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Mikhail Glinka
©Ilya RepinMikhail Glinka por Ilya Repin

Sete razões para se apaixonar pela ópera romântica russa

A apresentação de "Evgeny Onegin" em Lisboa serve para recordar outras obras-primas da ópera russa do século XIX

Escrito por
José Carlos Fernandes
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Há quem se tenha lançado na aprendizagem da língua alemã só para poder desfrutar plenamente das óperas de Wagner, mas é improvável que, na Europa Ocidental, alguém se embrenhe na língua russa por amor à ópera daquele país. A barreira da língua é a principal razão pela qual o rico património operático eslavo passa usualmente despercebido neste lado da Europa.

A ópera italiana implantou-se na Rússia no reinado da imperatriz Ana, através da contratação do compositor Francesco Araja (1709-c.1770), que compôs 14 óperas para a corte de São Petersburgo, entre as quais está Tsefal i Pokris (1755), a primeira ópera cantada em russo. A ópera "russa" foi sendo providenciada por compositores italianos, como Tommaso Traetta, Giovanni Paisiello, Giuseppe Sarti ou Domenico Cimarosa, ou espanhóis, como Vicente Martín y Soler. As primeiras óperas de compositores russos surgiram com Dmytro Bortniansky (1751-1825), mas as quatro óperas que este compôs na Rússia têm todas libreto em francês. No início do século XIX, as óperas compostas por russos e cantadas em russo começaram a tornar-se comuns e algumas lograram grande sucesso, como Askoldova Mogila (1833), de Aleksey Verstovsky, que teve um total de 600 récitas nos 25 primeiros anos. Mas seria preciso esperar por Mikhail Glinka para que a ópera russas desabrochasse verdadeiramente.

Evgeny Onegin em Lisboa

Fundação Gulbenkian. sex. 6 de Março 19.00 e dom 8 18.00. 18-38€.

Sete razões para se apaixonar pela ópera romântica russa

1. "Uma Vida pelo Czar", de Glinka

Ano e local de estreia: 1836, Teatro Bolshoi, São Petersburgo
Libreto: por Nestor Kukolnik, Egor Rozen, Vladimir Sollogub e Vasily Zhukovsky a partir de factos históricos

Mikhail Glinka (1804-1857) começou a sua vida profissional como funcionário público no Departamento de Estradas Públicas, mas o cargo era pouco exigente e deixava-lhe imenso tempo livre para se consagrar à composição e à apresentação das suas obras e à frequentação dos salões de São Petersburgo. Só começou a tomar a música mais a sério após uma estadia em Itália (a recomendação do seu médico), de onde regressou convencido de que a sua missão seria definir os moldes da ópera nacional russa. Glinka acabou por ser não só o pai da ópera russa como o primeiro compositor russo a obter reconhecimento fora do país e foi a principal referência do Grupo dos Cinco (Balakirev, Cui, Mussorgsky, Rimsky-Korsakov e Borodin), que viram nele um exemplo para a criação de música genuinamente russa.

O tema da primeira das suas duas óperas, Uma Vida pelo Czar (Zhizn’ za Tsarya), não poderia ser mais russo: narra a história de Ivan Susanin, um herói russo do século XVII que salvou o czar Mikhail, o primeiro da dinastia Romanov, de um exército de invasores polacos e que paga este feito com a sua vida.

[“Slav’sya”, coro final, pelo Coro & Orquestra do Teatro Bolshoi, com direcção de Peter Feranec (Melodiya)]

2. "Ruslan e Lyudmila", de Glinka

Ano e local de estreia: 1842, Teatro Bolshoi, São Petersburgo
Libreto: por Valerian Shirkov, Nestor Kukolnik e N.A. Markevich, a partir do poema homónimo de Aleksandr Pushkin

Enquanto Uma Vida pelo Czar era uma “ópera trágica patriótico-heróica” inspirada em factos reais, Ruslan e Lyudmila, embora também tenha raízes na história russa, tem uma aura de conto de fadas: uma das suas personagens principais é Lyudmila, a filha do príncipe Vladimir, o Grande, que foi crucial na consolidação do Rus’ de Kiev (o embrião da identidade nacional russa) e foi o primeiro governante do Rus’ a converter-se à fé cristã ortodoxa. Lyudmila é raptada por um mago maléfico e a ópera narra os esforços do cavaleiro Ruslan para libertar a princesa das suas garras.

[Excerto, pela Orquestra do Teatro Kirov, com direcção de Valery Gergiev, ao vivo no Teatro Kirov (hoje Teatro Mariinsky), São Petersburgo, 1995. A encenação de Lofti Mansouri inspira-se nos cenários e figurinos de uma produção histórica de Aleksandr Golovin (1863-1930)]

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3. "Boris Godunov", de Mussorgsky

Ano e local de estreia: 1874, Teatro Mariinsky, São Petersburgo
Libreto: pelo compositor, a partir da peça homónima de Aleksandr Pushkin

Modest Mussorgsky (1839-1881) chegou a trabalhar em 11 óperas, mas só terminou uma: Boris Godunov. A obra foi basicamente composta em 1868-69, mas foi rejeitada pela censura e teve de ser sujeita a revisão, concluída em 1872 – foi esta a versão estreada em 1874. Porém, após a morte de Mussorgsky, Nikolay Rimsky-Korsakov assumiu o encargo de pôr ordem no caótico espólio de partituras do colega e sentiu-se autorizado a rever e reorquestrar Boris Godunov. Meio século depois, Shostakovich, embora desaprovando parcialmente as intervenções de Rimsky-Korsakov, também se sentiu com legitimidade para corrigir os supostos erros de Mussorgsky e produzir a sua versão da partitura. E cada maestro entende saber melhor do que o compositor qual será a configuração adequada de Boris Godunov, de que resulta que a ópera raramente é executada nas versões de 1869 ou de 1872, mas numa forma híbrida.

O libreto aborda um período conturbado da história russa, após a morte de Ivan IV, o Terrível, em que Boris Godunov, que exerce funções de regente, dada a óbvia incapacidade mental do príncipe Fyodor, ordena o assassinato do irmão deste, o czarevich Dmitry, que era o segundo na linha sucessória e tinha apenas nove anos de idade. A morte de Fyodor, que ocorre poucos anos depois, permite que Boris assuma o poder e a sua governação decorre sem sobressaltos até que surgem rumores vindos da Polónia de que Dmitry estaria vivo e iria regressar para reaver o trono a que tinha direito...

[Cena da coroação de Boris, com Bryn Terfel (Boris Godunov) e Coro & Orquestra da Royal Opera House, com direcção de Marc Albrecht e encenação de Richard Jones, Royal Opera House, Londres, 2019]

4. "Evgeny Onegin", de Tchaikovsky

Ano e local de estreia: 1879, Teatro Maly, Moscovo
Libreto: pelo compositor, com pequenos contributos de Konstantin Shilovsky, a partir do romance em verso homónimo de Aleksandr Pushkin

Mansão da família Larin, perto de São Petersburgo. Lensky, que está noivo de Olga, a filha de Madame Larina, surge de visita e traz consigo um amigo, Evgeny Onegin. Tatyana, irmã de Olga, uma adolescente sonhadora cuja mundividência foi enformada pela leitura de romances cor-de-rosa, fica logo cativada pelo amigo de Lensky e passa a noite a escrever-lhe uma febril carta de amor, mas Onegin não só a ignora como começa a fazer a corte a Olga. Lensky não consegue engolir a afronta e, a meio no baile de aniversário de Tatyana, desafia o amigo para um duelo. Embora ambos estejam conscientes de quão insensato é que as coisas tenham chegado a este ponto, acabam por enfrentar-se e Lensky é morto por Onegin. Cinco anos depois, Tatyana e Onegin voltam a encontrar-se, mas Tatyana já não é uma rapariguinha ingénua...

O apreço pela música orquestral e de câmara de Piotr Ilyich Tchaikovsky (1840-93) faz por vezes esquecer que foi autor de nove óperas, que, com excepção de Eugene Onegin e A Dama de Espadas, raramente são representadas

[“Puskai Pogibnu Ya” (Cena da carta), por Anna Netrebko (Tatyana) e Orquestra da Metropolitan Opera, com direcção de Valery Gergiev e encenação de Deborah Wagner, ensaio geral, Metropolitan Opera, Nova Iorque, 2013]

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5. "A Donzela da Neve", de Rimsky-Korsakov

Ano e local de estreia: 1882, Teatro Mariinsky, São Petersburgo
Libreto: pelo compositor, a partir da peça homónima de Aleksandr Ostrovsky

A ópera de Rimsky-Korsakov retoma sem alterações significativas (para lá de alguns cortes) o texto da peça A Donzela da Neve (Snegurochka), que estreara em 1873 com música de cena providenciada por Tchaikovsky. O enredo tem atmosfera de conto de fadas e faz intervir personagens que personificam a Natureza, como a Geada, a Primavera ou o Espírito dos Bosques; a música combina citações de melodias populares russas com técnicas de composição herdadas de Wagner.

[“Akh, Bednaya Snegurochka, Dikarka”, por Aida Garifulina e Orquestra Sinfónica da ORF Wien, com direcção de Cornelius Meister (Decca)]

6. "Khovanshchina", de Mussorgsky

Ano e local de estreia: 1886, São Petersburgo
Libreto: pelo compositor, a partir de fontes históricas

Mussorgsky trabalhou nesta ópera em 1872-80, mas faleceu sem a terminar, pelo que foi completada, revista e orquestrada por Rimsky-Korsakov (e, mais tarde, por Shostakovich).

Tal como acontece com Boris Godunov, o libreto de Khovanshchina decorre num período conturbado da história russa, quando o príncipe Ivan Khovansky liderou os streltsy (tropas de infantaria russas) na Revolta de Moscovo de 1682, um episódio das sangrentas e caóticas disputas pelo trono russo entre as famílias Miloslavsky e Naryshkin após a morte, em Maio desse ano, do czar Feodor III, que não deixara descendentes.

[“Prelúdio: Amanhecer no Rio Moscovo”, pela Orquestra Sinfónica da URSS, com direcção de Evgeny Svetalonv]

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7. "A Rainha de Espadas", de Tchaikovsky

Ano e local de estreia: 1890, Teatro Mariinsky, São Petersburgo
Libreto: por Modest Tchaikovsky (irmão do compositor), a partir do conto homónimo de Aleksandr Pushkin (com várias modificações pelo próprio compositor)

Mais um drama histórico e mais uma adaptação de Pushkin, que foi o autor de eleição dos compositores russos de ópera do século XIX. A Rainha de Espadas (Pikovaya Dama) decorre durante o reinado de Catarina a Grande (1762-96) e o enredo envolve oficiais do exército, jogos de cartas e jogos de sedução e um segredo ciosamente guardado que (supostamente) permitiria vencer todos os jogos de cartas.

[Ária “Em Breve Será Meia-Noite”, por Galina Gorchakova (Liza) e Orquestra da Metropolitan Opera, com direcção de Valery Gergiev e encenação de Elijah Moshinsky, Metropolitan Opera, Nova Iorque, 1999]

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