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Dead Combo
Duarte DragoDead Combo

Dead Combo: “Lisboa tornou-se numa cidade estranha aos seus”

A digressão de despedida dos Dead Combo volta a parar em Lisboa, nesta sexta-feira, num Capitólio lotado. Falámos com Tó Trips e Pedro Gonçalves.

Hugo Torres
Escrito por
Hugo Torres
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Os Dead Combo estão mais vivos que mortos. Apesar do fim anunciado, a dupla de cordas que cartografou a marginalidade alfacinha, a boémia; que retratou os diletantes e os esquecidos; que transpôs em pauta a vida de bairro antes de a cidade se tornar autofágica; que marcou a guitarra e contrabaixo a paisagem sonora da Lisboa deste início de século; a dupla composta por Tó Trips e Pedro Gonçalves está em plena posse das suas faculdades. E é assim que darão por terminada a carreira em Janeiro de 2021, com dois espectáculos no São Luiz, imediatamente antes de atingirem a maioridade. Ficarão jovens e irreverentes para sempre. Quando lhes perguntámos, já com o gravador desligado, se iriam voltar em 2024, para os 20 anos de Vol. 1, Tó Trips solta uma farpa seguida de uma gargalhada: “Voltamos daqui a 100 anos em franchise!”. No imediato, figuram no cartaz do do festival Às Vezes o Amor – e é isso que os leva, nesta sexta-feira, ao Capitólio.

Havia necessidade de uma digressão de despedida? Não faria mais sentido que desaparecessem numa noite de nevoeiro, pelas ruelas do Bairro Alto?
PG – A tournée de despedida é para termos oportunidade de dizer adeus às pessoas e de nos dizerem adeus a nós.

Como é decidiram dar a banda por terminada?
PG – Foi um bocadinho como nas relações entre as pessoas, e como tudo na vida. Chegas a uma altura em que percebes que as coisas não estão a tomar o caminho que deveriam. Há coisas que ficam obrigatoriamente diferentes com o passar dos anos, e se calhar chegou a altura de fazer outras coisas, de cada um fazer as suas.

Não era possível fazê-las enquanto Dead Combo?
PG – Não sei. Mas esgotámos soluções, esgotámos caminhos.

Sentiam que estavam esgotados? Corriam o risco de se arrastarem musicalmente?
PG – Um bocadinho encurralados. Somos dois gajos. Ouvimos muita música, e essas coisas todas, mas nunca tive a idade que tenho hoje. Depois há outras questões. Às duas por três, o processo de fazer música, o porquê de criar, etc., essas razões começam a diluir-se. Começam a ser em prol dos concertos, de fazer dinheiro, de uma data de coisas que não são muito felizes. Essas coisas mandam mais na música do que a música manda nessas coisas.

Os Dead Combo já eram uma obrigação?
PG – Não! Se fosse, tínhamos acabado há muito mais tempo.

Mas sentiam-se obrigados a dar resposta ao vosso público?
PG – Nem é tanto o público. É toda a máquina que te envolve. Com os Ornatos [Violeta], aconteceu isso: quando sentiram que a máquina que os rodeava os colocava numa situação que eles não queriam.

Os Dead Combo inventaram um género, o fado-western. Mas dir-se-ia que, antes de o ouvir, já vivíamos o fado-western numa certa Lisboa nocturna, entre o Bairro Alto e o Cais do Sodré – e que vocês traduziram isso em música. Foi assim?
TT – Sim. Achou-se uma fórmula, ou um som, que tem a ver com esses sítios, com esse lado dos fadistas, da gente de rua, dos arruaceiros, esse mundo meio western – mas néon.

Exactamente como no Cais do Sodré.
TT – Que até tinha o Texas [Bar, actual Musicbox]. Esse pessoal que, ao fim e ao cabo, foram fazer o “Oeste” nos final do século XIX, início do século XX, do outro lado do oceano.

Houve uma procura deliberada por esse som?
TT – Não. Foi uma coisa que apareceu. De tocarmos os “Verdes Anos” do Carlos Paredes, mas mais lento e em guitarra eléctrica.

É uma matriz que a vossa música manteve ao longo do tempo: ouve-se um tema de Dead Combo e é absolutamente evidente que é vosso. É algo muito raro de acontecer.
TT – Quem procura alcança. Quem é curioso alcança.

Tó Trips, Dead Combo

No ano passado, fizeram a banda sonora da série Sul. A vossa música sempre foi muito cinematográfica e encaixa como uma luva naquela Lisboa marginal, noctívaga e boémia. Quase parece foram vocês a convidar o Ivo M. Ferreira a dar imagem às vossas canções. Estão à-vontade para dizer a verdade.
[Risos de ambos.]
TT – Não, não. Foi ele que nos convidou para fazermos a música – e cedemos-lhe o espólio. Ele podia usar as músicas que quisesse.
PG – É uma Lisboa um bocadinho desaparecida. Com esta história toda da gentrificação e os turistas todos, com o custo de vida a subir anormalmente...
TT – Aquela cena que vivíamos no princípio deste século, de vir ao bairro, entrares num café, falares com o homem do café...

Pedro Gonçalves, Dead Combo

Lisboa cresceu de uma forma em que isso já não acontece?
PG – Se calhar acontece de maneiras diferentes. O que acho é que no centro de Lisboa já não acontece, porque não há capacidade de ter pessoas a viver lá. A não ser que tenham muito dinheiro. Essas pessoas, normalmente, não vão ao café. Digo eu, que não tenho muito dinheiro nem conheço pessoas com muito dinheiro. Imagino que não tenham um estilo de vida de rua, de convivência com as pessoas da rua. Querem é uma certa distância.
TT – Lisboa é uma cidade estranha aos seus.

Era muito evidente a colagem da música dos Dead Combo à vida de Lisboa. Essa evolução da cidade fez com que essas duas realidades se afastassem?
PG – No outro dia, houve alguém que nos disse que a nossa música tinha acompanhado a evolução da cidade, e é o que acontece com os discos todos. O Odeon Hotel, lá está, é a cena da gentrificação, da destruição de marcos históricos na cidade em prol de qualquer coisa que não percebes muito bem o que é...

E é por isso que a capa do disco é feita no meio de uma ruína.
TT – É no cinema Odeon.
PG – Que agora, provavelmente, já é um prédio de apartamentos.
TT – Também estávamos diluídos no meio do pessoal.

Começaram a diluir-se nas capas dos discos depois de apareceram no No Reservations do Bourdain. O último em que estão apenas os dois é o Lisboa Mulata (2011). Nunca mais foram vistos sozinhos numa capa. É uma coincidência?
PG – Tens razão. Nunca tinha pensado nisso. Se calhar há, e não sabemos.
TT – No
A Bunch of Meninos, aparecia mais uma personagem na capa, uma miúda, e depois diluímo-nos nas pessoas.

Sentiram necessidade de chamar gente para povoar o núcleo?
PG – A ideia para a capa do A Bunch of Meninos nem foi nossa. Nós vestimos a roupa e dissemos: sim, senhora. Não foi uma coisa pensada da nossa parte.

Estava a pensar mesmo em termos musicais, sobretudo com os dois seguintes.
PG – Os Dead Combo sempre foram acompanhados por uma data de gente. Desde o início. O primeiro disco tem convidados que nunca mais acabam. O segundo... Todos. E ao vivo sempre tivemos isso: os dois, e depois os dois mais não sei quantas pessoas.
TT – O último disco, realmente, tocou-se com banda. Isso também ajuda na relação entre duas pessoas. Para além de acrescentar outras influências musicais (só convidamos quem gostamos), essas pessoas também trazem outro
good will a uma relação de duas pessoas.

Começaram na pequena e extinta Transformadores e terminam na multinacional Sony Music. Essa transição afectou a abordagem à música, ou é só o reflexo do sucesso que alcançaram?
PG – Nem é reflexo do sucesso. É normal o início ter sido com uma independente, mas tivemos uma data de anos desde o segundo disco com distribuição pela Universal, até ao Odeon Hotel. O que aconteceu foi que chegámos à conclusão de que se calhar era fixe sermos artistas de uma editora, termos contrato de artista, para não sermos nós a pagar tudo e depois ir recebendo o dinheiro às mijinhas.
TT – De qualquer maneira, fizemos o disco como quisemos. Primeiro gravámos e escolhemos o produtor e depois é que vendemos o disco.

O que impediu os Dead Combo de, em 2012-13, entrarem em força na cena internacional? Nessa altura, parecia possível.
PG – Não houve capacidade de quem trabalhava connosco de nos ajudar nesse sentido. Não existia ninguém que tivesse essa capacidade.
TT – Ainda tivemos o convite do Andrew Bird para fazermos as primeiras partes dele na Europa, mas isso caiu. E depois isto também é assim meio ovni. É música instrumental. E havia agências lá fora que até curtiam a nossa música, mas só trabalhavam com cachets a partir de não-sei-quanto...
PG – Ou fazes o circuito dos clubes e das coisas pequeninas, que é muito desgastante (mesmo) – e nós não vamos para novos, o corpo já dói – porque não ganhas quase dinheiro nenhum e passas imenso tempo na estrada. É uma coisa muito dura. Ou, se quiseres ir um degrau acima, a fazer os pequenos teatros e coisas mais controladas, ganha-se pouquíssimo.
TT – É possível, mas não tivemos essa sorte.

Depois de Madredeus e Moonspell, e fora o fado, parecia certo que seriam vocês a dar salto lá para fora. Imagino que também tenham sentido isso.
TT e PG, em coro – Sim.

Numa conversa com a Time Out, Mark Lanegan disse que os Dead Combo são “uma das melhores bandas de sempre”. Não é uma afirmação que se espere de uma figura deste calibre.
TT – É uma maneira simpática de dizer as coisas. O quê que é isso de uma das melhores bandas de sempre, com milhares e milhares de bandas fixes que andam para aí?
PG – É um elogio do caraças vindo dele. Uma medalha de orgulho.

Como foi trabalhar com ele?
PG – Muito simples. Fiz-lhe o convite para gravar a música e ele, que já nos conhecia, disse logo que sim. A ideia até era ele falar, não cantar. Depois ele andou para ali às voltas e um dia disse que tinha descoberto um poema fixe para cantar. Ele fez a gravação nos EUA, com o Alain [Johannes, o produtor do disco]. E depois para os concertos também foi muito fácil: foi discutir por email o que íamos fazer.

Mas como é que esta história começa?
PG – Eu sempre admirei o gajo. Quando estávamos ainda na fase de criação do Odeon Hotel, houve uma música em que me surgiu: era fixe ter o gajo ali. Mandei-lhe um email. Uma coisa assim “bora arriscar”.

Quais são as melhores memórias que levam de Dead Combo?
PG – Muitas. Há esses concertos em Paredes de Coura, em 2012 [e em 2018, com Mark Lanegan] .
TT – A tour nos EUA. Em dez dias, passámos por Portland, Seattle, Vancouver...

Como foi a resposta do público?
PG – Foi fixe. Gostaram.

Precisam de fazer um documentário sobre isso, como os Tédio Boys.
TT – Isso é outra dimensão [risos].

Deram início a esta tour na Zé dos Bois, onde se conheceram e onde a vossa história teve início – em 2002, 2003?
TT – O primeiro concerto foi em Março de 2003, na primeira parte de Wordsong no CCB.
PG – No grande auditório. Está filmado.

Uma noite da Transformadores, então.
PG – Era.

Como foi esse regresso à ZdB, tendo em conta o contexto – nostálgico?
PG – Não. Tocar na ZdB é sempre fixe.
TT – Também é uma casa aonde vou várias vezes ver concertos. Fez parte da vida dos Dead Combo e fez parte da minha vida também. Até me formou culturalmente. Veio substituir, na minha vida, o Johnny Guitar. Só que com um leque muito mais aberto.

Como é que tem sido esta digressão? Os concertos têm esgotado sempre. Dizer adeus aos fãs faz bem à bilheteira?
TT – [Risos.]
PG – Um gajo diz que vai acabar, esgota tudo.

Mas como é que tem sido a reacção de quem vos vai ver?
PG – É fixe. É sempre um bocado emotivo – saberes que os Dead Combo estão a tocar pela última vez para aquelas pessoas. Quer dizer, quando a seguir vamos dar autógrafos e falar com o pessoal, dizem-nos que já compraram bilhetes para outro, e para outro, e para outro. Há pessoal assim, mas a maioria das pessoas não.
TT – Há pessoas que se deslocam... houve uma rapariga que veio de Madrid.
PG – É aquela cena de saberes que estás a tocar pela última vez para aquelas pessoas, e as pessoas saberem que é a última vez que estás a tocar para elas. Sempre demos tudo o que tínhamos para dar, mas agora é... não sei. Mais sensível.

Impressiona-vos mais quem vem de tão longe para vos ver, quem vai a mais do que um concerto na mesma tour, ou tocar em grandes concertos, no Coliseu ou em Coura?
TT – Quando um gajo toca num palco, o palco pode ser aqui ou em qualquer lado. A entrega é a mesma. Ir para palco no Coliseu ou num buraco qualquer vou-me lá espatifar na mesma.

Referia-me mais ao carinho que recebem do público do que à performance.
PG – Quando tens grandes massas, o que te chega é a junção daquilo tudo. É uma energia. É vibrante. Parece quase uma droga. É uma cena avassaladora. O oposto é uma energia muito diferente, porque é quase de um para um. Sentes as pessoas ali – o sorriso daquele, a tristeza daquele, a alegria, sentes tudo muito próximo de ti. Eu gosto mais disso. Sempre gostei mais da proximidade.
TT – É diferente. 25 mil pessoas caladas tem um power!... Aquela gente toda está a ouvir-te a tocar uma guitarrinhas. Mete respeito.

O que fica por fazer?
TT – Viajámos muito, mas o que não fizemos é o que andávamos há muitos anos a tentar: a internacionalização. É morrer na praia. Foi o que faltou fazer. Artisticamente, acho que está um bom trabalho. Não tenho problemas em dizê-lo. Tenho orgulho nisso. Até como postura.

Como assim?
TT – Atitude de estar na vida, de estar numa banda. Para além da música, também é muito importante. Por oposição a muita coisa que anda por aí. Nunca fomos uns gajos de estar aí muito a bater no ceguinho. Sempre aparecer, nas redes, para aqui e para acolá. Mantivemos uma certa sobriedade.

Diria que essa é a imagem de marca dos Dead Combo, entre o misteriosa e o distante. Está nas fotografias que foram fazendo, na ideia inicial da cartola...
TT – Tem esse lado das personagens, mas também tem o lado de que o que interessa é a música. Muitas vezes, o que vejo por aí (não é só cá, é em todo o lado) é que a música é mais uma coisa. O sucesso não é pela música. É por muitas outras coisas para além do conteúdo. Nós fomos pelo conteúdo. Pela arte.

Tanto assim foi que conseguiram criar este som tão carregado de Lisboa e de portugalidade (se me é permitido o palavrão).
PG – Não consciencializámos nada daquilo que fazíamos. Só à posteriori.
TT – Havia uma coisa com que nos preocupávamos: que tivesse alguma coisa daqui. Achamos que há coisas boas aqui. Sempre houve. Como em qualquer sítio. Era uma coisa com que nos preocupávamos nos discos: pomos mais uma música com esse cheiro daqui? Sempre achámos que havia mais vantagens aqui [para nós] do que em Nova Iorque.

Que é uma mudança significativa, para quem conhecia o Tó Trips dos Lulu Blind.
TT – Sim, mas os Lulu Blind eram uma banda de adolescentes. Putos. Em vez de irem ao ginásio, que na altura não havia, iam ensaiar. Dead Combo é outra coisa. Nessa fase [inicial], fui procurar outras coisas, ser curioso. Nos anos 1990, por exemplo, não ouvia jazz. Detestava. Fui uma vez ao Hot Clube e detestei. Depois encontrei alguém do jazz. A vida tem destas coisas. Provoca mudanças nas pessoas. Mudar, querer mudar. A ZdB entra aí: também foi um sítio que me abriu um pouco a cabeça a outras coisas – cenas de electrónica, improvisação, jazz. Foi tudo na mesma altura. Também tivemos a sorte de nos rodearmos de pessoas de várias áreas – o Edgar Pêra, pessoal do teatro e da dança –, que paravam nos mesmos sítios que nós e trabalhámos com eles. E tudo nos formou como banda também.

Com o Pedro, o percurso é em sentido inverso: do jazz para o rock.
PG – Já estava um bocado [farto]. O mundo da música em Portugal é muito pequenino. Imagina o do jazz. Era uma azeitona. Muito conservador. Foi quando comecei a tocar com o Sérgio Godinho, com os Xutos... E foi mais ou menos na altura em que os Dead Combo começaram.
TT – Encontrámo-nos os dois à esquina.

Vão ser só os dois no Capitólio, ou esta é uma daquelas ocasiões em que vão convocar a banda de Odeon Hotel?
PG – Só os dois.

E qual é a diferença entre o espectáculo que veremos agora e os de Janeiro de 2021, no São Luiz, onde vão terminar a digressão?
PG – Nesses de Janeiro não fazemos puto ideia do que vai acontecer. Nestes já temos alguma.
TT – Nesses, à partida, vamos ter convidados. São os últimos. Mas este espectáculo é bocado voltar ao início. Tocarmos só os dois, num ambiente mais despido. Esta tour baseia-se nisso. Nesses do São Luiz, não sei.

O alinhamento deste concerto vai percorrer a discografia toda?
PG – Sim. Fizemos uma lista de trinta e tal música e vamos mudando. Há algumas de que não podemos fugir, como a “Lisboa Mulata”.
TT – Ou o “Rumbero”, que tocamos desde o início. Acho que nunca falhou em nenhum set. Mas algumas das músicas não tocávamos há anos.

O que vai acontecer depois de Janeiro?
PG – Vem Fevereiro.
TT – Vamos à Segurança Social pedir um subsídio de desemprego, como qualquer pessoa [risos].

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