O Terramoto de 1755
©DRO Terramoto de 1755, pintado entre 1756-1792 por João Glama Ströberle (1708-1792). Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa, Portugal.

Apocalipses da História de Portugal: os vários fins do mundo em Lisboa

Como é que se viveram os anunciados fins do mundo em Lisboa? Da “peste-castigo” à ameaça dos marcianos, o historiador Joaquim Fernandes conta-nos tudo.

Raquel Dias da Silva
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Ao longo da história e até antes da sua fundação, Portugal foi por inúmeras vezes atormentado pelas angústias do “Juízo Final”, que as crendices e superstições populares, arraigadas quer na cultura religiosa quer na imaginação individual e colectiva, desde sempre associaram a calamidades diversas. Cometas, auroras boreais, eclipses, pragas, epidemias, terramotos e até alegadas invasões extraterrestres, de tudo um pouco aterrorizou o país. Com base numa pesquisa exaustiva de fontes de diversas épocas, esses acontecimentos e eventos transcendentes são-nos contados, por ordem cronológica, em Apocalipses – Os Vários Fins do Mundo da História de Portugal (Contraponto, 16,60€), o novo livro do historiador Joaquim Fernandes. “São crises-limite, de grande impacto nas populações”, assegura o professor universitário, que convidámos para nos guiar por alguns dos dramas apocalípticos mais emblemáticos da história da cidade de Lisboa.

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Apocalipses da História de Portugal: os vários fins do mundo em Lisboa

O Juízo Final

“Durante o século XVIII e XIX, Lisboa viveu situações terríveis. Mas, até antes disso, a peste e outras doenças mortais, que não podemos dissociar das questões de higiene pública, se declararam entre a população, estando registadas pela própria imprensa periódica lisboeta, que às vezes também contribuía para a difusão das falsas profecias”, revela o professor Joaquim Fernandes, que não escreveu este livro a pensar na actual pandemia, mas verificou várias semelhanças no comportamento das populações. “Falamos das reacções instintivas e emocionais, que têm a ver com o nosso cérebro primitivo. As teorias da conspiração, por exemplo, são uma tónica dominante, porque estamos sempre à procura de justificações inimagináveis para situações que não controlamos. Mas também a dualidade medo-festa, com uns a fazer penitência, acudindo às Igrejas para salvar a sua alma, e outros a gozar os últimos dias, em desconfinamento total.”

Sinal no céu, novidade na terra

Coincidindo com acontecimentos funestos, os “terrores celestes”, como os eclipses, têm desencadeado, desde sempre, reacções supersticiosas. Entre as muitas aparições de astros móveis capazes de causar alarme social, o professor Joaquim Fernandes destaca o “derradeiro exemplo ocorrido já nos finais do século XVII”, que que Rodrigo da Costa, um padre da Companhia de Jesus, testemunhou como sendo um “espantoso eclipse do Sol que meteu grande terror nas gentes, as quais se acolheram ao sagrado das igrejas, confessando-se e fazendo penitência.” Embora esta “ditadura da astrologia” tenha sido confrontada por diversas vezes em diferentes épocas, as profecias apocalípticas baseadas em sinais do céu continuaram a surgir.

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A “peste-castigo”

A peste foi a mais persistente de entre outras doenças mortais periódicas, que deixaram um infindável rasto de vítimas ao longo dos séculos, em particular na Idade Média. O historiador Joaquim Fernandes destaca, por exemplo, o cerco de Lisboa pelo rei D. João de Castela, em 1384, durante o qual a peste negra se propagou como fogo dentro da cidade e pelos arraiais castelhanos, ceifando as vidas dos invasores. “No entendimento da leitura religiosa do tempo, os céus acabaram por nos ser favoráveis, castigando pela peste quem nos sitiava, nomeadamente as tropas de Castela, que tiveram de desistir porque a própria rainha foi empestada”, conta. “É um dos ex-libris de apocalipses vividos pela cidade de Lisboa, enquanto capital do reino.”

O grande sismo de 1755

Sobre o tremendo abalo de 1755, que devastou boa parte de Lisboa, entre outras regiões do nosso mapa, “dir-se-ia que os elementos terra, água e fogo convergiram para fazer do grande terramoto um autêntico apocalipse, em termos materiais e de vidas humanas”. De uma população de 300 mil habitantes na capital, terão morrido uns 90 mil, algumas centenas directamente vitimados pelo tsunami, que prosseguiu ao sismo e engoliu, em ondas de cinco metros a 42 quilómetros por hora, quem fugiu para junto do Tejo, para escapar aos edifícios e ao horror da visão das suas ruínas. “O novo perigo se difundiu por toda a cidade e seus subúrbios, com uma voz vaga, que dizia que vinha o mar cobrindo tudo...”, lê-se num dos registos da época.

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As “chuvas de sangue”

As apelidadas “chuvas de sangue”, que a meteorologia de hoje explica mesmo sem uma uniformidade de causas, entram também no catálogo de fenómenos apocalípticos. No Tratado dos cometas que apareceram em novembro passado de 1618, Manuel Bocarro dá conta de ter chovido sangue “no mar de Setúbal por espaço de duas horas”. Antes, por exemplo no histórico 28 de Janeiro de 1512, um terrível terramoto, que subverteu 200 moradas de casas na Costa do Castelo e provocou a morte de pelo menos duas mil pessoas, também “foi visto o ar incendiado em fogo” e choveu água cor de sangue.

Lisboa a arder

Em 1848, despontou nos céus alfacinhas uma aurora boreal, que foi contemplada pelos habitantes da capital ao longo de quatro horas e mereceu crónicas a seu respeito, nas quais se lamentou a falta de ideias elementares de física. Segundo consta, o evento levou a gritos de misericórdia, ao fecho de lojas e até à morte de um “homem abastado, que o susto tomou a ponto de sucumbir completamente”. Como este seguiram-se outros, por exemplo em 1970 e 1938, em que “o céu começou a esbrasear-se”, fazendo com que a abóbada celeste parecesse envolvida por fogo. “As pessoas estavam convencidas que iam morrer queimadas, porque o céu estava a arder”, conta-nos o historiador.

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Halley, o cometa da República

No ano da instauração da República em Portugal, também se viveu o maior evento de medo colectivo jamais sentido pela população portuguesa. Já reconhecido de uma visita anterior, em 1842, o famoso cometa Halley causou uma onda de pânico, em todo o seu esplendor trágico e cómico. Como nos grandes dramas de antecipação científica, a sociedade portuguesa viveu o transe de uma noite de “fim de mundo”, marcado para 19 de Maio de 1910. As farmácias começaram a vender mezinhas milagrosas, para o suposto efeito letal do gás presente na cauda do cometa, e a hotelaria lisboeta anunciou eventos gastronómicos para admirar a passagem do astro errante. Mas não só. Infelizmente, com o medo, também houve muitos suicídios.

Marcianos em Carcavelos

“Marte é uma das nossas grandes fixações”, assegura o historiador, que se doutorou com a primeira tese sobre a temática extraterrestre em Portugal. E também nos conta como, no dia 25 de Junho de 1958, a Rádio Renascença interrompeu um programa de orquestras ligeiras para dar conta do fim do mundo, com uma invasão de extraterrestres, que aterrorizou milhares de pessoas e provocou inclusive o maior engarrafamento de sempre na estrada marginal. “O radialista Matos Maia foi o responsável por essa história do desembarque de marcianos em Carcavelos e a PIDE não gostou nada da brincadeira. Tive o privilégio de conversar com ele em vida e foi-me inclusive passado um testemunho escrito da sua experiência, que incluiu um dia inteiro de interrogatório.”

Eventos astronómicos, ficção científica e outros sustos

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