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João Botelho: "Este é talvez o meu filme mais colectivo"

Entrevista a João Botelho, que se atirou à 'Peregrinação' e conta como é que levou tal barco a bom porto

Escrito por
Eurico de Barros
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Num país sem indústria cinematográfica, João Botelho e a sua equipa adaptaram-se às circunstâncias, improvisaram, fizeram das tripas coração e puseram de pé a versão possível da grande aventura de Fernão Mendes Pinto no tempo dos Descobrimentos.

 

Tem realizado ultimamente muitas longas-metragens baseadas em clássicos da literatura portuguesa: A Corte do Norte, Livro do Desassossego, Os Maias e agora a Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto. É um plano?

Estou a ficar mais velho e acho que eles escrevem melhor do que eu (risos). Mas é um plano, sim. As obras caem-me em cima de vez em quando. Eu estava numa crise pessoal e o Livro do Desassossego caiu-me da prateleira. Comecei a lê-lo e disse, “O meu sofrimento é ridículo ao pé disto!”. Há coisas e pessoas tão importantes na literatura e na cultura portuguesa… Tanto podia filmar a Peregrinação como o Amadeo Souza-Cardoso, ou o fotógrafo José Relvas. Isto não é a Peregrinação no seu todo, são bocados, como Os Maias são bocados do livro. Mas a ideia é chamar a atenção. Quando fiz Os Maias, disseram-me que quem visse o filme já não ia ler o livro. Ora o filme quadruplicou as vendas de Os Maias. E agora, pode ser que as pessoas vão ler a Peregrinação. Que é um texto notável e que foi esquecido por muitas razões.

A adaptação foi difícil de fazer?

O Fernão Mendes Pinto escreve muito bem, dá trabalho a adaptar. Estive um ano à volta do texto, a escolher bocados, porque aquilo é de uma dimensão que não tem fim. Não reescrevi nada, mas neste caso tomei algumas liberdades, porque ele também as tomou. Mas a Peregrinação é um romance, ele começou a escrevê-lo sete anos depois de ter voltado, é provável que tivesse falhas de memória, que inventasse coisas. Ele trouxe livros da China, aprendeu mandarim. É natural que fosse aos livros para preencher os buracos que tinha. E eu, no programa dos filmes que faço, tenho sempre uma espécie de chave de leitura.

Qual foi essa chave, no caso da Peregrinação?

Esta foi simples. O livro foi editado 30 anos depois da morte dele, e o Frei Belchior Faria e o Pedro Craesbeeck, o editor, publicaram-no depois de passar no crivo da Inquisição. Tem uma introdução maravilhosa onde o Frei Belchior cita Santo Agostinho: “A variedade deleita, a novidade tira o fastio”. O programa é, portanto, esta variedade de coisas, uma espécie de montagem de atracções, e o modo de contar. Isto é um tratado sobre o modo de contar. O cinema, para mim, não é o que se passa e quando se passa, é como se filma. Este livro, nas mãos de 20 cineastas, dá 20 filmes diferentes. É o modo de filmar que me interessa. E sobretudo o modo de contar.  Ora o Fernão Mendes Pinto passa o tempo a contar. Conta à mulher e às filhas, conta ao rei de Espanha, conta nas tascas, conta fora de campo, conta com os episódios ilustrados com pequenas batalhas, conta por canções.

Daí ter recorrido às canções de Por Este Rio Acima, do Fausto, que também se inspira na Peregrinação?

O Fausto fez um trabalho notável. Ele foi buscar  os textos da Peregrinação e musicou--os. E esse contar por canções não é um coro distante, que faz crítica, é um coro que continua a narrativa, são marinheiros que de repente param a batalha e cantam.

É uma aventura, filmar um livro como este, num país como o nosso, onde não existe indústria de cinema?

É muito difícil, é tudo cosido à mão. Se calhar, este é o filme mais colectivo que fiz. Não me preocupei muito com os cenários da China e do Japão. Foi o arquitecto Mendes Ribeiro, que também é cenógrafo, eu dei-lhe uma ideia e ele fez aqueles cenários.  Com o guarda-roupa, a Silvia Grabowski foi a Espanha, alugou-se aquilo, sujou-se tudo como devia ser, fomos ver ilustrações da época. Não me preocupei muito com as batalhas porque apareceram as pessoas do Ofício Bélico, que fazem batalhas medievais. E o produtor fartou-se de trabalhar, desde arranjar os tostões até fazer mangueiradas. Teria sido impossível fazer este filme sem um tal trabalho de equipa.

Passaram muito tempo no Oriente? Onde filmaram?

Demorei-me muito no Oriente, porque é impossível encontrar locais onde não haja turistas. Filmámos no Vietname, na Malásia, em Goa, em sete cidades chinesas, em Quioto, em Macau e fiz um documentário para a RTP. Foram para aí sete semanas nisto com uma equipa de cinco pessoas, era barato, não levei actores para lá. Depois voltei e filmei em Vila do Conde numa nau parada, e na caravela aqui no Alfeite, a Vera Cruz, parada e no alto mar, porque essa navega. E filmei ainda no porto palafita da Carrasqueira. E houve um trabalho enorme, notável, de dois assistentes de realização, que me andaram à procura de gente nas comunidades todas. Arranjei um actor chinês que estava aqui de férias. A Jani Zhao nasceu em Aveiro, os pais são chineses mas vivem e trabalham cá. O rei Bungo é o Sr. Yokochi, dono do ‘Bonsai’ e pai do Alexandre Yokochi, o campeão de natação. A preparação foi longa e a rodagem foi dura, 36 dias cá em Portugal. Se falhasse um dia, perdia muito dinheiro, porque eram muitos figurantes e aí uns 80 actores. Tinha que ser um trabalho de artesanato, cosido e de adaptação às circunstâncias. Mas acho que conseguimos uma aventura engraçada, porque isto é verosímil de vez em quando.

Conversa afiada

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