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Gautier Capuçon
©ÂYXGautier Capuçon

Dez mestres do violoncelo

O notável violoncelista Gautier Capuçon visita Lisboa como solista no Concerto n.º 1 de Saint-Saëns. Entre os muitos virtuosos deste expressivo instrumento, escolhemos mais nove que deixaram marca na música dos séculos XX e XXI

Escrito por
José Carlos Fernandes
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Capuçon será acompanhado pela Orquestra Gulbenkian, com direcção de Paul McCreesh, e o programa completa-se com a Sinfonia n.º 7, de Beethoven, e as Gymnopédies n.º 1 e 3, de Satie, em versão orquestrada por Debussy.

Fundação Gulbenkian, quinta-feira 20, 21.00, e sexta-feira 21, 19.00, 12-24€.

10 mestres do violoncelo

Pau Casals (1876-1973, Catalunha)

Pau Casals foi a figura dominante do violoncelo da primeira metade do século XX e contribuiu decisivamente para alterar a técnica do instrumento. Tinha 13 anos quando encontrou numa loja de partituras em segunda mão, em Barcelona, um exemplar maltratado das Suítes para violoncelo solo de Bach, uma obra então pouco conhecida. Passaria 13 anos a estudá-las antes de as apresentar em público e seriam precisos mais 34 anos para que aceitasse gravá-las. Entre 1906 e 1912 foi parceiro, nos palcos e na vida pessoal, da violoncelista portuguesa Guilhermina Suggia (1885-1950), que tinha sido sua aluna. As primeiras gravações de Casals foram realizadas em 1915, mas só voltaria a gravar em 1926. Em compensação deu concertos por todo o mundo, muitos em trio com Alfred Cortot e Jacques Thibaud. Sendo anti-franquista convicto, viu-se forçado a deixar Espanha em 1936, mas, sendo apaixonado pela Catalunha, instalou-se do outro lado da fronteira, em Prades, na Catalunha Francesa. Na segunda metade dos anos 40, esteve deliberadamente afastado dos palcos durante algum tempo, em protesto pela inacção dos Aliados face ao regime de Franco.

[Suíte para violoncelo solo n.º1 BWV 1007, de Johann Sebastian Bach, na abadia de Saint-Michel-de-Cuxa, Prades, França, em Agosto de 1954, aos 77 anos]

Pierre Fournier (1906-1986, França)

Começou por estudar piano, mas, aos nove anos, uma crise de poliomielite roubou-lhe a força nas pernas e passou a ter dificuldade em accionar os pedais, o que o levou a trocar o instrumento pelo violoncelo. Com tal sucesso o fez que que aos 17 anos já concluíra o curso do Conservatório de Paris, de que seria nomeado professor em 1941. Os anos de guerra acabariam por vir assombrá-lo, quando se apurou, em 1949, que dera 82 concertos (remunerados) para a Radio-Paris, que funcionava como veículo de propaganda do ocupante nazi. Instalou-se na Suíça em 1956, onde viveu até ao fim da vida. Foi dedicatário do Concerto para violoncelo n.º1 de Martinu e da Sonata para violoncelo e piano de Poulenc.

[Concerto para violoncelo de Dvorák, com a Orquestra Nacional da ORTF, dirigida por Sergiu Celibidache]

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Mstislav Rostropovich (Rússia, 1927-2007)

O número de peças que foram compostas em sua intenção ou por ele encomendadas – cerca de uma centena – e a importância dos compositores que o fizeram – Berio, Britten, Dutilleux, Lutoslawski, Messiaen, Penderecki, Prokofiev, Schnittke, Shostakovich – atestam a lugar cimeiro de Rostropovich entre os violoncelistas do século XX. A mãe de Mstislav, Sofiya Fedotova-Rostropovich, era pianista, o pai, Leopold, violoncelista (fora aluno de Pau Casals), tal como o tio, que era professor do instrumento no Conservatório de Moscovo, mas a genética e o ambiente familiar não bastam para explicar o génio de Mstislav. Estreou-se em público aos 15 anos e aos 22 já Prokofiev compunha uma sonata para ele. Em 1962, após estudos com Leo Ginzburg, estreou-se como maestro. O seu entendimento da liberdade artística e de expressão criou atritos com o regime soviético: em 1948 abandonou o Conservatório de Moscovo em protesto contra a demissão de Shostakovich, seu professor, e em 1969 publicou uma carta de apoio ao dissidente Aleksandr Solzhenitsyn, que, em 1970, acolheu na sua casa. As autoridades soviéticas puniram o seu apoio a dissidentes levantando dificuldades às suas tournées no estrangeiro (bem como as da sua esposa, a soprano Galina Vishnevskaya), o que acabaria por levá-lo a mudar-se com a família para os EUA em 1974. Entre 1977 e 1994 foi o maestro da National Symphony Orchestra, de Washington, mantendo, simultaneamente, intensa actividade como violoncelista.

[Sonata para violoncelo n.º 1 op.5 de Beethoven, com o pianista Sviatoslav Richter, ao vivo no Usher Hall, Edinburgh, 1964]

Anner Bylsma (n. 1934, Holanda)

Anner Bylsma (baptizado como Anne Bijlsma) foi o grande pioneiro da aplicação da “interpretação historicamente informada” ao violoncelo. Começou, claro, por tocar instrumentos “modernos”, sendo primeiro violoncelo da Royal Concertgebouw de Amesterdão entre 1962 e 1968, ano em que se consagrou integralmente à exploração da música antiga com parceiros como o flautista Frans Brüggen e o cravista e maestro Gustav Leonhardt. Com a esposa, a violinista Vera Beths, fundou o ensemble de câmara L’Archibudelli e colaborou regularmente com a orquestra barroca canadiana Tafelmusik. Gravou por duas vezes as Suítes para violoncelo solo de Bach, em 1979 e 1992 (a segunda é um dos mais portentosos registos da obra), e contribuiu para a redescoberta de repertório obscuro, do barroco ao século XIX, e para a reapreciação do repertório canónico à luz das práticas da época da composição das obras e da sonoridade macia das cordas de tripa.

[Mini-documentário em homenagem a Anner Bylsma, realizado pela sua filha, Carine, por ocasião do 80.º aniversário do violoncelista]

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Jacqueline du Pré (Reino Unido, 1945-1987)

Começou a estudar violoncelo com a mãe, que era professora de piano na Royal Academy of Music, com apenas quatro anos. Estreou-se no prestigiado Wigmore Hall, de Londres, aos 16 anos. Aos 20 gravou, com a Sinfónica de Londres e John Barbirolli, uma versão do concerto para violoncelo de Elgar, que logo se afirmou como uma referência. Um ano depois conheceu o pianista e maestro israelita (nascido na Argentina) Daniel Barenboim e foi amor à primeira vista: cancelou todos os concertos agendados e voou com Barenboim para Jerusalém, onde após converter-se ao judaísmo, se casou com o pianista (em 1967). O jovem e talentoso casal passou a partilhar o palco com frequência, mas não tardou que o idílio fosse ensombrado. Em 1971, du Pré começou a perder sensibilidade nos dedos e foi forçada a suspender a carreira; a causa dos seus problemas de saúde acabou por ser diagnosticada como esclerose múltipla. Uma tentativa de regresso aos palcos no início de 1973 acabou por ser interrompida, após uma série de concertos com Pinchas Zukerman e o maestro Leonard Bernstein, devido ao agravamento da sua saúde.

[I andamento (Allegro vivace) da Sonata para violoncelo n.º 2 op. 99, com Daniel Barenboim no piano]

Mischa Maisky (n. 1948, URSS/Israel)

Mischa Maisky nasceu em Riga (hoje na Letónia) e estudou em Leningrado, onde, se estreou com Filarmónica local, aos 17 anos. Rostropovich ouviu-o um ano depois, em 1966, e convidou-o a estudar com ele em Moscovo. A carreira do miúdo que fora aclamado como “o Rostropovich do futuro” começou a andar para trás em 1970, quando a irmã decidiu emigrar para Israel, o que o colocou na lista de pessoas sob vigilância do KGB: a compra de um gravador no mercado negro custou-lhe uma pena de 18 meses num campo de trabalho. Após algumas peripécias – fingiu sofrer de perturbações mentais, de forma a escapar ao serviço militar – acabou por conseguir, também ele, emigrar para Israel, em 1972; só regressou à Rússia, para concertos, em 1995. A sua carreira tem sido intensíssima, em termos de número de concertos (só a sua tournée dedicada exclusivamente a Bach no ano 2000 teve mais de 100 concertos) e de gravações (foi durante três décadas o “violoncelista de serviço” da Deutsche Grammophon) e de diversidade de colaborações na música de câmara (Argerich, Bell, Freire, Jansen, Kissin, Kremer, Lang Lang, Lupu, Perlman, Repin, Vengerov) e orquestral (Ashkenazy, Barenboim, Dudamel, Dutoit, Gergiev, Levine, Sinopoli). Gravou por três vezes as Suítes para violoncelo solo de Bach, embora as suas interpretações de música barroca, que toca com vibrato pronunciado e arrebatamento romântico, não recolham aplauso geral.

[Concerto para violoncelo de Schumann, com a Orquestra Juvenil do Festival de Verbier e o maestro James Levine]

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Yo-Yo Ma (EUA, n. 1955)

Yo-Yo Ma nasceu em Paris, de pais chineses, e revelou muito cedo os dotes musicais: estreou-se ao vivo com cinco anos. Aos sete anos a família mudou-se para Nova Iorque e aos oito tocou sob a batuta de Leonard Bernstein. Com um arranque tão precoce, não espanta que tenha gravado mais de 90 discos (na Columbia e na sua sucessora, Sony) e que, a meio da carreira, talvez por ter esgotado o repertório “canónico”, tenha começado a explorar crossovers entre a música erudita e outras tradições e áreas musicais – bluegrass, bossa nova, tango, bandas sonoras de filmes – e a estender as colaborações a músicos tão diversos como Ennio Morricone, Bobby McFerrin e Philip Glass. O seu interesse pelas tradições musicais asiáticas levou-o a fundar o Silk Road Ensemble. As suas múltiplas actuações em eventos públicos marcantes fazem com que, nos EUA, a sua fama eclipse a de todos os outros violoncelistas.

[“O Cisne”, de Saint-Saëns, com a pianista Kathryn Stott]

Pieter Wispelwey (n. 1962, Holanda)

Foi aluno de Anner Bylsma em Amesterdão e William Pleeth na Grã-Bretanha e fez sensação em 1990 com uma gravação para a Channel Classics das Suítes para violoncelo solo de Bach (a que regressaria mais duas vezes, uma para a Channel Classics e outra para a Evil Penguin). Wispelwey está tão à vontade em instrumentos de época e cordas de tripa como em instrumentos modernos e cordas de aço e o seu repertório vai de Bach e Vivaldi a Ligeti e Gubaidulina.

[III andamento (Allegro molto) do Concerto para violoncelo n.º 1 de Haydn, com Les Violons du Roy, com direcção de Bernard Labadie]

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Jean-Guihen Queyras (n. 1967, Canadá/França)

Nasceu em Montreal, mudou-se para a Argélia aos cinco anos e para França três anos depois. Estudou em Freiburg – onde é actualmente professor – tornou-se num protegido de Pierre Boulez e foi durante vários anos solista do Ensemble Intercontemporain, o grupo especializado em repertório contemporâneo fundado por Boulez. Porém, o leque de interesses de Jean-Guihen Queyras nunca deixou de incluir outras áreas e a partir de 2006 começou a explorar repertório barroco, tendo realizado uma excelente gravação das Suítes de Bach, e tem vindo a gravar, sempre para a Harmonia Mundi, repertório dos séculos XVIII e XIX em “interpretações historicamente informadas”, com a Orquestra Barroca de Freiburg, a Akademie für Alte Musik Berlin, os pianistas Alexander Melnikov e Andreas Staier e os violinistas Daniel Sepec e Isabelle Faust. Em 2002 fundou o quarteto de cordas Arcanto e em 2016, com o tocador de lira de Creta e jazzman Sokratis Sinopoulos e os percussionistas Bijan & Keyvan Chemirami, lançou Thrace: The Sunday Sessions, um disco onde se cruzam música dos Balcãs e do Próximo Oriente, improvisação e música erudita. Tentar colocar Queyras numa gaveta é, portanto, tarefa vã.

[Queyras, Sokratis Sinopoulos (lira de Creta) e Bijan Chemirami e Keyvan Chemirami (percussão) tocam “Nihavent Semai”, uma composição de Sinopoulos]

Gautier Capuçon (n. 1981, França)

Capuçon tem sido aclamado pelas suas versões dos concertos de Dvorák (com Paavo Järvi), Shostakovich (com Valery Gergiev) e Haydn (com Daniel Harding) e do duplo concerto de Brahms (com Renaud Capuçon e Myung-Whun Chung) e da Sinfonia Concertante de Prokofiev (com Gergiev). É também muito activo na música de câmara, onde tem tido como parceiros mais assíduos, além do irmão Renaud, os pianistas Frank Braley e Martha Argerich. Neste domínio, a sua discografia inclui Schubert (sonata Arpeggione, trios, quintetos D956 e A Truta), Brahms (trios e quartetos com piano e sextetos), Ravel e Beethoven – as sonatas para violoncelo e piano deste último são objecto do seu disco mais recente.

[Excertos da gravação integral das sonatas para violoncelo e piano de Beethoven por Gautier Capuçon e Frank Braley (Erato)] Nesta visita a Lisboa, Gautier Capuçon surge como solista no Concerto para violoncelo n.º 1 (1873) de Camille Saint-Saëns, que registou com a Orquestra Filarmónica da Radio France, dirigida por Lionel Bringuier, num CD lançado em 2013 pela Erato e muito bem recebido pela crítica.