A oferta musical já não é o que era. Por causa da pandemia, consome-se muito menos música ao vivo em Lisboa, e grandes artistas internacionais nem vê-los. Mas o panorama podia ser bem pior.
Writing about music is like dancing about architecture – Frank Zappa
O L.U.M.E. é uma big band peculiar. O acrónimo condensa o nome Lisbon Underground Music Ensemble e serve de toldo para um colectivo de 15 músicos, que há 15 anos se dedica a seguir caminhos mais ou menos inesperados e a provocar episódios de indisciplina entre o jazz e a música erudita.
A data, mais ou menos redonda, celebra-se com um disco que fecha um triângulo perfeito, e uma pequena digressão europeia que começa este sábado, 2 de Outubro, no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém. O álbum chama-se Las Californias, é o terceiro na discografia do grupo, e serve de pretexto para uma conversa com Marco Barroso, o homem que engendrou tudo isto, compositor, pianista e responsável por samples e manipulações electrónicas que ajudam a desestruturar todas as expectativas que possamos ter sobre aquilo a que uma big band é suposto soar.
O disco de estreia, homónimo, saiu pela JACC Records (2010), depois pela editora belga Buzz (2013), e foi ovacionado pela crítica (na Time Out levou todas as estrelinhas que tínhamos para dar e ficou guardado numa lista de discos essenciais do jazz português, sabiamente compilada por José Carlos Fernandes). Três anos mais tarde, já pela Clean Feed, sai Xabregas 10, registo captado ao vivo no festival Jazz em Agosto de 2014. E agora, com o mesmo selo, depois de alguma espera e muita estrada, eis o terceiro capítulo de um livro de pautas rigoroso, mas sempre escancarado à improvisação, onde se conta uma história cheia de inspiração mas que nem sempre precisa de fazer muito sentido.
Na apresentação do disco lê-se que Las Californias são um antídoto para o mundo em que hoje vivemos. O que é que neste mundo em que vivemos precisa de antídoto e de que forma é que uma cavalgada a 154 batidas por minuto pode servir o propósito?
Eh pá... é daquelas coisas, pedem para escrever um texto, sai-me a frase que soa bem e depois ela volta para me perseguir [riso]. Mas faz sentido... mesmo que seja só a posteriori. O disco foi feito em pandemia, estávamos a viver um ambiente meio de distopia, e a ideia subjacente a essa peça “Las Californias” – e na verdade a todo o disco – é quase uma utopia hedonista. E depois a malta achava especial graça àquele título, talvez orelhudo. Comecei a achar que podia ser representativo de um espírito meio fantasioso, escapista, de um certo onirismo que havia no disco. Tudo em contraponto ao confinamento que estávamos a viver. E tinha a piada de estar escrito em espanhol...
Os títulos parecem querer sublinhar o humor que já atravessa a música de modo mais ou menos subtil... em “Dr Tulip”, por exemplo, há um saxofone que zurra.
[Riso] Pá, a nossa música tem um bocado de humor, sim... Há um aspecto muito surrealista nisto tudo. Eu gosto do surrealismo... Se quisermos pensar em rótulos, há um certo surrealismo, uma certa cena absurdista, de jogo com o humor e com coisas quase ilógicas do ponto de vista da forma.
Esse humor chega ao palco?
Às vezes soltam-se umas bocas e o pessoal ri-se [riso]. Mas gosto de manter a coisa mais sóbria e discreta. Até porque isso acaba sempre por se virar contra ti. Os elementos de paródia, de absurdo, de humor que há na música, esses sim, acabam por nos contagiar em palco. É uma das marcas do L.U.M.E., ser uma música enérgica que tem uma ponta de humor. Música a sério não precisa de ser séria.
O entrevistador empenha-se na busca de um sentido maior para tudo isto, mas a coisa não melhora. Se tentar definir o surrealismo já soa a traição ao próprio movimento, procurar explicações para música ancorada em sonhos, devaneios e inconsciências pode ser tortuoso. As composições de Marco Barroso tanto evocam Frank Zappa como a Flat Earth Society, uma cambada de belgas que também se entretém a subverter o formato big band a trinta mãos. Há colagens de samples a alta velocidade, travagens abruptas de ritmo, progressões harmónicas desconcertantes, centenas de pormenores de arranjos. Nada parece deixado ao acaso, tudo parece obsessivamente escrito.
A própria comunicação do disco traz coordenadas muito precisas sobre a música. Fala, por exemplo, da “nostalgia surrealista de um mundo pseudo-vintage”.
Pois... lá está, é preciso cuidado [riso]. Pedem- -nos para escrever, dizemos umas coisas engraçadas, depois aquilo faz um feedback e volta-se. Mas é um pouco isso. As “AM Phantasies”, por exemplo, são imaginadas como música que pudesses ouvir no rádio na primeira parte do século XX, essencialmente jazz mais precoce, swing, ragtime... É uma apropriação disso de uma forma meio surrealista, por isso pseudo-vintage. Já a “Cleptophonie Phantastique” é uma referência à “Symphonie Phantastique” do Berlioz. Como o próprio nome indica, aquilo são colagens de várias partituras de vários compositores que eu basicamente roubo e tento fazer uma coisa original.
Passemos então a coisas mais concretas. O L.U.M.E. apresenta-se como um “ensemble que reúne 15 músicos em torno de uma mesma visão: a procura por caminhos inesperados e improváveis na tensão constante entre composição e improvisação.” Pergunta-se então quanto desta música está escrita, quanto é improvisação.
“É muito escrito, mas há sempre espaço para improvisação. Muita escrita difícil, pesada... O L.U.M.E. é uma formação heterogénea do ponto de vista dos perfis dos músicos, o que subscreve também um bocadinho do eclectismo da própria música. É malta que vem fundamentalmente do jazz e da música clássica, mas alguns fazem coisas diferentes, rock, música experimental, seja o que for, coisas mais comerciais. Muitos improvisam, uns são mais solistas... Mas são todos leitores.”
Tudo corre, portanto, um pouco naquele estilo Frank Zappa, em que parece que até o improviso está escrito...
Sim, o Zappa não é uma referência alheia [riso]. Há muita coisa escrita, pode-se dizer um bocadinho no espírito do Zappa... sem arriscar colar-me, claro, mas Zappa é coisa que oiço muito. Em palco há sempre espaço para improvisação. Mas a maior parte do tempo estamos a ler.
Na construção deste disco, por exemplo, chegou tudo escrito a estúdio?
Normalmente, num disco do L.U.M.E. eu vou fazendo peças e chega a um ponto em que proponho que as gravemos. Nem há uma intenção conceptual, a ideia de fazer um conjunto de peças com um conceito a presidir, para caber num disco...
E agora é que me dizes...?
[Riso] Tudo isto tem um sentido, mesmo que só se perceba a posteriori. Mas tem a ver com a própria natureza de como o grupo funciona. Vamos tocando, aqui e ali, e de caminho vamos ensaiando e integrando novas peças à medida que eu as tenho prontas.
Nesse aspecto este é um projecto com uma cabeça, a tua...
Em termos de composição, sim. Há um trabalho árduo mais solitário. Passo meses a pensar nas peças, têm muita escrita... Nesse aspecto, sim, há um lado muito pessoal no projecto. Mas é um colectivo. Só que eu é que tenho de ir pondo gasolina na cena [riso]. E neste disco, então, foi um pouco diferente. Há umas coisas que nunca tínhamos tocado. Normalmente, quando íamos para estúdio, já estava tudo muito rodado ao vivo. Aqui meteu-se a pandemia e fomos directamente do trabalho de composição para o estúdio.
Quanto tempo estiveram sem tocar?
Um ano e meio, para aí....
Isso quer dizer que vamos ter estreias absolutas ao vivo.
É. Nem tinha pensado nisso. Promete!
CCB (Lisboa). Sáb (2 de Outubro) 19.00. 12€-15€ | Seixal Jazz. Fórum Cultural do Seixal. 16 de Outubro (Sáb) 22.00. 12€-24€ | Outono em Jazz. Casa da Música (Porto). 19 de Outubro (Ter) 21.00. 14€