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Provedora dos Animais
Fotografia: Manuel Manso

Entrevista à nova Provedora dos Animais de Lisboa: “Todos os animais são de estimação”

Renata Lima Lobo
Escrito por
Renata Lima Lobo
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Passou três meses a escolher um carro para ter a certeza que não tinha peles. A caminho de se tornar vegan, deixou finalmente de comer peixe quando se tornou provedora. Jurista, aos 38 anos tornou-se a terceira Provedora dos Animais de Lisboa, mas a primeira a exercer o cargo a tempo inteiro e remunerado. Fique a conhecer Marisa Quaresma dos Reis, com quem falámos na Casa dos Animais de Lisboa.

É a terceira Provedora dos Animais, um cargo que tem sido sempre exercido no feminino. Mas desta vez é um cargo a tempo inteiro e remunerado. Como vê este investimento da Câmara Municipal de Lisboa?
Só posso ver de forma muito positiva, porque significa que a Câmara tomou consciência da importância da temática do bem-estar e direitos dos animais. E consegue ler a sensibilidade dos seus munícipes. Podemos ver pelos projectos que ganham no Orçamento Participativo, muitos deles estão ligados à questão animal. Os pombais contraceptivos são exemplo disso, agora ganhou a ambulância animal e parece-me que a Câmara está a ler bem e a dar resposta a isso.

Falou dos pombais contraceptivos e parece que os pombos estão sempre na ordem do dia em Lisboa. Há agora uma controvérsia com os falcões que estão a ser usados para os afugentar. Podia ajudar-nos a interpretar melhor esta medida?
Eu não fui informada da contratação de serviços falcoeiros. Quando comecei como interina tinha solicitado uma reunião para debatermos medidas alternativas e complementares às actualmente praticadas: a captura e abate de pombos pelo gaseamento e, numa fase embrionária, a política de implementação de pombais contraceptivos. Já me tinha apercebido que a sensibilidade da Câmara relativamente aos pombais é de que não serão suficientes para resolver as inúmeras reclamações que recebem sobre a presença de pombos em determinados locais da cidade e pensámos que seria importante equacionar medidas complementares que permitissem acabar com esta política de captura e abate de pombos na cidade de Lisboa. Essa reunião nunca sucedeu. Em vésperas da apresentação do meu mandato fui chamada a atenção por uma munícipe para esta medida que tinha saído na comunicação social e pedi esclarecimentos à Câmara. Reuni com o Departamento de Higiene Urbana e pude consultar todo o processo. Posso dizer que a medida é temporária, em teste de três meses e é cara, são 18600€ mais IVA. De qualquer das formas, a licença do ICNF refere que os falcões apenas podem afugentar pombos.

Não se tornará uma zona de caça?
Nada disso. É mesmo referido que não será permitido matar ou ferir as aves. De qualquer das formas, é uma questão controversa. Se isto fosse uma substituição da política actual, embora não fosse a medida que eu gostasse de ver na cidade, entendo que seria menos gravosa do que simplesmente atirarmos redes aos pombos e gaseá-los indiscriminadamente. No entanto, seria sempre uma medida complementar, a política de abate manter-se-ia e parece-me que não é uma solução viável e é preciso discutir medidas com resultados a longo prazo. Porque isto pode criar um outro problema: afugentar os pombos de determinadas zonas, empurrá-los para outras onde ainda não eram um problema e as reclamações simplesmente começam a mudar de áreas.

Também é provedora dos pombos?
Sou provedora de todos os animais. Temos tendência para sentir maior proximidade com os animais que dizemos que são de estimação. Mas como diria o professor Luís Vicente [biólogo fundador da Sociedade Portuguesa de Etologia e da Associação Portuguesa de Primatologia], de estimação devem ser todos. Não há animais de estimação e outros. Todos são de estimação, sejam eles selvagens ou domésticos.

Tem algum em casa?
Tenho uma cadela que foi resgatada do canil na altura de abate e tenho duas gatas que foram recolhidas da rua, bebés com um mês. Ainda lhes dei biberon. E vivem todas em harmonia, respeitando o espaço uma das outras.

É doutoranda em Direito e tem algumas publicações científicas sobre Direito Animal. Debruçavam-se essencialmente sobre que temas?
A minha primeira publicação foi num ebook publicado pelo Instituto de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e versava sobre a importância da evolução da ciência na tomada de consciência dos direitos dos animais [Animais e direitos fundamentais]. Depois houve uma actualização desse artigo publicado pela Almedina. Está no prelo um artigo sobre a causa vegetariana relacionada com os direitos dos animais. Será também publicado pelas Edições 70 da Almedina.

É vegetariana?
Estou no caminho do veganismo. Mas a seu tempo. Eu tenho um ciclo social muito diversificado. O meu marido não é vegetariano, os meus pais não são vegetarianos. Portanto, eu tento ser o mais flexível que posso por questões sociais. De qualquer das formas, não como carne vermelha há 21 anos, não como carne nenhuma há seis anos e o peixe deixei recentemente por uma questão de coerência, porque sou provedora de todos os animais e foi o momento certo para dar o passo seguinte. Não consumo lácteos, não uso peles… aliás, tive três meses a escolher um carro para me garantirem que não havia nada de pele no carro, foi a loucura.

O seu activismo pela causa animal foi mais académico ou já esteve associada a alguma organização?
Eu faço voluntariado e trabalho nos bastidores desde sempre. Nunca estive formalmente ligada a nenhuma associação nem a nenhum partido político. E isso também levou certamente a que o meu nome fosse uma escolha viável.

Porque é um cargo independente, certo?
É um cargo independente. Não posso estar ligada a nenhuma associação ou partido. E em toda a minha vida, também por questões de personalidade, gostei de pensar pela minha própria cabeça. A disciplina partidária faz-me muita confusão, gosto de agir de acordo com o que a minha consciência me dita. Mas sempre tive ligada à causa animal. Sempre fiz donativos anónimos, o meu retorno do IRS sempre foi distribuído pelos animais, recolho animais da rua e encaminho para adopção e já fui FAT [Família de Acolhimento Temporário]. 

Quais são os assuntos que mais preocupam os munícipes que a contactam?
Maus tratos. De cães acorrentados recebemos muitas denúncias e infelizmente não há legislação específica sobre isso, tem de se ver caso a caso. São situações de difícil resolução, as pessoas sentem uma grande inércia das entidades competentes, mas na verdade não temos legalmente meios para ir mais longe. Esperemos que isso mude a breve prazo com um Regulamento do Bem Estar Animal que consiga prevenir estas situações.

O que nos leva à próxima pergunta: uma das medidas que foi anunciada na tomada de posse foi precisamente esse regulamento. Quais são as linhas gerais?
Já existem outros regulamentos, Sintra é um exemplo disso. Visa regulamentar todas as situações que existem em Lisboa que envolvam animais. Não é só a protecção do animal, mas também questões de higiene e consciencializar as pessoas de que ter um animal é uma responsabilidade. E que por gostarmos de animais e termos um animal não podemos impingir aos outros o nosso gosto. A Constituição permite a liberdade de pensamento e as pessoas têm direito a não gostar de animais. Uma das coisas que nunca vou defender são discursos extremistas, nem de uma parte, nem da outra. Fico com muita urticária quando ouço alguém dizer "os maluquinhos dos animais", porque revela um grande desconhecimento e uma grande falta de respeito para com aqueles que se preocupam com quem não tem voz. Os animais só os têm a eles, aos "maluquinhos dos animais". E também fico com muita urticária quando ouço alguém dizer que um forcado morreu e é menos um e ainda bem. Eu não fico contente quando morre um forcado, fico triste porque também é vítima de um espectáculo que é obsoleto e que já não devia existir. É um espectáculo onde existe violência contra o touro, contra o cavalo e contra as pessoas. E até contra as crianças que assistem à tourada. Defensores dos animais chamarem assassinos àqueles que não são tão sensíveis a animais perdem uma oportunidade de formar e educar a sociedade. A ideia é sensibilizar. Eu compreendo a grande revolta, eu também sinto. Mas têm de perceber que a história de vida daquelas pessoas é diferente da delas. Um filho de um toureiro, com três irmãos forcados, vai ter muita dificuldade em olhar para o pai e irmãos, que são para ele os heróis, como assassinos. Todas as pessoas têm grandes momentos de elevação moral, até um toureiro, até um forcado. Só têm de ser consciencializadas e sensibilizadas, não as podemos perder. E com discursos extremistas, de um lado e de outro, nós vamos perder uma oportunidade de avançarmos em conjunto.

A questão das touradas no Campo Pequeno divide a cidade ou há um lado da balança que pesa mais?
Eu moro em Alcochete e o meu marido é de Coruche. Eu tenho um conhecimento dos meios onde a tauromaquia é natural, faz parte da identidade daquelas pessoas. Nas zonas urbanas como Lisboa já não é tanto assim, as pessoas não sentem isso como sendo parte integrante da sua cultura e tradição. É muito mais fácil em Lisboa dar o passo em frente do que em localidades como Coruche ou Alcochete. Nós veríamos com muito bons olhos a mudança da legislação, no sentido de dar aos municípios a possibilidade de decidir se querem ou não ter actividades tauromáquicas.

Poderia haver um referendo?
É sempre possível haver um referendo municipal, mas de qualquer das formas é preciso primeiro que a legislação mude para as Câmaras Municipais essa competência. Na questão do Campo Pequeno é o IGAC [Inspecção Geral Das Actividades Culturais] que tem a competência para autorizar, é um espaço privado, estamos muito limitados relativamente à proibição de espectáculos tauromáquicos ali.

A seu tempo, talvez?
Vai acontecer. As pessoas ligadas ao mundo da tauromaquia têm consciência de que é uma actividade em declínio e tem os seus dias contados. Esta questão é aceite por anti-taurinos e pró-taurinos, digamos assim.

Os advogados dão voz, ou pelo menos uma voz qualificada a quem não tem. Neste caso, os seus clientes não têm voz nenhuma. É um desafio maior para alguém da sua área?
É um desafio grande e implica que eu tenha de me munir das opiniões de biólogos, de veterinários, de especialistas em comportamento animal, porque a minha sensibilidade é completamente diferente. Eu posso dizer que sou capaz de pôr um barrete de Carnaval na minha cadela e nas minhas gatas. E isso é do mais errado que pode haver. Todos nós, por não sabermos amar uma espécie diferente, pegamos num gato ou num cão como se fosse um bebé humano, somos primatas. É a nossa forma de dar afecto, mas um cão, por exemplo, odeia abraços. Nós amamos, mas não sabemos amar. Faz parte da nossa condição e às vezes é importante aceitar a nossa imperfeição. 

Foi anunciada uma série de medidas por Fernando Medina, como a expansão desta Casa dos Animais.
É verdade. Tinha-me sido dito informalmente que o concurso público seria aberto o ano passado. Não foi, sei que ainda vai passar por mim para um parecer final. Vou ter de me munir de pessoas especializadas em comportamento animal. É um trabalho complexo, por isso não gosto da ideia de provedora, gosto da ideia de provedoria, porque transparece este espírito de equipa e envolvimento social, necessário à boa tomada de decisão.

E também está a caminho uma ajuda à União Zoófila.
Esta ajuda já vem tarde, mas é muito bem entendida pela Provedoria dos Animais de Lisboa. À partida vão ter instalações modernas, mais próximas das da Casa dos Animais, que devia ser um exemplo para os outros municípios. Ainda há muita desconfiança relativamente à Casa dos Animais pelo próprio passado, mas as pessoas deviam vir cá para se tranquilizarem. E se conhecerem outros Centros de Recolha Oficial [CRO] do país, vão perceber que os animais em Lisboa estão numa situação muito privilegiada. São bem tratados, pude aferir isso. Temos uma estreita ligação, eu vou seguindo alguns casos, como o aquele dos 29 cães [encontrados num apartamento de Lisboa] recolhidos pela Casa dos Animais. Mais de metade já foram adoptados. Esta não é uma casa da morte, é uma casa da vida. Há passos a dar certamente, temos de melhorar a taxa de esterilizações, de promover uma melhor política de adopção, dar mais visibilidade aos animais, mas estão numa situação incomparavelmente melhor a 99% dos outros locais de recolha oficial.

A questão da esterilização é uma das medidas mais urgentes de controlo da população?
A esterilização não tem nada de romântico. É uma ingerência nos animais, estamos a retirar-lhes uma função biológica que é deles de direito. Mas é um mal necessário. Esterilizei as minhas gatas e a minha cadela com um grande peso na consciência. Há inúmeros benefícios, até para a longevidade do animal, é um seguro de saúde que se faz, porque evita doenças oncológicas relacionadas com o aparelho reprodutor, mas é uma ingerência. Temos de perceber que só é possível fazer isto, porque as alternativas são muito más. É ter animais a nascer na rua, a passar fome, a ser maltratados, a ter nenhum tipo de cuidado. Para já, é a solução possível. Como nos pombos. A esterilização também é criticada por alguns animalistas e é preciso ter um bocadinho de bom senso. E percebermos que não há melhor opção. Vivemos num mundo humanizado, a nossa espécie é assim. É o nosso instinto de preservar o nosso bem estar e o nosso comodismo, mas obviamente que é possível encontrar medidas menos gravosas, mais éticas, ainda que sejam transitórias, para que no futuro seja tudo mais risonho. Para nós e para eles.

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