendo um pouco inflamado e incensado pela esquerda que diz que isso é o humor do bem. Quando, na verdade, o outro é que bate em tudo e todos. É claro que a gente sai do humor que durante muito tempo foi preconceituoso e agressivo com minorias. Lógico que isso não pode acontecer. A gente tem que mudar essa chave. Mas o humor precisa de continuar a ser engraçado. Não dá para ser só um humor que mostra as coisas boas da vida. Aí não é humor. Lá no Brasil está havendo esse humor, sendo apelidado de lacromédia, que é você lacrar tentando ser engraçado e não conseguindo ser. Acho que isso é um fenómeno mundial, na verdade. Se você me falar as dez séries que você mais gosta de ver, talvez as dez sejam drama. Talvez dificilmente alguma delas seja comédia. E, se for, provavelmente não é uma comédia que te mata de rir. É uma comédia bem humorada, simpática. Se te falar dos filmes que mais te marcaram, talvez não sejam comédia. As comédias começaram a ficar com um certo receio porque os assuntos não podem mais ser abordados no humor. Se não vai ser cancelado, as pessoas vão reclamar. Se dou opinião hoje e digo ‘engraçado, não gosto de tapete’, os fazedores de tapete vão dizer que é um absurdo, pois gera emprego. Vai sair uma matéria dizendo os benefícios do tapete numa casa, tem familiares que vivem da fazeção de tapetes. E você só não gosta de tapetes. Não importa, as pessoas já estão pré-ofendidas. Porque a vida é muito cruel, é muito injusta. As pessoas querem atenção de um modo geral, e as redes sociais dão a falsa sensação de que a gente tem alguma importância, de que a gente serve para alguma coisa. Mas na verdade somos oito bilhões de seres insignificantes que seremos esquecidos na terceira geração. Mas a gente não quer ser esquecido. A gente quer ser incrível. A gente quer gente do lado falando que a gente é incrível. Então a gente vai lá e fala e dá opinião. E vem alguém falar ‘é isso mesmo’. E quando alguém fala isso mesmo parece que você ganhou uma importância… Quando na verdade não, a gente continua sendo o mesmo bicho que fomos há dez mil anos.

A questão de não ser esquecido faz-me lembrar de uma outra pergunta que faz muitas vezes no seu programa [Que História É Essa, Porchat?, do canal GNT]: o que é que quer ver escrito na sua lápide? 
[Suspiro.] Na minha lápide... Eu teria escrito ‘morri e se não voltei é porque deus não existe’.

Claro que pode ter piada com mulher. Pode. A mulher não aguenta é mais ser chamada de burra. Pelo amor de Deus, já foi, já passou. Vamos fazer outra coisa?

Voltando ao papel do humor no activismo. Um humorista pode ser activista? 
Acho que sim. Você tem de saber para que público você quer fazer a sua piada. Eu gosto de poder bater em todo o mundo. Gosto de poder sacanear todos, a mim inclusive. Acho que o humor tem de ser do contra. O humor a favor é propaganda, como até diria Millôr Fernandes. A gente tem que poder rir de tudo, poder brincar com tudo. Mas é preciso entender que há ali uma responsabilidade sobre aquilo que você está falando. Se o seu humor incita o ódio, incita a violência, propaga preconceito, me parece muito ruim que você esteja engajado para esse lado. A gente tem tanta possibilidade... Vejo muita gente dizer ‘ah, mas antigamente podia fazer’. Pois, mas antigamente passou, a gente está em 2023. Do que é que a gente vai falar hoje? Do que é que a gente quer rir hoje? Quem é que posso incluir na minha piada? Porque é que vou propagar coisas ruins a respeito de pessoas que às vezes sofrem na pele literalmente coisas? É um olhar sobre isso. Mas isso não significa que eu possa falar. Claro que pode ter piada com mulher. Pode. A mulher não aguenta é mais ser chamada de burra. Pelo amor de Deus, já foi, já passou. Vamos fazer outra coisa? Pode fazer piada com negro, com gay, claro que pode, óbvio. Só que a piada que se fazia antes desmerecia, diminuia, colocava o negro e o gay numa situação de inferioridade de raça, de género, enfim. Aí não, a gente está falando de uma outra coisa, da propagação de um preconceito que a gente está lutando contra isso. Mas sim, dá para se fazer piada e ser activista.

Nos últimos anos os humoristas mostram-se saturados com a conversa dos limites do humor. Mas então não há temas tabu ou limite, mas antes que devem merecer reflexão. 
Estamos numa eterna evolução. E a comédia tem de evoluir junto com a sociedade. É claro que é um pêndulo. Às vezes vai mais para lá, às vezes vem mais para cá e uma hora volta e normaliza. A gente está aprendendo. Os comediantes estão aprendendo. A sociedade está aprendendo. Hoje em dia é tudo muito rápido. Tomou uma proporção maior do que realmente é. A gente não tem mais a possibilidade de errar. Se você comete um deslize isso sai em todos os jornais, as pessoas te cancelam, sai nas redes sociais. E você fala: ‘peraí, eu preciso aprender’. Vocês precisam me perdoar. Se não é uma piada nitidamente nazista em que estou aqui apoiando o Hitler propositalmente, calma. Às vezes fiz uma piada que saiu torta, que saiu errada. Aí tudo bem, vocês podem me apontar que não é por aí. Daí a acabar com tudo o que estava sendo feito... Afinal de contas o ditado diz que errar é humano. É errando que se aprende, mas não se pode mais errar. É mais difícil.

Policia-se a construir texto para um espectáculo como este?
Com certeza. Estou o tempo todo prestando atenção no que é que isto vai gerar. Algumas vezes para ver se estou muito equivocado. Outras vezes para dizer: ‘Não quero comprar essa briga, não quero entrar neste tipo de discussão que vai infernizar a minha vida por causa de uma piada, para mim chega’.

Que tema é que normalmente o leva a ter essa reacção? 
Os temas mais polémicos, espinhosos. Se a gente vai falar de religião já sabe que vai ter um tipo de relutância. Se vai falar de política... Tem esses lugares que a gente já sabe. Mesmo quando você vai falar de racismo e você está fazendo do jeito certo, tem gente que não entende assim. É o famoso ‘você não pode brincar com isso’. É muito engraçado. Como assim não posso brincar com isso? Posso brincar com o que bem entender. Talvez você é que não possa receber uma piada dessas. Aí, então, não precisa de receber. Não é que eu estou entrando na casa da pessoa, abrindo e entrando: ‘vou fazer uma piada agora’ e a pessoa ‘não, não! Não quero!’. Se não quer ouvir essa piada, não ouça. Desliga a TV, desliga o computador e não ouça a piada. Mas você querer proibir ela de ser dita? Ela realmente precisa de ser um crime para isso acontecer. 

O policiamento não reduz o espaço para o improviso? 
Reduz. Ao mesmo tempo leva a gente a pensar antes de falar. Lembro, no comecinho do stand-up, ali em 2007, 2008, qualquer coisa as pessoas falavam: ‘Ah, mas eu falei sem pensar’. Nada é bom sem pensar. Tudo a gente precisa pensar antes. Para comer, para transar, para falar, a gente precisa de pensar antes. ‘Ah, não tinha nem pensado isso’. É ruim quando a gente não tinha nem pensado nisso, quando não consegue antecipar a reacção das pessoas. Isso não pode nos cercear. ‘Ah, não vou fazer essa piada com medo do que vai acontecer’. Isso é um perigo de acontecer. Agora eu parar para pensar para ir fazer a minha piada com mais propriedade, aí é óptimo. 

Coliseu Porto Ageas. 13 Fev. Seg. 22.00. 25-42€. Coliseu de Lisboa. 15 Fev. Qua. 22.00. 22-42€

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  • Comédia

Tem uma gargalhada característica, um sentido de humor próprio e piadas rápidas, conhecidas por one liners. Já gozou com crianças com síndrome de Down, soldados feridos no Afeganistão e Reeva Steenkamp, assassinada por Oscar Pistorius – três exemplos do humor negro e desconcertante de Jimmy Carr. Falámos com o britânico, um dos mais destacados humoristas da actualidade.

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