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Orfeu
A morte de Orfeu às mãos das mulheres trácias, num taça (kantharos) grega c.420-410 a.C.

Sete óperas barrocas inspiradas no mito de Orfeu

Orfeu, que inventou a lira e encarna o poder da música, presidiu ao nascimento da ópera e foi um dos assuntos favoritos do género até ao final do século XVIII.

Escrito por
José Carlos Fernandes
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Muito antes de haver rock stars e Fender Stratocasters, havia Orfeu e a sua lira: quando a tocava e cantava não fazia estádios de futebol entrar em delírio, mas deixava os humanos suspensos do seu canto e tornava mansas as bestas selvagens. Parecia fadado a viver feliz para sempre com a ninfa Eurídice, mas quis o destino que esta sucumbisse à mordedura de uma serpente. Num primeiro momento, Orfeu ficou devastado pela perda, mas depois decidiu descer ao Inferno para resgatar a amada e, pelas artes da sua voz e da sua lira, conseguiu convencer Hades (o Plutão dos romanos), com a ajuda da esposa, Perséfone (Proserpina, para os romanos) a deixá-lo levar Eurídice de volta ao mundo dos vivos. Plutão impôs-lhe a condição de fazer o caminho à frente de Eurídice e sem olhar para ela até chegar à superfície. Mas Eurídice, perplexa com a aparente indiferença de Orfeu, tanto o assediou com questões angustiadas que, a uns passos de sair do submundo, Orfeu voltou os olhos para a sua amada e perdeu-a definitivamente.

O mito de Orfeu tem diferentes versões, com variações no enredo e, se bem que em todas o desgostoso Orfeu acabe despedaçado por um turba de ménades (ou bacantes) trácias, diferentes razões são usadas para justificar a fúria homicida destas: ter-se-ão sentido insultadas pela fidelidade de Orfeu à memória de Eurídice; ou por Orfeu ter passado a preferir a companhia de rapazes; ou por Orfeu praticar rituais herméticos de que as mulheres eram excluídas; ou ainda por Orfeu se ter tornado abstémio e renegado o culto de Dionísio/Baco.

Os “inventores” da ópera, na Itália do século XVII, julgavam estar a ressuscitar uma prática musical da Grécia Antiga, pelo que foram buscar os primeiros enredos à mitologia clássica – e o mito de Orfeu tornou-se num dos favoritos.

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Sete óperas barrocas inspiradas no mito de Orfeu

Euridice, de Peri/Caccini

Data e local de estreia: 1600, Palazzo Pitti, Florença
Compositor: Jacopo Peri (1561-1633), com Giulio Caccini (1551-1618)
Libretista: Ottavio Rinuccini

Peri e Rinuccini foram os autores daquela que é considerada a primeira ópera da história, Dafne, estreada em 1597 no Palazzo Corsi, em Florença. Porém, esta partitura perdeu-se, pelo que a primeira ópera que chegou aos nossos dias foi a segunda: a Euridice realizada pela mesma dupla, com a colaboração musical de Giulio Caccini, e que serviu para, a 6 de Outubro de 1600, abrilhantar o casamento de Maria de’ Medici e Henrique IV de França. Apesar do que o título pode sugerir, a ópera tem o foco assente em Orfeu, papel que foi cantado pelo próprio Peri. Em consonância com a atmosfera festiva da estreia, Rinuccini alterou o enredo de forma a obter um final feliz: Hades/Plutão não impõe condições a Orfeu para o resgate e o casal regressa são e salvo ao mundo dos vivos.

[“Per Quel Boschetto”, por Sylva Pozzer (Euridice, soprano) e Ensemble Albalonga, com direcção de Anibal E. Cetrangolo (Pavane Records)]

Euridice, de Caccini

Data e local de estreia: 1602, Palazzo Pitti, Florença
Compositor: Giulio Caccini
Libretista: Ottavio Rinuccini

A relação entre Caccini e Peri passou muito rapidamente da colaboração para a rivalidade acesa, com ambos a quererem afirmar-se como “inventores” do conceito de ópera e do stile rappresentativo (o canto monódico, por oposição ao canto polifónico renascentista) sobre o qual ela assentava. Quando Caccini soube que Peri pretendia publicar a partitura de Euridice sem o creditar, preparou num ápice uma Euridice completa, recorrendo ao mesmo libreto, mas só com música sua, e fê-la publicar em Janeiro de 1601, seis semanas antes de a Euridice de Peri ser impressa. A estreia da Euridice de Caccini só teve lugar em 1602.

[“Funeste Piaggie”, por Nicholas Achten (Orfeo, barítono) e Scherzi Musicali, com direcção de Nicholas Achten (Ricercar)]

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L’Orfeo, de Monteverdi

Data e local de estreia: 1607
Compositor: Claudio Monteverdi (1567-1643)
Libretista: Alessandro Striggio Jr.

Vincenzo Gonzaga, duque de Mântua e munificente patrono das artes, foi um dos convidados do casamento de Maria de’ Medici e Henrique IV de França e terá entendido que o conceito “inventado” por Peri e Caccini tinha potencial e podia ser melhorado se, em vez de ser levado a cabo por compositores meramente talentosos, fosse confiado a um génio. E como tinha um ao seu serviço – Claudio Monteverdi – encarregou-o de preparar uma ópera sobre o mesmo tema para ofuscar os rivais florentinos. Nada foi deixado ao acaso e nenhuma despesa foi considerada excessiva: bastará comparar a meia dúzia de instrumentos empregues nas primeiras óperas florentinas e os 38 instrumentos criteriosamente discriminados na partitura do Orfeo de Monteverdi (uma orquestra de dimensão inédita para os padrões de então).

O libreto de Striggio afasta-se do de Rinuccini: Eurídice tem de voltar ao Inferno, mas há ainda assim um final feliz, pois o choroso Orfeu recebe a visita de Apolo, seu pai, que reprova as suas lamentações e o convida a ascender ao Olimpo na sua companhia.

[“Orfeo Son Io”, por Victor Torres (Orfeo, barítono) e Ensemble Elyma, com direcção de Gabriel Garrido (K617)]

La Morte d’Orfeo, de Landi

Data e local de estreia: 1619, Roma
Compositor: Stefano Landi (1587-1639)
Libretista: possivelmente o próprio compositor, segundo La Favola d’Orfeo, de Angelo Poliziano

Esta “tragicomedia pastorale” não só foi a primeira ópera sobre Orfeu a introduzir elementos cómicos, como, ao contrário das que a antecederam, a sua acção decorre após o fracasso da tentativa de resgate de Eurídice por Orfeu. Acabrunhado pela perda, este renuncia ao vinho e às mulheres (Jeroen Dijsselbloem haveria de aprovar), o que deixa o deus Baco tão despeitado que dá ordem às suas seguidoras, as bacantes, para o fazerem em postas. Os deuses, apiedados do infortúnio do cantor, concedem-lhe que se junte a eles no Olimpo, mas Orfeu, obcecado com a memória de Eurídice, diz que prefere descer ao Inferno para se juntar à sua amada – só acede a ascender ao Olimpo quando Mercúrio lhe mostra que Eurídice, por ter bebido as águas do Letes, o rio do esquecimento, já não faz ideia de quem seja Orfeu.

Landi , que fez carreira em Roma, seria, em 1632, autor da ópera Il Sant’Alessio, a primeira da história a não ter um libreto inspirado na mitologia greco-romana.

[Coro das Ménades, pelo Ensemble Vocal Currende e Tragicomedia, com direcção de Stephen Subbs (Accent)]

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Orfeo, de Rossi

Data e local de estreia: 1647, Théâtre du Palais-Royal, Paris
Compositor: Luigi Rossi (c.1597-1653)
Libretista: Francesco Buti

A apresentação em Roma, em 1642, da primeira ópera de Luigi Rossi, Il Palazzo Incantato, não foi um sucesso completo, mas conferiu a Rossi prestígio suficiente para que o cardeal Jules Mazarin (Giulio Mazzarino), primeiro-ministro de França, incluísse Rossi nos compositores italianos que convocou, entre 1645 e 1662, a fim de divulgar em França o género operático, então quase desconhecido no país.

Foi assim que, em 1647, estreou em Paris, Orfeo, a segunda ópera de Rossi, numa produção faustosa, com seis horas de duração e elaborada maquinaria de cena (foram empregues 200 homens para a accionar). Na verdade, a produção foi faustosa demais, pois os seus custos serviram para acirrar o descontentamento popular contra o cardeal, desencadeando uma revolta generalizada. Quando Rossi regressou a Paris em 1648, contando que lhe encomendassem uma nova ópera, deu com o nariz na porta, pois a revolta forçara a corte a fugir da capital.

Poderá parecer estranho que um enredo tão simples como o de Orfeu e Eurídice leve seis horas a desenrolar-se, mas, por esta altura, os libretistas tinham ganho o hábito de adicionar intrigas paralelas, episódios cómicos e pretextos (por vezes tolos) para recorrer a “efeitos especiais” espectaculares.

[“Ah, Piangete”, por David Tricou (Apollo) e pelo Coro & Ensemble Pygmalion, com direcção de Raphaël Pichon e encenação de Jetske Mijnssen, ao vivo na Opéra National de Lorraine, Nancy, 2016]

L’Orfeo, de Sartorio

Data e local de estreia: 1672, Teatro San Salvatore, Veneza
Compositor: Antonio Sartorio (1630-1680)
Libretista: Aurelio Aureli

O libreto de Aureli atesta bem as liberdades de escrita que, nesta fase da história da ópera, tornavam os enredos mitológicos quase irreconhecíveis: faz cair do céu Aristeu, um meio-irmão de Orfeu (que também está apaixonado por Eurídice) e a sua noiva, Autonoe (que não se resigna a ver-se rejeitada por Aristeu), Aquiles, o centauro Quíron, Hércules e dois criados com papéis cómicos. Orfeu, desconfiando que a paixão de Aristeu por Eurídice é correspondida, fica possuído pelo ciúme e chega a planear o assassinato da sua própria esposa, mas Eurídice poupa-lhe esse trabalho ao pisar uma serpente (quando tentava furtar-se aos avanços de Aristeu). Orfeu acaba por ir ao Inferno resgatar Eurídice, mas não cumpre a condição imposta por Plutão e Eurídice volta a ser engolida pelas profundezas. Nem por isso a ópera deixa de ter final feliz, pois, morta Euridice, Aristeu acaba por perceber que Autonoe é um bom partido e a ópera encerra com as bodas entre ambos.

[“Orfeo, Tu Dormi” e “Chiuso, Ahimè di Cocito... Rendetemi Euridice”, por Emöke Baráth (Euridice, soprano) e Philippe Jaroussky (Orfeo, contratenor) e I Barocchisti, com direcção de Diego Fasolis, do álbum La Storia di Orfeo (Erato)]

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Orpheus, de Telemann

Data e local de estreia: 1726, Salle auf dem Kemp, Hamburgo
Compositor: Georg Philipp Telemann
Libretista: anónimo, a partir de Michel du Boullay

A voga da ópera cedo alastrara à Alemanha e dois dos seus mais distintos compositores seiscentistas tinham assinado as suas versões do mito de Orfeu: Heinrich Schütz, em 1638 (partitura perdida) e Johann Philipp Krieger, em 1683.

Entre as copiosas quantidades de música produzidas por Telemann estão 35 óperas, compostas sobretudo para Hamburgo, um dos principais centros operáticos do mundo germânico e onde era corrente que as óperas alternassem as línguas italiana e alemã.

O seu Orpheus tem a particularidade de adaptar um libreto francês, que fora musicado em 1690 por Louis Lully (filho do célebre Jean-Baptiste Lully), o que explica que a ópera some o francês ao italiano e ao alemão, numa salgalhada que hoje pode parecer desajeitada, mas que o público da época aceitava bem, tal como aceitava as arbitrárias e inverosímeis distorções e adições aos mitos clássicos. O Orpheus de Telemann faz intervir Orasia, rainha da Trácia, que está apaixonada por Orfeu e conspira para se ver livre da rival Eurídice – é graças às suas maquinações que a ninfa é mordida por uma serpente. De nada serve a Orasia esta tramóia, pois Orfeu rejeita-a e a rainha, despeitada, instiga as bacantes a despedaçar o cantor.

Orasia tem tão forte protagonismo no enredo que a versão revista de Orpheus que Telemann estreou em Hamburgo em 1736 foi baptizada como Amor Vingativo, ou Orasia, a Raínha Viúva da Trácia.

[“Sù, Mio Core, à la Vendetta”, por Dorothee Mields (Orasia, soprano) e L’Orfeo Barockorechester, com direcção de Michi Gaigg (Deutsche Harmonia Mundi); a ária, em italiano, é precedida de um recitativo, em alemão, por Ismene (Barbara Kraus, soprano) e Dorothee Mields (Orasia)]

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