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Elza Soares
Patrícia LinoElza Soares

Deus é mulher, Deus é Elza

A brasileira Elza Soares vive o período mais criativo da sua longa carreira. Nesta quarta-feira, mostra no Capitólio as canções que não estávamos à espera de ouvir na voz de uma octogenária.

Hugo Torres
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Hugo Torres
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Pobre, mulher e negra. “Tinha tudo para não dar certo”, diz Elza Soares – e, em muitas medidas, não deu. A sua história divide-se entre o sucesso como sambista e exploradora de novas sonoridades para a MPB, entre uma carreira recheada e as sucessivas tragédias da vida pessoal: a morte de quatro filhos, a viuvez à saída da adolescência, a violência do casamento com Garrincha, estrela de futebol cujo alcoolismo o matou a ele, de cirrose, e à mãe dela, em 1969, num acidente de carro (que o jogador conduzia embriagado), o exílio. Resistiu sempre. Avançou sempre. Quando seria expectável que se entregasse aos êxitos e vivesse do prestígio como intérprete, Elza surpreendeu com o primeiro disco de originais, A Mulher do Fim do Mundo (2015). Uma bomba. Deus É Mulher (2018) confirmou o renascimento tardio. Nunca soou tão jovem, tão estimulante. Nunca deu tão certo.

Nesta quarta-feira, a cantora brasileira volta a actuar em Lisboa, dois anos depois dos concertos no Coliseu dos Recreios e no NOS Primavera Sound, no Porto. Meses antes, em Novembro de 2016, deixou exultante quem a viu no Vodafone Mexefest, também no Coliseu. Desta feita, actua no Capitólio, com um cenário diferente: o caldeirão violeta de A Mulher do Fim do Mundo dá lugar à entidade criadora de todas as coisas, à luz divina – e feminina – de Deus É Mulher (mantendo no alinhamento canções do disco anterior). A trupe paulistana liderada por Guilherme Kastrup, o director musical responsável por esta nova vida de Elza, continua a acompanhá-la, a enquadrar tudo numa inspirada mistura de rock, samba, hip-hop e electrónica. Elza estará sentada no seu trono – é assim desde que, em 2014, sofreu um acidente e teve de ser operada à coluna vertebral.

É daí, do seu trono, que luta pelos direitos das mulheres, das pessoas LGBTI, pela liberdade sexual, é daí que luta contra o racismo, as desigualdades, a violência doméstica. Está tudo nas canções, mas a cantora aproveita os intervalos para o enfatizar. Elza já era uma das figuras de proa do feminismo no Brasil – mas algo mudou entretanto. “Eu sempre falei, sempre gritei muito. Mas havia qualquer coisa que impedia o eco da minha voz. Hoje, eu grito e tenho resposta. Eu peço às pessoas ‘gritem comigo’, e elas gritam!”, diz-nos ao telefone, a partir de sua casa no Rio de Janeiro. “Me sinto mais forte, com mais liberdade. O tempo vai passando, vou tendo espaço para falar. As portas vão se abrindo e você vai aproveitando e vai falando o que tem vontade de falar.” No entanto, é preciso “falar com consciência, com sabedoria. Não falar em vão.”

Elza Soares não tem problema em instrumentalizar-se, em usar a sua história como alavanca, para elevar mulheres que se encontram em posições frágeis. É aí que está o sal de A Mulher do Fim do Mundo: a verdade daquelas canções é o ingrediente que tanto lhe apura o sabor como arde nas feridas ainda abertas. No novo disco, a cantora leva o feminismo para lá do fim e do precipício. “Se Deus fosse homem, já tinha acabado com tudo”, sentencia. “Deus é tão bom, tão compreensivo... Só mulher tem isso. O homem não tem paciência. É uma coisa mais solta. O homem foi criado pela mulher – a mulher que o pariu, a mulher que o educou. Nós, as mulheres, temos obrigação de acabar com o machismo.” E se Deus é mulher, talvez Elza seja Deus. Talvez seja de valorizar a suspeita cabalística sobre a coincidência de as palavras Deus e Elza terem ambas quatro letras. Talvez o erro de calendário que nos leva a calcular mal o ano de nascimento de Cristo e a incógnita sobre a idade de Elza (terá 82 ou 89?) não seja coincidência. Talvez. “É isso que você está falando”, desconversa Elza. “Cantar ainda é danado de bom.”

Capitólio. Qua 21.30, 25€

Biografia editada em Portugal

Filha de um operário e de uma lavadeira, Elza Gomes da Conceição foi uma menina pobre nascida e criada nos bairros periféricos do Rio de Janeiro. Casou cedo, com um amigo da família, foi mãe aos 12 anos, ficou viúva aos 21. Começou a cantar por necessidade: inscreveu-se no programa de Ary Barroso, na rádio Tupi, porque precisava de dinheiro para comprar medicamentos para o filho, que morreu apesar do sucesso da mãe na telefonia. Uma tragédia seguida de um drama: a filha foi raptada pelo casal que tomava conta da menina – só se reencontram muito depois, já Elza era uma sambista de créditos firmados. O casamento com Garrincha, a depressão, a cocaína, a ajuda de Caetano, a eleição como voz brasileira do milénio pela BBC, os originais. A história da cantora é sinuosa, cheia, comovente, e é contada pelo jornalista Zeca Camargo em Elza, a biografia oficial que a Leya publica agora no mercado português. O que podemos esperar? “Tudo. Tudo o que aconteceu. Não tenho vergonha de dizer que sofri, que fui pobre, que limpei o chão, não tenho vergonha de nada. Muito pelo contrário. Isso me dá força, coragem”, diz-nos Elza. “A minha biografia mostra uma mulher com garra, uma mulher que tem coragem de lutar.”

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