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Kimmo Pohjonen
©Facebook/Dresdner MusikfestspieleKimmo Pohjonen

Dez músicos que não arriscam o contágio

Em tempos de pandemia e minimização do contacto social, eis dez músicos que se safam muito bem sozinhos

Escrito por
José Carlos Fernandes
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Uma das coisas em que a música tem uma imensa vantagem sobre outras formas de expressão artística é que, mesmo que a sua composição possa ser um acto solitário, a sua execução é frequentemente um esforço colectivo e envolve cumplicidade, partilha, entreajuda, uma escuta atenta dos parceiros e, no caso do jazz e outra música improvisada, uma capacidade de comunicação próxima da telepatia.

Mas também há quem ache desafiador o solo absoluto e a exploração de todas as potencialidades de um único instrumento. Claro que não falta repertório solista para instrumentos como o piano ou a guitarra, e é comum vê-los sozinhos em palco, mas, com técnica apurada e imaginação ilimitada, qualquer instrumento pode sustentar o interesse do ouvinte durante uma hora ou duas. Esta lista exclui os solistas que recorrem a instrumentos mais usuais e foca-se nos concertos ao vivo, onde, sem acesso às técnicas de gravação multi-pistas do estúdio, o músico só pode contar consigo mesmo (e, nalguns casos, com um arsenal de pedais de efeitos e loops).

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Dez músicos que não arriscam o contágio

Z’EV

Z’EV (n. 1951) é um percussionista, performer e artista sonoro americano, com uma carreira longa e multifacetada e que se tem apresentado nos mais diversos contextos. Nasceu em São Francisco (como Stefan Joel Weisser) e começou a tocar bateria aos quatro anos. Participou no registo da Sinfonia n.º 2 de Glenn Branca, fez a primeira parte de concertos de Bauhaus, colaborou com bailarinos, coreógrafos, DJs e artistas multimédia, gravou com Charlemagne Palestine, Genesis P-Orridge e os portugueses David Maranha (Obsidiana, de 2012) e Osso Exótico (Crouton, de 2007), partilhou um disco com o músico de noise japonês Merzbow.

As suas investigações sobre relações entre numerologia e ritmo, a sua pesquisa de novos instrumentos de percussão e o seu interesse por religiões de todo o mundo e esoterismo fazem com que Z’EV seja mais um xamã do que um colega de Charlie Watts.

[Ao vivo no Studio Canali, Milão, 6 de Novembro de 2008]

Lê Quan Ninh

O francês de origem vietnamita Lê Quan Ninh (n. 1961) tem nome como intérprete de peças de compositores contemporâneos, mas é como improvisador que é capaz de operar prodígios: os seus metais e peles emulam o bramido dos vulcões, o deslizar das placas continentais, o entrechocar de galáxias, o bramido dos furacões, o sopro do tempo.

Tem colaborado com jazzmen franceses como Daunik Lazro e Michel Doneda e com bailarinos. Embora o seu instrumentário seja mais convencional do que o de Z’EV, o uso que lhe dá é de uma originalidade desconcertante. Assistir a um concerto a solo de Ninh é um convite a esquecer tudo o que julgamos saber sobre percussão.

[Ao vivo no Rhythms Festival, Tilburg, Holanda]

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Jim Black

Jim Black (n. 1967, Seattle) não é apenas um baterista sobredotado e de uma inventividade inesgotável – tem também marcado presença, mercê da sua versatilidade e hiperactividade, em muitos dos mais relevantes discos de jazz das duas últimas décadas: nos Bloodcount de Tim Berne, no Tiny Bell Trio de Dave Douglas, no trio de Ellery Eskelin, no trio Azul de Carlos Bica, com Chris Speed, Satoko Fujii, Michael Formanek ou Laurie Anderson (já fora da órbita do jazz), nos colectivos Human Feel, Pachora, Tyft e BB&C e como líder dos Alas No Axis, dos Malamute, de um trio com piano e de um quarteto com duas guitarras.

Os seus raros concertos a solo tornam mais evidente o seu peculiar entendimento do que é uma bateria.

[Ao vivo no festival Akouphène, Genebra, Suíça, 23 de Novembro de 2014]

Evan Parker

Se a inspiração inicial do saxofonista Evan Parker (n. 1944, Bristol) foi Paul Desmond, isso hoje nota-se pouco. Desmond (que ficou conhecido pela associação a Dave Brubeck) tinha o som mais cool, elegante e polido que é possível extrair de um saxofone alto – na sua própria definição, “tentava soar como um dry martini” – enquanto Parker pode ser abrasivo e cortante e explora todas as possibilidades do saxofone (divide-se pelo soprano e pelo tenor), graças às técnicas “expandidas” e à “respiração circular”. Na década de 1990, Evan Parker gravou vários discos para a ECM à frente do seu Electro-Acoustic Ensemble, uma formação alargada combinando sopros, violino, piano, contrabaixo, percussão e parafernália electrónica, mas o solo, o duo e o trio são as formações em que se apresenta mais frequentemente. Tem também colaborado com músicos de outras áreas, como Jah Wobble, Robert Wyatt ou os Spiritualized. É porém nos concertos a solo que a sua técnica, inventividade e fôlego (aos 73 anos!) são mais evidenciadas.

[Ao vivo no Teatro San Andrea, Pisa, 18 de Fevereiro de 2016]

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Colin Stetson

Às técnicas de respiração circular de Evan Parker, o saxofonista norte-americano Colin Stetson junta efeitos percussivos (amplificados por microfones estrategicamente colocados) e efeitos vocais (amplificados por um microfone na garganta), criando uma textura mais densa e complexa do que poderia esperar-se de um saxofone solitário. Stetson é um músico muito solicitado na área do pop-rock, tendo participado em álbuns e tournées de nomes como Arcade Fire, The National, Bon Iver, Timber Timbre, TV On The Radio, Feist ou Animal Collective, Laurie Anderson, Tom Waits, Chemical Brothers, LCD Soundsystem, Godspeed You! Black Emperor ou Angelique Kidjo.

Em nome próprio gravou Sorrow (uma reinterpretação da Sinfonia n.º 3 de Henryk Górecki) e a trilogia New History Warfare (2007-16), a solo em saxofone alto e no raramente visto e ouvido saxofone baixo.

[“Judges”, ao vivo em estúdio no programa Soundcheck da rádio WNYC, Nova Iorque]

Guillaume Perret

O saxofonista francês Guillaume Perret (n. 1980) conquistou notoriedade com o prog-jazz vigoroso e arrebatado do quarteto Electric Epic, que gravou Guillaume Perret & The Electric Epic (2012) e Open Me (2014), mas o seu disco seguinte, Free (2016), fez uma inesperada inflexão, apresentando-se a solo e ao vivo, em interacção com uma rede de dispositivos electrónicos e integrando influências da música de dança e world music.

A Sax Machine – assim denominou a aliança entre o seu saxofone e a maquinaria electrónica – poderá não agradar a todos os ouvintes (alguns queixar-se-ão de que tem pouco a ver com jazz) mas é um espectáculo visual fascinante.

[“Heavy Dance”, numa versão ao vivo no Zenith Sud, em Nantes, 2015]

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Kimmo Pohjonen

O acordeão é um instrumento que, à partida, é tão “completo” como um piano ou um órgão, pelo que é frequente que acordeonistas se apresentem a solo. O aparecimento do acordeão MIDI aumentou essa auto-suficiência, convertendo o acordeonista num homem-orquestra, por vezes com resultados plastificados e tenebrosos, como atestam os bailaricos que animam o Portugal profundo.

O finlandês Kimmo Pohjonen (n. 1964) representa o lado criativo da aliança entre acordeão e electrónica. A sua formação inicial foi na música tradicional finlandesa, mas foi absorvendo influências de Piazzolla e rock e o seu leque de colaborações inclui o Kronos Quartet, o baterista de jazz Eric Echampard, a Tapiola Symphony ou o percussionista Samuli Kosminen, com quem formou o duo Kluster. Da fusão dos Kluster com os TU (Pat Mastelotto e Trey Gunn, dois membros dos King Crimson) nasceu o quarteto KTU.

A solo, com o seu acordeão modificado e electronicamente artilhado e a sua panóplia de pedais e samples, Pohjonen soa como uma hoste de demónios vindo de Tuonela, o reino dos mortos da mitologia finlandesa.

[“Regenerator”, ao vivo no WOMADelaide, Austrália, 11 de Março de 2012]

Barry Guy

O contrabaixo não parece ser instrumento vocacionado para concertos a solo. Porém, as aparentes limitações do instrumento dissipam-se quando é colocado nas mãos de alguém como o britânico Barry Guy (n. 1947).

Guy é dos poucos músicos de jazz e música improvisada que também desenvolveu actividade relevante do domínio da música antiga – fez parte da Academy of Ancient Music e dos English Baroque Soloists. No jazz a sua actividade cobre vasto espectro: fundou a London Jazz Composers Orchestra, sucedida, a partir de 1998, pela, Barry Guy New Orchestra, e apresenta-se frequentemente em trio, com Evan Parker e Paul Lytton, Marilyn Crispell e Lytton, Mats Gustafsson e Raymond Strid ou Agustí Fernández e Ramón López. Os seus primeiros registos em contrabaixo solo datam de 1976 e desde então tem cultivado regularmente este formato. Quando se ouve Guy extrair do contrabaixo um caleidoscópio de sons, com os dedos, o arco ou baquetas, ou fazendo dançar o arco entalado nas cordas, pode perguntar-se para que precisa ele de orquestras.

[Ao vivo no festival Unerhoert, Museu Rietberg, Zurique, 24 de Novembro de 2010]

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Renaud Garcia-Fons

Quem apenas ouça a música do concerto registado por Renaud Garcia-Fons em 2011, no Mosteiro de Marcevol, nos Pirinéus, e nada saiba sobre as suas circunstâncias, suporá que se encontra perante um ensemble que inclui um violinista, um violoncelista, um contrabaixista, um guitarrista de flamenco, um percussionista e tocadores de oud, guimbri, rebab, fiddle, kemanche, sarangi e kalimba, todos virtuosos do mais alto nível e com notável sentido de entrosamento.

Quem veja as imagens constatará que todos os sons deste concerto ao vivo, são gerados por um só homem e pelo seu contrabaixo de cinco cordas, auxiliado por pedais que lhe permitem processar o som, criar loops e lançar samples do seu próprio instrumento. Mesmo quem conheça bem a brilhante discografia de Renaud García-Fons (n. 1962) e esteja a par do seu virtuosismo mirabolante (mas nunca gratuito) ficará pasmado perante este tour de force, em que cada faixa revela nova paleta de timbres e recursos. Mesmo quando prescinde da maquinaria e recorre apenas aos dedos e ao arco Garcia-Fons continua a surpreender: “Bajo de Guía” desafia os mestres da guitarra flamenca e “Kurdish Mood” exibe a invulgar técnica de “arco percutido”, que o contrabaixista domina ao milímetro.

[“Palermo”, excerto do concerto ao vivo no Mosteiro de Marcevol, França, 2011]

Pat Metheny

Pat Metheny foi solicitado várias vezes para se apresentar a solo, mas deu sempre resposta negativa, pois entendia que tal só se justificaria se tivesse algo realmente diferente para mostrar. A longa espera valeu a pena, pois a tournée a solo de 2010 que foi registada no duplo CD The Orchestrion Project e no filme homónimo, realizado por Pierre & François Lamoureux, não só é um vulgar concerto de guitarra solo como ultrapassa os sonhos mais delirantes. The Orchestrion Project é um desenvolvimento, ao vivo, do que Metheny já fizera no álbum de estúdio Orchestrion, registado no início de 2010.

O Orchestrion concebido por Metheny & associados é uma aparatosa e sofisticada versão do dispositivo homónimo de reprodução mecânica de som em voga há 100 anos, em que o arsenal de instrumentos – pianos, marimbas, baixos, guitarbots e uma panóplia de instrumentos de percussão – é accionado, não por um rolo perfurado, mas por um computador, comandado pela guitarra de Metheny.

Se muitos trechos não se afastam muito do registo típico de Pat Metheny, outros põem em evidência a faceta mecânica do Orchestrion e abraçam um minimalismo hipnótico, algures entre uma mega-caixa de música psicadélica e um Steve Reich luxuriante. Em qualquer dos casos, o espectáculo é visualmente fascinante e não há como não pasmar perante o engenho e minúcia investidos na criação e programação da geringonça.

[Ao vivo na St. Elias Church, Brooklyn, Novembro de 2010]

Jazz em português

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Em contraste com a música clássica, em que a percussão costuma desempenhar um papel menor, o jazz confiou, desde os seus primórdios um papel importante à bateria. Na era do swing, virtuosos como Gene Krupa e Buddy Rich deram à bateria um novo protagonismo e quando, na viragem das décadas de 1940-50, o bebop fez explodir a linguagem do jazz, havia bateristas como Max Roach e Art Blakey a liderar a revolução. Alguns dos mais excitantes grupos do nosso tempo têm bateristas à frente – e Portugal não é excepção. 

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A guitarra fez um longo caminho no jazz, de discreta auxiliar rítmica até à disputa do primeiro plano com saxofones e trompetes. A história da guitarra jazz teve três notáveis pioneiros em Eddie Lang, Django Reinhardt e Charlie Christian, mas nenhum deles poderia adivinhar os papéis que o instrumento seria capaz de desempenhar no futuro. De todos os instrumentos usados no jazz, a guitarra foi o que mais sofreu as influências do rock, contribuindo para enriquecer a linguagem do jazz – os três primeiros guitarristas portugueses desta lista são exemplo dessa frutuosa permeabilidade entre géneros musicais.

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Começou por ter um papel apagado e discreto, percebeu-se que poderia ser mais do que um mero marcador de ritmo com Jimmy Blanton, emancipou-se com Charles Mingus e Scott LaFaro. Hoje é consensual que o contrabaixo não só não é um “instrumento menor” como pode assumir protagonismo equivalente ao do saxofone ou do piano e não é por acaso que alguns dos mais excitantes projectos do jazz português são liderados por contrabaixistas.  

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