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Slowdive
Slowdive

Uma história do shoegaze em dez canções

Melodias vocais etéreas submersas em distorção, atmosfera onírica com laivos de psicadelismo. O shoegaze produziu suculentos frutos

Escrito por
José Carlos Fernandes
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Época e local: viragem dos anos 80-90, Reino Unido

Origem do nome: a expressão “shoegaze” foi cunhada pela imprensa musical britânica e não era, no início, muito abonatória: referia-se à pose alheada, cabisbaixa e estática dos músicos durante os concertos a ponto de parecerem absortos na contemplação dos seus sapatos. Alguns shoegazers justificaram-se com a rejeição dos estereótipos circenses que dominavam a postura em palco das bandas de rock. Outros apresentaram uma explicação de ordem prática: o seu som denso e psicadélico era conseguido através de uma formidável panóplia de pedais de efeitos (flangers, delays, overdrives, fuzzes, Big Muffs, pitch shifters, phase shifters, reverbs), que requeriam atenção constante. Seja como for, a designação perdeu conotações pejorativas e acabou por impor-se. “Noise pop” e “dream pop” são por vezes usados como sinónimos.

Código de vestuário: informal, jeans, t-shirts, em cores mortiças com dominância de cinzento, negro e azul. Admitem-se T-shirts e sweatshirts com riscas horizontais (que podem ser coloridas se a banda tiver influências psicadélicas).

Cabelo: predominância de franjas longas, de forma a cortar completamente o contacto visual com o público quando se está absorto na contemplação dos sapatos.

Uma história do shoegaze em dz canções

“You Trip Me Up”, The Jesus and Mary Chain

Os escoceses Jesus and Mary Chain nem sempre são formalmente incluídos no shoegaze, mas foram os seus precursores mais directos. O álbum de estreia dos manos Jim e William Reid, Psychocandy (1985, Blanco y Negro), com a sua combinação de melodias vocais típicas da pop mais luminosa e naïve dos 60s, envoltas num halo de reverberação, e guitarras adstringentes e saturadas de distorção, definiu os parâmetros do género. O grupo cultivava um visual que parecia decalcado dos Velvet Underground e pode ver-se nas faixas mais experimentais e ruidosas da banda de Lou Reed e John Cale (como “European Son” e “Sister Ray”) a inspiração principal para a sua sonoridade. Também as baterias, simples e lineares, fazem lembrar as de Maureen Tucker nos VU.
“You Trip Me Up”, um dos singles de Psychocandy, tem um dos sons de guitarra mais abrasivos até então ouvido em disco, algures entre a broca de dentista e a rebarbadora. O videoclip da canção foi gravado no Algarve e as suas prosaicas e ensolaradas paisagens não casam de todo com a música tecida em arame farpado.

“Strawberry Wine”, My Bloody Valentine

Os irlandeses My Bloody Valentine formaram-se ao mesmo tempo que os Jesus and Mary Chain, mas passaram por algumas mudanças de formação e levaram algum tempo a ganhar notoriedade. Os discos lançados em 1987 na Lazy Records – o EP Strawberry Wine e o mini-álbum Ecstasy – passaram despercebidos e só quando se mudaram para a Creation e lançaram o primeiro álbum Isn’t Anything (1988) é que foram catapultados para a fama. Os registos na Lazy (reeditados na compilação Ecstasy and Wine, em 1989) têm, todavia, uma frescura e inocência que não voltaria a repetir-se e as guitarras tremeluzentes e tintinabulantes de “Strawberry Wine” fazem pensar numa reinterpretação de The Byrds por um bando de pixies.

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“Vapour Trail”, Ride

Os Ride, de Oxford, tinham melodias orelhudas de molde beatlesco, repartidas entre os dois guitarristas/vocalistas, Andy Bell e Mark Gardener, uma impressionante muralha de distorção, saturada de influências psicadélicas, e um baterista particularmente criativo e hiperactivo (Laurence Colbert). Tinham ainda a seu favor os good looks de Gardener, que podia ter sido o pin up boy do shoegaze, mas após dois notáveis álbuns – Nowhere (1990) e Going Blank Again (1992) – a criatividade da banda esgotou-se rapidamente e os azedumes e birras entre Bell e Gardener escalaram com igual rapidez, levando à dissolução da banda após o lançamento do quarto álbum (não se teria perdido muito se tivesse sido antes). “Vapour Trail”, de Nowhere, é um voo através da alta atmosfera e conta com uma secção de cordas que vai emergindo progressivamente à medida que os reactores das guitarras se vão desligando.

“Sweetness and light”, Lush

A escassa presença de raparigas nas bandas de pop-rock teve notável excepção no shoegaze. Os (as?) Lush tinham Miki Berenyi e Emma Anderson na linha da frente, a ocupar-se de vozes e guitarras, enquanto os rapazes (Phil King e Chris Acland) se ocupavam do baixo e bateria. Foi dos primeiros grupos a que foi colado o rótulo “shoegaze”, logo com o primeiro mini-álbum, Scar (1989), e os EP Mad Love e Sweetness and Light (ambos de 1990). Estes três discos viriam a ser reeditados pela 4AD na compilação Gala (1990). Os Lush representam o lado mais macio, planante e encantatório do shoegaze – as guitarras estão, claro, saturadas de efeitos, mas estes raramente são abrasivos.

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“Thread of Light”, Pale Saints

Os Pale Saints formaram-se em Leeds em 1987 e foram sofrendo algumas mudanças de registo enquanto iam amadurecendo e sofrendo alterações de formação. A entrada de Meriel Barham (que fora vocalista dos Lush, num estádio incipiente desta banda) para desempenhar funções de guitarrista e cantora (papel em que acabaria por suplantar Ian Masters, o vocalista original da banda) trouxe apreciáveis progressos ao som da banda. “Thread of Light” provém do segundo álbum, In Ribbons (1992, 4AD), cuja sonoridade tem afinidades com os Lush.

“Catch the Breeze”, Slowdive

Os Slowdive, de Reading, eram vizinhos dos Ride e seus parceiros na Creation, que se converteu rapidamente na editora-almirante do shoegaze. O nome da banda de Rachel Goswell e Neil Halstead (que repartiam tarefas nas guitarras e nas vozes) foi pedido emprestado a uma canção de Siouxsie and the Banshees, mas a sonoridade, ambiental e onírica, é mais devedora de Cocteau Twins. As guitarras recorrem a doses maciças de distorção, mas os seus contornos são macios e aveludados, e a música soa como se estivesse envolta em véus de neblina. Os Slowdive dissolveram-se em 1995 e voltaram a juntar-se em 2014, tendo regressado aos discos com um álbum homónimo em 2017.

“Catch the Breeze” provém do álbum de estreia, Just for a Day (1991), e faz justiça ao título, planando docemente na brisa.

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“Horror Head”, Curve

Os londrinos Curve, um duo formado por Toni Halliday (voz e guitarra muito ocasional) e Dean Garcia (tudo o resto, que é muito), combinavam a densidade sónica do shoegaze, electrónica dançável, atmosferas claustrofóbicas e a voz sensual e calorosa de Halliday, que se destacava das vozes incorpóreas e imersas num mar de reverberação, típicas dos shoegazers. Após três EP (mais tarde compilados em Pubic Fruit), o álbum de estreia Doppelgänger (1992, Anxious), guindou-se ao 11.º lugar do top de álbuns do Reino Unido.
“Horror Head”, de Doppelgänger, soa como uma remix dançável de Cocteau Twins para festas em bunkers num mundo pós-holocausto nuclear.

“Lazy Day”, The Boo Radleys

Os Boo Radleys nasceram em Wallasey, Merseyside, e pediram o nome emprestado a uma personagem de Não matem a cotovia, de Harper Lee. Após um álbum de estreia – Ichabod and I (1990) – numa editora obscura, que passou despercebido, ganharam notoriedade com Everything’s Alright Forever (1992) na inevitável Creation. Os Boo Radleys nunca seguiram religiosamente a cartilha shoegaze e a partir do terceiro álbum, Giant Steps (1993), descartá-la-iam de vez, abraçando convictamente o Britpop (e tornando-se banais). “Lazy Day”, de Everything’s Alright Forever, é uma das suas (boas) canções shoegaze.

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“Falling Down”, Chapterhouse

Formaram-se em Reading, como os Slowdive, mas nunca atingiram a projecção destes. Deixaram apenas dois álbuns, Whirlpool (1991, Dedicated), que inclui “Falling Down”, e Blood Music (1993), que evidencia influências de música de dança e electrónica e uma aproximação ao som Madchester. A verdade é que, em 1993, o fenómeno shoegaze estava já moribundo, devido à explosão avassaladora do grunge e à emergência do Britpop, levando muitos shoegazers a saltar para este barco.

“The Future of Love”, Kinoko Teikoku

Se o shoegaze esteve pouco tempo na ribalta no Reino Unido, o género foi encontrando continuadores no Extremo Oriente e em particular no Japão. Os Kinoko Teikoku, cujos membros ainda não tinham nascido quando o shoegaze tomou conta da primeira página da imprensa musical britânica, formaram-se em 2007, em Tóquio. Começaram num registo shoegaze, inflectiram na direcção de uma pop mais ortodoxa e em Ai No Yukue (2016), o quarto álbum, regressaram às origens, com refinamento e subtileza onde antes dominava a urgência juvenil. A peculiar combinação de paisagens oníricas e abrasão sónica de “The Future of Love” é sobrevoada pela voz de Chiaki Sato, sempre tão magoada e triste que mesmo quem não perceba uma palavra de japonês adivinha que o amor que ela canta não pode ter futuro.

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