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Joy Division

Dez grandes discos com 40 anos: 1979

A viragem das décadas de 70/80 trouxe mudanças decisivas para o pop-rock: nos subúrbios britânicos, o punk transmutava-se.

Escrito por
José Carlos Fernandes
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Em meados da década de 70, a fúria do punk viera subverter a ordem estabelecida, mas a verdade é que o seu fôlego era curto. O género tinha sérias limitações e era pouco dado a subtilezas e em breve deu sinais de esgotamento. Porém, nas caves das cidades lúgubres e sujas da Velha Albion que em tempos tinham sido prósperos centros industriais, o punk foi sofrendo mutações e assumiu novas formas: Joy Division, Siouxsie and the Banshees, The Cure, Bauhaus, The Sound, Public Image Ltd. (do ex-Sex Pistols Johnny Rotten), The Fall...

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Dez grandes discos com 40 anos: 1979

“Unknown Pleasures”, Joy Division

Se há músicos que despertam vocações pelo impulso de ascender a um patamar similar de mestria e refinamento, outros, como os Sex Pistols, incentivavam os miúdos que os viam a formar bandas porque pensavam “eh pá, disto também eu sou capaz!”. E foi assim que um concerto dos Sex Pistols em Manchester, em Julho de 1976, deixou no seu rasto várias bandas de garagem, entre as quais estava o embrião da Joy Division. Nos seus primeiros tempos, ainda sob o nome de Warsaw, praticavam uma declinação espartana do punk, mas foram aprendendo a tirar partido da voz solene e lúgubre de Ian Curtis, da guitarra minimal de Bernard Sumner, das linhas de baixo proeminentes de Peter Hook e da bateria robótica de Stephen Morris. Mas seria preciso que o som da banda, ainda muito inexperiente, fosse moldado pelo produtor Martin Hannett para a Joy Division revelar todo o seu potencial: a produção sofisticada, atmosférica e atenta aos detalhes de Hannett em Unknown Pleasures, o primeiro álbum do grupo, contrastava com a crueza típica do punk e o mesmo se passava com a elegância sóbria da capa concebida por Peter Saville.

Estes ingredientes foram incapazes de atrair muitos compradores numa época dominada pela estroinice e desleixo típicos do punk e Unknown Pleasures passou despercebido, só entrando nos tops de vendas quando o suicídio de Ian Curtis, no ano seguinte, conferiu ao grupo uma aura trágica. O reconhecimento poderá ter sido tardio, mas não impediu que Unknown Pleasures se tornasse num dos mais influentes álbuns da história.

[“Disorder”]

“Three Imaginary Boys”, The Cure

1976 também foi o ano do surgimento do embrião de The Cure. O grupo passou por muitas mudanças de nome e de formação antes de lançar em 1978 o single “Killing an Arab”, título que, apesar de respaldado na cultura high brow (a inspiração vinha do romance O Estrangeiro, de Albert Camus), não seria hoje aceite por editora alguma (mesmo na altura provocou celeuma).

O primeiro álbum, Three Imaginary Boys, surgiu um ano depois, pelas mãos de Robert Smith (voz e guitarra), Michael Dempsey (baixo) e Lol Tolhurst (bateria), uma das incontáveis formações que o grupo foi tendo até aos nossos dias (e cujo único elemento fixo é Smith). A longa discografia da banda tem discos mais conseguidos do que Three Imaginary Boys, cujo descarnamento nem sempre funciona bem, mas tem inegável valor histórico e dá a ouvir um Robert Smith que ainda não adoptara um tom de voz melodramaticamente lamentoso. A única canção do álbum a ser editada em single, como lado B da segunda vida de “Killing an Arab”, foi “10:15 Saturday Night”, cujo minimalismo está em sintonia com a desolado naco de vida exposto na letra e que descreve de perto a experiência de Smith, quando tinha 16 anos.

[“10:15 Saturday Night”]

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“Join Hands”, Siouxsie and The Banshees

O grupo Siouxsie and The Banshees também tinha nascido na efervescência punk de 1976 e chegou a ter, efemeramente, como baterista Sid Vicious, baixista dos Sex Pistols. O lugar acabaria por passar para as mãos (e pés) de Kenny Morris, enquanto a guitarra, após passar por Peter Fenton, foi parar a John McKay – na voz e no baixo estavam Siouxsie Sioux e Steven Severin, respectivamente. Foi esta a formação que em 1978 lançou The Scream, bem recebido pela crítica e que chegou ao lugar 12 do top britânico.

Join Hands, surgido um ano depois, tinha a pairar sobre si a sombra da I Guerra Mundial, embora aludisse também a outros conflitos bélicos e a situações de disrupção social – temas servidos por música implacavelmente sufocante e obsessiva. O disco subiu ao 13.º lugar do top britânico, mas o sucesso não impediu que dissensões internas levassem à saída de McKay e Morris. A bateria foi confiada a Budgie, que se tornaria membro da banda até ao seu término (e também esposo de Siouxsie), mas a entrada de Robert Smith para a guitarra foi, devido ao seu envolvimento nos The Cure, necessariamente entendida como provisória – o instrumento conheceria mais quatro titulares até à dissolução da banda em 1996.

[“Poppy Day”]

“London Calling”, The Clash

A ideia de lançar um álbum duplo parece pouco condizente com o espírito punk, que cultivava discos de meia hora de duração e canções de dois ou três minutos. Mas, ao terceiro álbum, os The Clash já não eram bem uma banda de punk (felizmente!) e London Calling dá conta da assimilação de linguagens que a banda tinha vindo a experimentar: há nele espaço para pop, reggae, ska, rockabilly, rhythm ‘n’ blues e pitadas de sonoridades mais exóticas.

O som da banda pode ter sido amaciado no dulpo álbum de 1979, mas não a sua militância política: a canção “London Calling” imagina uma Londres a afundar-se (nos sentidos literal e figurado) e que reganhou actualidade com o presente cenário de incerteza e angústia brexitiana, “Lost in the Supermarket” denuncia a alienação e vazio de uma vida regida pelo consumismo, e “Spanish Bombs”, inspirada pelos atentados bombistas da ETA, contrasta a Espanha de 1979, que começava a ser invadida pelo turismo de massas britânico, com a Espanha de finais dos anos 30, onde os voluntários britânicos lutavam ao lado dos Republicanos nas trincheiras da Guerra Civil.

[“Spanish Bombs”]

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“Fear of Music”, Talking Heads

Os nova-iorquinos Talking Heads não tinham raízes no punk – o mais perto que dele estiveram foi quando se estrearam ao vivo, em Junho de 1975, no lendário CBGB, a fazer a primeira parte dos Ramones. Por essa altura ainda eram um trio: David Byrne (voz e guitarra), Tina Weymouth (baixo) e Chris Frantz (bateria), todos estudantes de design (outro desvio em relação ao perfil típico dos pioneiros do post-punk britânico, provenientes da classe operária). Jerry Harrison (guitarra e teclados) só se juntaria ao grupo em Março de 1977, a tempo de participar no álbum de estreia Talking Heads: 77.

Este teve desempenho relativamente modesto (60.º lugar no top dos EUA), mas teve boa recepção crítica e a frescura e irreverência do som da banda despertaram a atenção de Brian Eno, que se tornou produtor do segundo álbum, More Songs About Buildings and Food. A influência de Eno – na prática o quinto membro da banda – levou os Talking Heads para terrenos mais dançáveis, tendência que se tornou mais notória no terceiro álbum, Fear of Music, também por ele produzido.

Por esta altura, Tina Weymouth, que começara a tocar baixo apenas em 1975, usando as canções de Suzi Quatro (!) como guia, tornara-se numa excelente baixista e formava com Frantz uma secção rítmica de irresistível apelo funk, como pode atestar-se em “Life During Wartime”, “Cities” ou “I Zimbra”. Esta última, que conta com a guitarra de Robert Fripp, uma panóplia de percussão (congas, surdo, djembe, etc.) e coros de sabor africano, definiria o caminho que a banda exploraria no álbum seguinte, Remain in Light, e é um marco na história do alargamento das fronteiras do pop-rock.

[“I Zimbra”]

“Lodger”, David Bowie

Mesmo quem tivesse seguido de perto as mutações de David Bowie ao longo da década de 70, dificilmente poderia prever a inflexão de rumo de Lodger, o seu 13.º álbum de estúdio. Após os gélidos e “germânicos” Low (1977) e Heroes (1978), Lodger abriu-se à world music: há marcas de reggae em “Yassassin” e de música africana em “African Night Flight”. É verdade que este exotismo soa flagrantemente postiço e zombeteiro, mas não impede que Lodger tenha sido um disco pioneiro na incorporação de outras tradições musicais na linguagem pop-rock. A inflexão terá sido possivelmente influenciada pelo omnipresente e irrequieto Brian Eno – que co-produziu e co-compôs Low, Heroes e Lodger.

[“African Night Flight”]

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“Regatta de Blanc”, Police

Em 1979, Bowie e The Clash não eram os únicos a acolher influências de reggae. Na verdade, o grupo pop-rock de primeiro plano que mais ficou associado ao reggae foram os Police. O título do segundo álbum deste trio com base em Londres, Regatta de Blanc, aliás deixa explícita a conexão jamaicana: supostamente significa, em fake French, “reggae de branco”.

Os Police tinham começado vida, no início de 1977, na área do punk, embora quer Sting (voz e baixo) quer Stewart Copeland (bateria) possuíssem uma proficiência instrumental que nada tinha a ver com a atitude “meia-bola-e-força” do punk (Sting tocara em bandas de jazz e de fusão e Copeland, que viria a ser admitido no hall of fame dos bateristas, vinha do prog-rock) e também Andy Summers (guitarra), que se lhes juntou no final de 1977, tinha sólida formação clássica e larga experiência como músico de sessão. As poucas marcas de punk audíveis em Outlandos d’Amour (mais fake French) desapareceram de vez em Regatta de Blanc e a presença do reggae fortaleceu-se – é particularmente audível em “Walking on the Moon” e “Bring on the Night”.

Outlandos d’Amour começara por ter um sucesso modesto na Grã-Bretanha, mas o relançamento da canção “Roxanne” granjeou um sucesso que puxou o álbum até ao 6.º lugar do top, proeza que seria superada por Regatta de Blanc, que chegou ao n.º1.

[“Message in a Bottle”]

“Recent Songs”, Leonard Cohen

Nem só de inovação e mudança de direcção se fez o ano de 1979: Leonard Cohen, após o calamitoso Death of a Ladies’s Man (1977), arruinado pelos arranjos e produção grotescos impostos por Phil Spector, decidiu assumir, em parceria com Henry Lewy, um engenheiro de som em quem tinha confiança, o controlo da produção do seu  álbum seguinte e regressar a uma sonoridade mais próxima do seu início de carreira.

Recent Songs acolheu elementos “exóticos” – um tocador de oud (alaúde árabe), um violinista cigano, uma orquestra mariachi, uma banda de inclinações jazzísticas – mas estes são aplicados com conta, peso e medida, e o elemento dominante nunca deixa de ser a voz e a guitarra acústica de Cohen. Poderá argumentar-se que, ainda assim, os floreados instrumentais de Recent Songs distraem a atenção do essencial e que as canções de Cohen pedem a austeridade de Songs from a Room ou de Songs of Love and Hate. Mas no que toca a arranjos inadequados, muito pior estaria para vir, como lamentarão os fãs mais puristas, para quem as “recent songs” seriam também as “last songs” de Cohen que vale a pena ouvir.

[“The Gipsy’s Wife”]

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“Rust Never Sleeps”, Neil Young

Neil Young, que passara os dez anos anteriores a oscilar entre as vertentes acústica e eléctrica, escolheu reunir ambas as facetas em Rust Never Sleeps, um disco gravado (na sua maior parte) ao vivo no The Boarding House, de São Francisco, em 1978: no lado A, Young surge só com guitarra acústica, no lado B, toma a guitarra eléctrica e chama ao palco os Crazy Horse. Uma canção, “Hey Hey, My My”, surge em duas versões: “Hey Hey, My My (Out of the Blue)” abre o disco, “Hey Hey, My My (Into the Black)” encerra-o. É uma canção fulcral não só do álbum, como da carreira de Neil Young, e até da história do rock.

O punk viera derrubar o statu quo e decretar a obsolescência dos músicos que tinham ganhado carácter “institucional” e, por volta de 1977, Young começou a pôr em causa a relevância da sua carreira. A dúvida é expressa no acústico “Hey Hey, My My (Out of the Blue)” e a resposta é a versão eléctrica, “Hey Hey, My My (Into the Black)”, que opera uma renovação através da electricidade e de uma sonoridade brutal de guitarra, que prefigura, com mais de uma década de antecedência, a explosão do grunge.

Em 1979, com quase 25 anos de carreira atrás de si, Neil Young vinha proclamar bem alto que não estava disposto a definhar ingloriamente: “It’s better to burn out than to fade away”.

[“Hey Hey, My My (Into the Black)”]

“Mingus”, Joni Mitchell

Quem também não estava disposta a estiolar enquanto repetia fórmulas gastas era a sua compatriota Joni Mitchell: começara carreira, no final dos anos 60, na área da folk acústica e cristalina, e fora passando por sucessivas mudanças ao longo da década de 70, que a foram aproximando do jazz e que culminaram no seu 10.º álbum, Mingus, disco de natureza experimental, de homenagem ao contrabaixista Charles Mingus, que contou com um notável elenco de jazzmen – Wayne Shorter, Herbie Hancock, Jaco Pastorius (que começara a trabalhar com Mitchell em Hejira, de 1976) e Peter Erskine. Mingus, severamente incapacitado pela progressão da esclerose lateral amiotrófica, contribui para o disco com três composições originais (mais “Goodbye Pork Pie Hat”, um clássico de 1959), a que Mitchell adicionou letras. Mingus morreu em Janeiro de 1979, cinco meses antes do lançamento do álbum.

[“Goodbye Pork Pie Hat”]

O melhor da música em 2018

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Os melhores discos de jazz de 2018
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A Grã-Bretanha anda desnorteada e a angústia em relação ao pós-Brexit adensa-se, mas o jazz britânico nunca esteve tão pujante: quatro dos grupos responsáveis pelos melhores discos de jazz de 2018 são súbditos de Sua Majestade (embora um dos músicos envolvidos não se reveja nela). O jazz português também está cá representado, por direito próprio e não por enviesamento nacionalista.

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A ópera barroca é um universo que só há pouco começou a ser explorado e que ainda tem imensos tesouros para revelar. Este ano há duas excepcionais selecções de árias de Handel e Vivaldi em interpretações tão frescas e vivas que se diria que a música foi composta na véspera, e iniciou-se a prospecção das cerca de 40 óperas de Porpora. Mas 2018 foi também o ano em que chegou ao disco uma inquietante ópera estreada em 2005 e o ano do centenário da morte de Debussy.

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