Hans Memling - Cristo Rodeado de Anjos Musicais
©Hans Memling

Dez obras corais 'a cappella' que precisa de ouvir

O Festival Coros de Verão, no CCB, e o ciclo Reencontros, no Palácio Nacional de Sintra, propõem música coral de diversas épocas e lugares. Aqui se deixam 10 obras corais 'a cappella', cobrindo meio milénio de história, para dar ideia da riqueza do género

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A música coral costuma ter uma aura de espiritualidade e elevação e pode ser vista como o mais perto que os humanos podem chegar do canto dos anjos. A designação a cappella refere-se a um caso particular da música coral em que as vozes não têm acompanhamento instrumental e que seria a prática musical dominante nas igrejas do Renascimento, Porém, nem toda a música a cappella é de natureza religiosa e nas igrejas e catedrais do Renascimento coexistiam práticas diversas, existindo muitos locais em que as vozes eram sustentadas por um órgão e dobradas (nalguns casos substituídas) por instrumentos, o que é atestado por relatos de testemunhas e pelas folhas de pagamentos aos instrumentistas e documentos similares. O facto de a partitura não especificar o uso dos instrumentos não significa que, cada mestre de capela, dependendo da prática local, das imposições das autoridades religiosas e dos recursos disponíveis, não pudesse juntá-los às vozes. Mesmo a Capela Sistina, onde os usos eram mais conservadores e que é vista como o paradigma do canto a cappella (pelo menos para o mundo católico), há registo do uso pontual de órgão.

A 3.ª semana do ciclo Reencontros propõe um programa duplo de música a cappella pelo prestigiado ensemble de música antiga De Labyrintho, no Palácio Nacional de Sintra (21.30, 10€):

Sexta-feira 16
“Threnos: As Lamentações do Profeta Jeremias”, integralmente preenchido com as Lamentationes Hieremias (1588), de Marc’Antonio Ingegneri (c.1535-1592), mestre de capela na catedral de Cremona, professor de Monteverdi e um dos mais respeitados compositores italianos do final da Renascença.

Sábado 17
“O sonho da graça: A arte sublime de Josquin Desprez”, com a Missa Gaudeamus e três motetos de Josquin des Prez (c.1450-1521), o maior vulto musical da Europa do seu tempo. O coro De Labyrintho, fundado em 2001 pelo baixo Walter Testolin, que o dirige, emprega apenas uma ou duas vozes por parte, opção que sacrifica a monumentalidade em favor da transparência e da subtileza e que é a que mais valoriza o intricado rendilhado polifónico da música da Idade Média e Renascimento.

O Festival Coros de Verão reúne 23 coros e 750 participantes e tem ramificações no Castelo de S. Jorge, no Museu da Marinha e no Mosteiro dos Jerónimos. A entrada é livre.

Quinta-feira 23
CCB, 21.00: Coro Infantil da Universidade de Lisboa, direcção de Érica Mandillo

Sexta-feira 24
CCB, 9.30, 14.00 e 16.30: Competição Internacional de Coros Castelo de S. Jorge, 21.30: Coro Nacional da Turquia, direcção de Cemi Can Deliorman

Sábado 25
Grande Auditório do CCB, 15.00-17.00; caminho pedonal do CCB, das 16.00 às 17.30; Jardim Vasco da Gama, Belém, das 16.00 às 19.00, Museu da Marinha, das 18.00 às 19.30, Claustro do Mosteiro dos Jerónimos, a partir das 21.30

Domingo 26
CCB, 19.00: LalitAnjali (Singapura), Coro Estatal da Turquia, entrega de prémios e actuação conjunta dos coros participantes.

Dez obras a cappella que lhe garantem lugar no céu

Miserere, de Josquin

Entre os muitos compositores de génio que, nos séculos XV-XVI, brotaram do que é hoje o Norte de França e a Bélgica – e genericamente denominados como franco-flamengos –, Josquin des Prez (c.1450-1521) é um dos mais importantes. Como muitos dos seus conterrâneos, passou boa parte da carreira em Itália, trabalhando em Milão para os Sforza, no coro papal em Roma, para Inocêncio VIII e Alexandre VI, e em Ferrara para o duque Ercole I. A peste fê-lo abandonar Ferrara e em 1504 estava de regresso ao território de origem, onde assumiu postos eclesiásticos e de direcção de coro.

Uma das obras mais famosas (e influentes) da sua vasta produção é o Miserere a cinco vozes que compôs em 1503-4, quando estava em Ferrara e que terá sido encomendado por Ercole I em homenagem a Girolamo Savonarola, que era protegido do duque e fora executado em 1498 em Florença, devido às suas denúncias contra a Igreja e os poderosos e à suas ambições reformistas. É uma obra austera e despojada, que rompe com o complexo rendilhado polifónico característico de outras obras de Josquin.

[Parte I, pelo coro Magnificat (Linn Records)]

O Sacrum Convivium, de Tallis

Thomas Tallis (c.1505-1585) foi, com William Byrd (seu discípulo e, depois, associado, no negócio da publicação de música), o mais importante compositor inglês do século XVI. Embora a sua fé fosse católica, escreveu também música sacra anglicana, numa ambivalência que era prudente numa Inglaterra dilacerada por querelas religiosas que custaram muitas vidas. Ocupou vários postos, nomeadamente na Catedral de Canterbury (Cantuária) antes de integrar, em 1534, a Capela Real, na qual serviu Henrique VIII, Eduardo VI, a rainha Mary e Isabel I.

O Sacrum Convivium, a cinco vozes, faz parte da colecção de obras de Tallis e Byrd intitulada Cantiones Sacrae e publicada em 1575 (embora as composições de Tallis sejam, provavelmente, bem anteriores). As vendas foram um fiasco e os dois compositores tiveram de apelar a Isabel I para que compensasse de algum modo o grande prejuízo que tinham sofrido.

[Pelo coro Chapelle du Roy, dirigido por Alistair Dixon]

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O Magnum Mysterium, de Victoria

O espanhol Tomás Luis de Victoria (c.1548-1611) foi um dos grandes mestres do final do Renascimento. Nasceu perto de Ávila, em cuja catedral foi menino de coro, e o talento musical que demonstrou justificou que, em 1565, Filipe II lhe concedesse uma bolsa para aperfeiçoar os seus estudos em Roma, cidade onde terá sido aluno de Palestrina (c.1525-1594) e onde acabaria por desenvolver boa parte da carreira, ocupando cargos de mestre de capela no Colégio Alemão e no Seminário Pontifício. Só em 1587 regressou a Espanha, onde se tornou capelão (fora ordenado padre em 1574) da imperatriz viúva Maria (filha de Carlos V e irmã de Filipe II) no Convento das Descalzas Reales, em Madrid. Aí ficou, exercendo o cargo de organista, após o falecimento de Maria, até à morte.

Ao contrário de quase todos os seus colegas, Victoria compôs exclusivamente música religiosa, tendo deixado uma vintena de missas, 18 Magnificats e meia centena de motetos. Entre estes está O Magnum Mysterium, um canto de matinas para o Natal que tem sido musicado por grandes compositores desde a Idade Média até aos nossos dias e que exprime o “grande mistério” que é o filho de um deus ter nascido num estábulo entre animais.

[Por The Sixteen, com direcção de Harry Christophers]

Magnificat Primi Toni, de Cardoso

Ironicamente, foi sobre o domínio filipino que a música portuguesa atingiu um esplendor que não seria igualado em nenhuma outra época. Foi um desabrochar tardio, pois enquanto noutros pontos da Europa a música entrava na era barroca, em Portugal continuava a cultivar-se a polifonia renascentista fiel à escola romana de Palestrina e Victoria.

Frei Manuel Cardoso (1566-1650) foi um dos nomes mais notáveis da “época de ouro” da polifonia portuguesa: nasceu perto de Portalegre, estudou música na Sé de Évora, ingressou na Ordem Carmelita, fez parte da corte do futuro D. João IV em Vila Viçosa, foi organista e mestre de capela no Convento do Carmo, em Lisboa, e as suas obras são hoje gravadas pelos mais importantes ensembles corais do mundo.

[Pela Capella Duriensis, no Antigo Mosteiro de Santa Clara, Vila do Conde]

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Mitten Wir in Leben Sind, de Mendelssohn

A música sacra é, em termos de volume, a parte mais substancial da obra de Felix Mendelssohn (1809-1847), embora esteja longe de ser a mais ouvida. Alguma dela correspondeu a encomendas, mas a maior parte foi criada em resposta a um impulso interior.

Dentro da música sacra, Mendelssohn compôs várias obras a cappella, contando-se o moteto Mitten Wir in Leben Sind entre as mais inspiradas. É uma das três peças da Kirchenmusik op. 23, que foi a primeira obra religiosa publicada pelo compositor, e foi terminado a 23 de Novembro de 1830 (com apenas 21 anos). O texto de Lutero adapta para alemão uma antiga antífona latina, “Media Vita in Morte Sumus”, e recorda a efemeridada da vida humana: “Ainda que estejamos a meio da vida, a morte rodeia-nos. Quem poderá prestar-nos auxílio, quem nos permitirá atingir a graça?”. A resposta é, claro, Deus, o único que poderá “salvar-nos de mergulhar na amarga angústia da morte”.

[Pelos Gloriae Dei Cantores, com direcção de Elisabeth C. Patterson]

Warum ist das Licht gegeben dem Mühseligen?, de Brahms

A produção de música coral a cappella de Brahms não é a faceta mais visível da sua obra, mas tem volume considerável e é suficiente para preencher oito CDs. Nem toda esta produção é de cariz religioso – representa cerca de 3/8 do total – destinando-se parte a coro misto e outra a coro feminino – é preciso não esquecer que, em Hamburgo, o compositor fundou e dirigiu durante algum tempo um coro feminino.

O moteto Warum ist das Licht Gegeben dem Mühseligen? é o n.º 1 do op.74 e representa um dos píncaros da sua obra sacra. Foi composto em 1878 e é uma obra estilisticamente devedora dos motetos de Bach. O texto, que é uma meditação sobre o significado do sofrimento e da morte, foi montado por Brahms a partir de várias fontes, nomeadamente o Livro de Job e as Lamentações de Jeremias. As questões angustiadas do início – “Porque foi a luz concedida às almas cansadas e a vida aos corações perturbados? Porquê?” – acabam por desembocar numa serena aceitação da morte, alicerçada numa fé inquebrantável.

[Pela Maîtrise de l’Académie Vocale de Paris, com direcção de Iain Simcock, ao vivo a 12 de Março de 2011, Église Saint-Merri, Paris]

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Os Justi, de Bruckner

O austríaco Anton Bruckner (1824-1896) é mais conhecido pelas sinfonias, mas dedicou também especial atenção à música religiosa, boa parte dela num registo que concilia a tradição polifónica renascentista de Palestrina e Victoria com as inovações harmónicas de Wagner. Esta inclinação nada tem de inesperado num homem profundamente religioso, que na adolescência foi menino de coro no mosteiro de St. Florian, ao qual regressou aos 21 anos, como professor de órgão, assumindo a posição oficial de organista em 1851.

Embora em 1868 se tenha estabelecido definitivamente em Viena, não quebrou os vínculos com Sankt Florian e foi para este mosteiro que compôs em 1879 o moteto a oito vozes Os Justi: “A boca dos justos exprime sabedoria e a sua língua fala com justiça. A lei de Deus está no seu coração e os seus pés não vacilam”.

[Pelo Coro da Abadia de Westminster, com direcção de James O’Donnell, 2011]

A Hymn to the Virgin, de Britten

Benjamin Britten (1913-1976) tinha apenas 16 anos quando, em 1930, compôs esta pequena obra-prima. Britten viria a compor muitas mais obras corais a cappella, muitas delas para coros de rapazes, que são uma das mais notáveis tradições das Ilhas Britânicas. Porém, poucas rivalizam em popularidade com A Hymn to the Virgin, até porque a sua moderada dificuldade técnica a torna acessível aos coros amadores. A obra tem a particularidade de contrapor, em versos alternados, o tutti, que canta em inglês, com um sub-coro mais reduzido, que lhe responde em latim. Começa assim:
“Of one who is fair and bright Velut maris stella [Como uma estrela do mar]
Brighter than the day is light Parens et puella [Ao mesmo tempo mãe e donzela]”

[Pelo Coro do King’s College, Cambridge. O coro foi fundado no século XIV, pela altura em que Henrique VI criou o Kings’ College e é uma das jóias da tradição coral britânica; a capela do King’s College, em que este registo foi realizado, é, pelo seu lado, uma jóia da arquitectura gótica]

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O Magnum Mysterium, de Lauridsen

O norte-americano Morten Lauridsen (n. 1943) é um dos mais populares compositores de música coral dos nossos dias, embora não seja tido em grande consideração pelos sectores mais vanguardistas, devido à sua “regressão” para a música tonal. O critério da inovação formal apaga-se porém, perante a beleza, intensidade e profundidade das composições de Lauridsen. O moteto O Magum Mysterium de Lauridsen foi composto em 1994, cerca de quatro séculos depois do de Tomás Luis de Victoria, e é de um resplendor sereno que faz inteira justiça ao tema.

[Pelo Nordic Chamber Choir]

I Thank You God For This Amazing Day, de Whitacre

A esmagadora maioria do repertório coral cantado pelo mundo fora provém de compositores mortos – e alguns mortos há muitos séculos – pelo que é instrutivo examinar o fenómeno de popularidade em torno do norte-americano Eric Whitacre (n. 1970), que tem recebido encomendas de coros tão prestigiados como The Tallis Scholars, The King’s Singers e o Coro da Sinfónica de Londres (embora a sua obra não se resuma a música coral), que viu um disco com música sua, pelo coro Polyphony, dirigido por Stephen Layton, obter uma nomeação para um Grammy, e até compôs alguns trechos da banda sonora da Piratas das Caraíbas IV (o que faz com que seja encarado com suspeição por parte da crítica erudita).

A música coral de Whitacre não é religiosa (no sentido estrito do termo, o que não quer dizer que não esteja imbuída de intensa espiritualidade) e tem recorrido a poemas de Emily Dickinson, Robert Frost, Federico Garcia Lorca, James Joyce, Octavio Paz, ou W.B. Yeats. I Thank You God For This Amazing Day (1999) usa um poema de e.e. cummings (o n.º 3 das Three Songs of Praise) que exprime o júbilo de se estar vivo e desperto para a beleza do mundo.

[Pelo Coro do Trinity College, Cambridge, com direcção de Stephen Layton]

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