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Tentações de Santo Antão
Tentações de Santo Antão

Dias da Música: do Inferno ao Paraíso guiados por Bosch

Os Dias da Música propõem visitar o que fica para além da morte, num percurso inspirado pela pintura de Hieronymus Bosch

Escrito por
José Carlos Fernandes
e
Francisca Dias Real
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A Time Out fornece indicações para que, neste roteiro, se evitem os lagos de alcatrão fervente e as hordas de demónios armados de forquilhas e instintos sádicos.

Hoje há uma boa probabilidade de encontrar as palavras “inferno” e “paraíso” integradas em expressões como “o inferno da Luz” e “paraísos fiscais”, os destinos de férias são publicitados como “paradisíacos” e alguém poderá qualificar como “infernal” a experiência de ter ficado sem acesso ao Facebook durante dois dias. Nos nossos dias, mesmo entre quem afirma professar a fé cristã e observa alguns dos seus ritos, poucos pensarão uma vez por mês em Paraíso e Inferno ou gastarão tempo a equacionar se os pecados cometidos na passagem por este mundo irão ditar a sua salvação ou a sua danação. Mas para as gentes da Idade Média, Paraíso e Inferno não eram meros artifícios de linguagem ou abstracções difusas e remotas, eram conceitos muito vívidos e presentes, que moldavam o pensamento, condicionavam opções de vida, povoavam sonhos e orações e inflamavam a imaginação de criadores.

Um desses criadores foi o flamengo Jheronimus van Aken, mais conhecido como Hieronymus Bosch (c.1450-1516) e que está representado no Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa por uma das suas mais notáveis criações, o tríptico das Tentações de Santo Antão, realizado por volta de 1501. A pintura de Bosch abunda em representações do Inferno (tenebrosas e grotescas), do Paraíso (plácidas e desconcertantes) e da vida terrena, vista pelo olhar moralista do pintor como infestada de vícios, pecados e comportamentos bizarros, e são estes temas – estruturados num tríptico + portada – que servem de fio condutor à edição deste ano dos Dias da Música em Belém. Dos concertos que vão ter lugar entre quinta-feira e domingo, seleccionámos nove. Se assistir a todos não terá automaticamente direito a entrar no Paraíso, mas terá seguramente desfrutado de momentos sublimes.

Recomendado: Os Dias da Música no CCB também são para os miúdos

Dias da Música: do Inferno ao Paraíso guiados por Bosch

Portada: A expulsão do Paraíso

Haydn: A Criação: solistas, Voces Caelestes, Orquestra de Câmara Portuguesa, Pedro Carneiro

A oratória A Criação, estreada em 1799, foi talvez a obra a que Haydn consagrou mais tempo e cuidado. Quando das suas estadias na Grã-Bretanha, tivera a oportunidade de assistir a apresentações grandiosas das oratórias de Handel e estas inspiraram-no a tentar algo de similar, sobre um libreto que, originalmente, fora destinado a Handel. O libreto, cujo autor se desconhece, combina fontes bíblicas (em particular o Génesis) com o poema Paradise Lost, de Milton, e tem por assunto a criação do universo – abre com uma ousada representação sonora do caos e termina com a expulsão de Adão e Eva do Paraíso.

[No Paraíso, Adão e Eva (o tenor Matthew Rose e a soprano Lucy Crowe) dão graças a Deus pelas boas coisas que fez. Com o Coro e a Orquestra de Câmara da Rádio Holandesa e a direcção de John Nelson, na Grote Kerk, Naarden, Holanda, 2010]

Grande Auditório, Quinta 26, 21.00, 6-14.5€.

Painel 1: O Inferno e os castigos

Berlioz: A Danação de Fausto: solistas, Coro do TNSC, Orquestra Sinfónica Portuguesa, Frédéric Chaslin

A Danação de Fausto é um híbrido entre oratória, cantata e ópera, inspirada pelo Fausto de Goethe, cuja leitura já tinha suscitado, em 1829, a composição das Oito Cenas de Fausto. Em 1845, Berlioz regressou a esta obra de juventude (fora o seu opus 1) e reciclou-a numa “lenda dramática” que estreou, em versão de concerto, no ano seguinte. O enredo é célebre: Fausto, desgastado por uma vida consagrada à busca de uma sabedoria em que já não vê nada de apelativo, deixa-se levar por Mefistófeles, que lhe promete devolver a juventude e o gosto pela vida e pelo conhecimento, bem como o amor de uma mulher que lhe revela numa visão: Margarida. Fausto, a quem os anos de estudo não ensinaram que se deve desconfiar de ofertas demasiado generosas, aceita (provavelmente seria também homem para subscrever papel comercial do BES). Acaba por meter-se em sarilhos e envolver Margarida neles – para a salvar aceita entregar a alma a Mefistófeles e acaba por ir parar ao Inferno.

[“Corrida para o abismo & pandemónio”, por Plácido Domingo (Fausto) e Dietrich Fischer-Dieskau (Mefistófeles) e a Orchestre de Paris, com direcção de Daniel Barenboim, 1978. Fausto e Mefistófeles cavalgam dois cavalos negros, correndo para salvar Margardia da prisão: a paisagem é tenebrosa, o céu ameaça tempestade e Fausto é assombrado por visões infernais – e acaba por perceber que caiu na armadilha de Mefistófeles e está a entrar no Inferno]

Grande Auditório, Sexta 27, 21.00, 6-14.5€.

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Painel 2: Pecados e tentações terrenas

Weill: Os Sete Pecados Mortais: solistas, Orquestra Clássica do Sul, Rui Pinheiro

Os Sete Pecados Mortais também é um híbrido: um bailado cantado, que mistura cabaret e ópera. A obra foi encomendada a Kurt Weill em Paris, onde se refugiara após a ascensão de Hitler ao poder, e o libreto foi fornecido por Bertolt Brecht, seu colaborador usual. Apesar de o título remeter para a teologia cristã, o libreto é, antes de mais, uma feroz sátira do American Dream e do capitalismo, que é identificado como principal fonte de corrupção e miséria. A ganância inerente à lógica capitalista é vista como o pior dos pecados, o que provavelmente faz de Os Sete Pecados Mortais uma obra pouco popular em Wall Street. A ópera estreou em 1933, com o mundo ainda mergulhado na Grande Depressão, e soará actual num ano de 2018 em que ainda não cicatrizaram as feridas do crash de 2007 e já os banqueiros exigem a desregulação dos mercados financeiros.

[Prólogo de Os Sete Pecados Mortais, por Lotte Lenya e orquestra dirigida por Roger Bean, gravação de 1956-57 (Sony Classical)]

GA, Sábado 28, 19.00, 6-14.5€.

Puccini: Gianni Schicchi: solistas, Orquestra de Câmara Portuguesa & Deutsche Kammerorchester Berlin, Bruno Borralhinho

Gianni Schicchi (1918) entra no programa por portas travessas: na Divina Comédia, Dante menciona um Schicchi condenado às chamas eternas por se ter feito passar por outrem. Giovacchino Gorzano, o libretista desta ópera em um acto concebida como 3.ª parte do tríptico que inclui Il Tabarro e Suor Angelica, recorreu a elementos provenientes de Dante mas introduziu alterações substanciais: quando a família do falecido Buoso, um homem abastado de Florença, lê o seu testamento, descobre que ele legara tudo a um mosteiro, pedem conselho a Schicchi; dando-se conta que, fora da família, ninguém sabe do falecimento de Buoso, Schicchi propõe ocultar o morto, fazer-se passar por ele e chamar um notário para alterar o testamento em favor da família. Assim faz, mas acaba por ditar ao notário que o grosso da herança vá para um certo... Gianni Schicchi. No final, Schicchi dirige-se ao público, pedindo que este não seja tão duro na sua condenação como Dante – e a verdade é que Forzano fez dos membros da família uns biltres tão gananciosos que quase merecem ter sido ludibriados por Schicchi.

[“O Mio Babbino Caro” – de longe o trecho mais célebre de Gianni Schicchi – pela soprano Maria Callas e a Orquestra Sinfónica da RAI, com direcção de Tulio Serafin, 1955]

GA, Sábado 28, 21.00, 6-14.5€.

Berlioz/Liszt: Sinfonia Fantástica: Artur Pizarro

A paixão não-correspondida pela actriz irlandesa Harriet Smithson inflamou a imaginação de Berlioz na composição de uma sinfonia programática que relata as desventuras de um artista que, vendo-se rejeitado pela amada, tenta suicidar-se com uma overdose de ópio; porém, em vez de o matar, o ópio mergulha-o num pesadelo tenebroso em que julga ter assassinado o objecto da sua paixão e é condenado à morte. A Sinfonia Fantástica (1830), será ouvida na transcrição para piano realizada por Franz Liszt.

[“Un Bal”, da Sinfonia Fantástica, na transcrição para piano de Liszt, por Eric Ferrand-N’Kaoua, ao vivo no Festival Berlioz, erm La Côte-Saint-André, terra natal do compositor, 2009]

PA, Sábado 28, 16.30, 11.5€.

Scarlatti: Caim ou o Primeiro Homicídio: Ludovice Ensemble, Fernando Miguel Jalôto

Além de compositor prolífico de óperas e cantatas profanas, Scarlatti deixou uma trintena de oratórias, entre as quais se conta esta, estreada em Veneza em 1707, que relata o assassinato de Caim por Abel e onde intervêm, além de Adão e Eva e dos dois irmãos, as vozes de Deus e de Lúcifer. O episódio bíblico, semente da violência que viria a marcar a história da humanidade, é apresentado sob uma forma “pedagógica” e moralizadora, com argumentos em prol do Bem e do Mal que visam levar os pecadores ao reconhecimento das suas faltas e ao arrependimento.

[Dueto “La Fraterna Amica Pace”, por Bernarda Fink (Caím), Graciela Odone (soprano) e a Akademie für Alte Musik Berlin, em instrumentos de época, com direcção de Rená jacobs (Harmonia Mundi)]

PA, Sábado 28, 19.00, 14.5€.

Música flamenga no tempo de Bosch: Orlando Consort

No tempo de Bosch – 1450-1516 – a música europeia vivia sob o domínio absoluto dos seus conterrâneos, que ocupavam, como cantores e compositores os mais prestigiados postos pela Europa fora. O Orlando Consort, ensemble vocal especializado na Idade Média e Renascimento, delineou um programa com compositores flamengos associados à cidade natal de Bosch, ‘s-Hertogenbosch (hoje na Holanda), a que o pintor foi buscar o seu nome artístico. Vão ouvir-se obras de grandes mestres como Josquin Desprez e Heinrich Isaac e também de nomes hoje menos conhecidos, como Pierre de La Rue, Thomas Crecquillon ou Mattheus Pipelare.

[“In Te Domine, Speravi”, de Josquin Desprez, pelo Orlando Consort]

Sala Luís Freitas Branco, Sábado 28, 19.00, 9.5€.

Painel 3: As graças divinas e a reconquista do Paraíso

Liszt: Sinfonia Dante: Coro Sinfónico Lisboa Cantat, Orquestra Sinfónica Metropolitana, Pedro Amaral

Talvez esta monumental sinfonia coral, estreada em 1857 e baseada na obra-prima de Dante, ficasse mais bem arrumada no 1.º painel. Acontece que Liszt só musicou as duas primeiras partes da Divina Comédia – Inferno e Purgatório – pois Wagner (que viria a tornar-se seu genro e dedicatário da obra) convenceu-o de que nenhum compositor seria capaz de exprimir as delícias do Paraíso. Liszt adoptou uma solução de compromisso, finalizando a obra com um Magnificat.

[III parte (Magnificat) da Sinfonia Dante, pelo coro feminino da Rundfunkchor Berlin e Filarmónica de Berlim com direcção de Daniel Barenboim (Teldec/Warner)]

GA, Domingo 29, 17.00, 6-14.5€.

Schumann: Das Paradies und die Peri: solistas, Coro Gulbenkian, Orquestra XXI, Dinis Sousa

O Paraíso e a Peri é uma cantata (ou oratória profana) sobre o tema da redenção que se encerram os Dias da Música. O libreto, da autoria do próprio compositior, baseou-se num dos enredos que faz parte de Lalla-Rookh, um romance de sabor oriental de Thomas Moore, e narra as demandas de uma peri, uma criatura alada da mitologia persa, que foi expulsa do Paraíso e tudo faz para nele ser readmitida – o que só consegue quando oferece aos Céus as lágrimas de um pecador arrependido. Esta obra luminosa, estreada em 1843, marca um cume na vida de Schumann – os anos do entusiasmo, do optimismo e da produção torrencial não voltariam e a depressão e as perturbações mentais iriam corroer lentamente as suas capacidades.

[“Jetzt Sank des Abends Gold’ner Schein” (n.º 21 de Paraíso e a Peri), pelo barítono Christian Gerhaher e a Orquestra Sinfónica da Rádio da Baviera, com direcção de Nikolaus Harnoncourt, 2005: “Agora cai o esplendor dourado do entardecer na terra de rosas da Síria”. O texto descreve um Próximo Oriente fértil, próspero, perfumado e tranquilo, quase um paraíso terreno. A redenção da Peri só será alcançado no penúltimo andamento (n.º 25)]

Grande Auditório, Domingo 29, 19.00, 6-14.5€.

Dias da Música: do Inferno ao Paraíso guiados por Bosch

Danças brasileiras e africanas
  • Atracções
  • Belém

Precisamos de viajar ao século XVII, na era colonial do Brasil, para assistirmos ao início da capoeira, a luta disfarçada de dança. Na altura, surgiu como uma forma de autodefesa baseada em danças e rituais africanos, mas hoje é uma tradição perpetuada da espiritualidade brasileira e é com base nisso que no dia 28 a programação aponta para a Capoeira e Danças Populares Brasileiras, às 15.30 no Palco Poente (foyer do Grande Auditório), uma apresentação do Centro Cultural Arte Pura de Lisboa. No mesmo palco e noutro continente, a Associação Cultural e Juvenil Batoto Yetu Portugal dá-lhe a conhecer a dança tradicional africana, às 20.00, através de uma oficina de dança para toda a família com elementos originários de Angola, Congo, Guiné, Cabo Verde, África do Sul, e danças afro-brasileiras.

Palco Poente (foyer do Grande Auditório) 15.30 e 20.00.

  • Atracções
  • Belém

Ainda no Palco Poente, Tiago Marques assume a direcção musical do espectáculo Espirituais Negros, apresentado pelo grupo Jazz Cantat com um repertório que vai dos standards do jazz à música ligeira portuguesa. Neste momento musical, que acontece às 16.15, ouvem-se cânticos como um meio de expressão dos sentimentos de sofrimento, dor e angústia da vida dos escravos americanos. Sem mudar de palco, às 18.15, o Saint Dominic’s Gospel Choir, fundado em 2002, traz ao público o espírito do gospel – aquele que regularmente associamos aos coros de igrejas locais – para um momento mais animado, a cantar e a bater palmas como manda uma verdadeira actuação de gospel.àPalco Poente (foyer do Grande Auditório). 16.15 e 18.15.

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Cinco exposições em Lisboa a não perder nos próximos meses
  • Arte

A agenda de exposições em Lisboa vai de vento em popa. Há cinco, pelo menos, que não pode perder. Pode tentar descobrir a fórmula da felicidade, ou até mesmo recuar uns anos ao movimento da pop art. Aponte já na agenda, porque estas são daquelas exposições que não inauguram todos os dias.

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