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Daniela Guerreiro
Fotografia: Arlei LimaLídia Franco junto ao mural desenhado por Daniela Guerreiro

Lídia Franco, um retrato: “Não há nada mais sério do que o humor”

Em São Domingos de Benfica, ergueu-se um mural em homenagem a Lídia Franco, moradora da freguesia e uma das mais talentosas actrizes portuguesas. Aproveitámos a ocasião para falar com a artista sobre o ontem, o hoje e o amanhã.

Renata Lima Lobo
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Renata Lima Lobo
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Foi uma surpresa. Não para os moradores da freguesia, mas para Lídia Franco, que, na semana que antecedeu a inauguração do mural com o traço da artista Daniela Guerreiro, foi aconselhada por familiares a não passar na Estrada de Benfica, junto ao muro do Centro Educativo Navarro de Paiva, onde se desenhava a homenagem. Inaugurado no passado dia 15 de Julho, assinala os 50 anos de Lídia Franco como freguesa deste bairro, para onde se mudou em 1973. E no que durante estes anos deu à comunidade, tendo liderado acções de formação de actores na Junta de São Domingos de Benfica (que encomendou o mural) e trazido o teatro para mais perto da vizinhança.

“A obra de Lídia Franco é incontornável a nível nacional e é para nós um orgulho poder contar com a sua presença em São Domingos de Benfica, mas esta homenagem torna-se ainda mais pertinente por todo o seu contributo e efectiva ligação à nossa freguesia há já 50 anos”, disse, em comunicado, o presidente da Junta de Freguesia de São Domingos de Benfica, José da Câmara. Lídia Franco é especial para a freguesia e também para o país. Teatro, televisão e cinema têm sido, ao longo de muitas décadas, o seu espaço de trabalho – e assim continua, activamente, aos 79 anos. Marcámos encontro junto ao mural para depois nos sentarmos a conversar numa das esplanadas mais próximas.

“É mais que emocionante. Fiquei um pouco esmagada com esta gentileza enorme da Junta de Freguesia de São Domingos de Benfica, de fazer ali aquele mural, que ainda por cima ficou extraordinário, devido à pintora, que é a Daniela Guerreiro. Ainda por cima estou ao lado do mural do Mário Zambujal. Sinto-me muito pequenina para isso, mas é claro que fico muito contente”, começa por elogiar a actriz, que não só leccionou vários workshops na freguesia como foi a madrinha da Marcha de São Domingos de Benfica em 1991. Actualmente, além de aulas particulares a colegas de profissão, continua com uma colaboração com a ACT – Escola de Actores, em Carnide, onde em Setembro arranca mais uma edição do workshop “Descobre a tua Verdade”. Destina-se a actores, mas também ao público em geral. “Os actores têm que estar sempre a treinar, e portanto sempre que possível eu própria faço workshops como aluna. Mas acho que quando há uma mistura num workshop, não só de actores como de pessoas de outras profissões e de idades diversas, ainda melhor é, pela troca humana, que no fundo é a substância que o actor utiliza no seu trabalho”, defende a actriz. Lídia Franco é ainda embaixadora do curso do teatro do Instituto para o Desenvolvimento Social.

Daniela Guerreiro
Fotografia: Arlei Lima

O seu talento é imenso. Do humor ao drama, construiu uma carreira tanto em palco como no audiovisual, dentro e fora de fronteiras. A mais recente aventura lá fora surgiu à boleia do Passaporte, o programa que traz directores de casting internacionais a Portugal e que a levou ao elenco do filme 6 Underground (2019), de Michael Bay. “Quando se vai uma vez ao Passaporte, tem-se sempre ‘passaporte’ para ir todos os anos”, explica. Nesta última edição, Lídia também marcou presença, tendo a oportunidade de ser entrevistada por mais três directoras de casting internacionais, embora confesse que actualmente se sente mais “caseira”. “Logo se vê”, disse com o sorriso e serenidade que tão bem conhecemos. Mas há "muitos anos mesmo", algures na década de 80 do século passado, aventurou-se sozinha. Na mala levou uma vantagem: é bilingue, é também falante nativa de francês. “Eu informei-me aqui junto de alguns dos nossos realizadores e tal, deram-me assim algumas moradas de produtores, de agentes, em Madrid, em Barcelona e em Paris. Eu não tinha muito dinheiro, pelo contrário. Tinha feito alguns trabalhos, sobretudo na televisão, que estavam gravados em cassetes, pus as cassetes numa mochila, meti-me no comboio e lá fui”. Já tinha feito teatro, mas consigo levava também a insegurança de não estar a conseguir trabalhos em palco, pensando que a culpa era sua. Bateu a muitas portas em Espanha e em França e teve “a melhor das recepções”. “Em Paris disseram-me: “Você tem imensas possibilidades aqui, porque fisicamente actrizes como você aqui em França são já vedetas que auferem altíssimos cachés. E, portanto, você teria muitas hipóteses de começar. Só há uma condição: tem que viver cá e estar sempre ao lado do telefone’”, recorda. Acabou por tomar a difícil opção de voltar para Portugal para acompanhar o filho. Regressou, no entanto, com uma certeza: “A culpa não era minha de não ter trabalho cá.” No entanto, acabou por participar em filmes internacionais e construiu uma carreira bastante preenchida em Portugal.

Na televisão, tem participado em telenovelas da SIC como Lua de Mel ou Amor Amor e no cinema pudemos vê-la, recentemente, no filme Índia, de Telmo Churro, vencedor do Prémio Universidades na última edição do IndieLisboa. E no próximo ano Lídia regressa ao grande ecrã com o filme Noites Claras, de Paulo Filipe Monteiro. “Mas quer dizer, não sou protagonista. Já é bom haver personagens mais velhos, porque senão pareceria que na vida, que é no fundo aquilo que nós queremos transmitir ao público, só havia jovens. Como na nossa televisão, onde os pais, os avós, os filhos, os netos, são todos da mesma idade. Eu gostava de parecer um bocadinho mais nova, mas no fundo eu tenho praticamente 80 anos, sem plásticas.” Revela ainda que colaborou num documentário que está por estrear, A Mulher que Morreu de Pé, realizado por Rosa Coutinho de Cabral, uma homenagem para o centenário da poeta Natália Correia (1923-1993). Mas é no palco que acredita estar “a arte do actor”, uma vez que o cinema, diz, “é arte do realizador, porque tudo depende dele e da edição”. “O teatro é a arte do actor e onde ele também se vai descobrindo mais ele próprio. Tem sempre que voltar aí, de voltar às tábuas para praticar a sua arte.”

Lídia Franco já participou em mais de 40 peças de teatro e continua a subir ao palco. Em Outubro, arrancam os ensaios da peça Requiem para Isabel, de Raquel Serejo, vencedora do Prémio Miguel Rovisco. “Todos os anos a peça que ganha é representada e produzida no Teatro Trindade. O encenador é o Tiago Torres da Silva e os actores sou eu, a Rita Ribeiro e o Baltasar Marçal, e vai estar em cena de 16 de Novembro a 31 de Dezembro. Mas há mais. “Continuo a ser chamada para fazer aquela peça maravilhosa do Henrique Emanuel Schmidt, que eu própria traduzi com a Ivone Moura: Oscar e a Senhora Cor-de-Rosa, que eu fiz há anos no Teatro Nacional e com o qual percorri todo o país e ilhas. Representei Portugal no Brasil com essa peça, e até na Assembleia da República eu fiz essa peça. É uma peça extraordinária, a começar pelo texto. Eu costumo dizer: quando um texto é tão genial como aquele, basta não fazer mal para já ser bom. Mas é muito violenta para um actor, fisicamente e psicologicamente. De modo que ainda me pedem para fazer essa peça, mas agora em leitura encenada. E já aceitei fazê-la no princípio do próximo ano, no Porto”, revela.

Lídia Franco
Fotografia: Arlei Lima

A actriz também já trabalhou como encenadora, uma experiência que gostaria de voltar a repetir. “Porque adoro igualmente dirigir actores, tal como dar aulas. Até hoje só tive a ocasião de o fazer duas vezes. Uma vez foi no Porto, numa comédia extraordinária, Vasquinho para Sempre, uma homenagem ao Vasco Santana, em que utilizei sobretudo textos de O Pai Tirano. Mas fui também tirar alguns bocadinhos de textos de outros filmes dele e algumas pequenas frases minhas também de ligação. E a outra vez em que encenei foi uma comédia, um original brasileiro chamado Como Salvar um Casamento.”

A comédia corre-lhe nas veias e Lídia Franco considera que é muito mais difícil de fazer do que o drama. “Não há nada mais sério que o humor, como dizia o mestre Almada Negreiros. E realmente é muito mais difícil encontrar uma boa comédia e fazer comédia bem feita. O texto não são palavras, é exactamente o que está por trás dessas palavras. E para isso, tal como no drama, é preciso fazê-lo sério. Mas é mais difícil encontrar um bom texto de comédia”, lamenta. E recorda o trabalho que fez durante muitos anos com o Herman José, em programas como O Tal Canal (1983-1984), Hermanias (1984-1985), Humor de Perdição (1988), Casino Royal (1990) ou Crime Na Pensão Estrelinha (1990), entre outros. “Felizmente, foi quase uma vida a trabalhar com o Herman José”, diz a actriz, para quem O Tal Canal foi “o 25 de Abril do humor em Portugal”. “Não havia propriamente esse tipo de humor que faz mais cócegas no cérebro. Havia pessoas que não percebiam bem de que é que tratava aquilo, porque o humor tem muita crítica social.”

Enquanto mantém os olhos no futuro, sublinha a importância de olharmos para o nosso passado. “Neste país, achamos sempre que não valemos nada, que só o que vem de fora é que tem valor. Isso também tem a ver com a educação, com a cultura e tem a ver com não conhecermos as nossas raízes e o que está para trás de nós. O mundo não começou no dia em que a pessoa nasceu. Neste país tem havido pessoas absolutamente extraordinárias, tanto homens como mulheres, mas sobretudo as mulheres são completamente desconhecidas. E uma delas, não é por ser a minha avó, mas a Alice Ogando, que, enfim, não vou agora contar a história da vida dela, porque isso dava uma série de televisão, uma das muitas coisas que fez foi a direcção do teatro na antiga Emissora Nacional”. Onde Lídia chegou a trabalhar ainda “miudinha” para fazer vozes de personagens mais jovens. “Adorava, sempre adorei, cantar, dançar e representar para os outros, que era a minha forma de, no fundo, dar amor e receber amor também. Desde miúda ia para as escadas traseiras do prédio, a horas certas, cantar para os vizinhos. E depois comecei por ser bailarina”, recorda.

Enquanto vai trabalhando com os projectos que tem em marcha, confessa que gostava de fazer mais teatro e “um bom filme com um bom realizador e uma personagem boa”. “E o que é uma personagem boa? Uma personagem complexa, não é? E da minha idade. Como diz o Óscar, no Óscar e a Senhora Cor-de-Rosa, em que ele tem uma epifania em que descobre o segredo da vida: 'Olhar cada dia o mundo como se fosse a primeira vez.' Esta é uma das muitas frases desse texto, que ainda é grande, que eu jamais esquecerei.”

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