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Raquel Balsa
Raquel BalsaLuz da peça "Orgia"

No teatro, “a luz pode salvar um espectáculo”

Mestres das sombras, os desenhadores de luz recortam figuras, destacam formas, acentuam texturas e, garantem os encenadores, dão “magia” aos espectáculos. Em Outubro, o Prémio Revelação Ageas Teatro Nacional D. Maria II foi atribuído a esta “área invisível”.

Joana Moreira
Escrito por
Joana Moreira
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Está escuro e o palco coberto de argila fresca e cinzas. A luz incide sobre os corpos dos actores que se misturam com a matéria, enlameados. O violento contraste entre a claridade e a sombra vinca as feições e agrava o ambiente soturno. Muito se andou para aqui chegar. Meses antes, um desenhador de luz e um encenador criaram este momento. 

“O desenho de luz é fundamental para que se crie uma dramaturgia do espectáculo. A luz trabalha não só a forma, mas também o tempo”, diz Nuno M. Cardoso, encenador. E frisa: “Temos uma mão cheia de extraordinários desenhadores de luz em Portugal.” Rui Monteiro, 33 anos, faz parte da nova vaga de desenhadores de luz portugueses. Quando se senta com a Time Out no TBA – Teatro do Bairro Alto, onde está a preparar um espectáculo pela primeira vez, admite que ainda “é bastante difícil” explicar a profissão. “As pessoas associam o desenho de luz à parte técnica. Tento elucidar que o desenho de luz é parte da concepção. O desenhador de luz faz parte da equipa criativa, como o cenógrafo, como o encenador”, observa. “A luz passa por várias fases de concepção, [desde] as discussões do espectáculo, à parte mais técnica de trabalho de casa, os desenhos vectoriais, como os planos de arquitectura, e depois uma fase posterior, que é a montagem.”

“O nosso trabalho é bastante invisível, muito poucas pessoas o notam”, sabe Cárin Geada, 30, mais uma a dar cartas no meio. “A iluminação era uma área até para mim desconhecida, ia vendo nos concertos o aparato que se fazia, mas só mesmo tendo o contacto com a área é que se percebe o encanto do que é o desenho de luz”, nota a jovem de Lamego, por telefone, semanas antes de voar para Amesterdão com uma peça do coreógrafo Marco da Silva Ferreira. A magia está em “começar a desconstruir e a esmiuçar que sensação é que queremos dar em cada cena ao espectador e como é que a luz cria essas sensações”. Em Outubro, Geada foi distinguida com o Prémio Revelação Ageas Teatro Nacional D. Maria II.

Cárin Geada
Francisco Romão PereiraCárin Geada

Não chega criatividade. Exige-se também jogo de cintura para contornar as especificidades de cada projecto. Em Monólogo de uma mulher chamada Maria com a sua patroa, criado e encenado por Sara Barros Leitão, Geada recorda as “boas soluções” encontradas para o espectáculo que correu o país. “Ao construir um desenho de luz tens de pensar nisso, na portabilidade da técnica, para depois não fazeres o espectáculo num sítio e nunca mais o poderes fazer porque inventaste um efeito que não dá para reproduzir em mais lado nenhum.” Já em Última hora, com base no texto de Rui Cardoso Martins e encenado por Gonçalo Amorim, as adaptações foram constantes. “No D. Maria II tivemos as condições todas, mas depois foi para salas mais pequenas e tivemos de reduzir brutalmente o desenho de luz. Aquilo que fizeste com 300 projectores agora fazes com 20, sem castrar o teu desenho – isso é um desafio.”

Limitações de orçamento não é fenómeno exclusivo deste departamento do teatro – ou da Cultura –, que trabalha essencialmente com o material das salas que acolhem os espectáculos. “Sem sombra de dúvidas que são os teatros [a principal dificuldade]”, diz Rui Monteiro. “Muitos deles [são] difíceis e estão mal equipados. Não no centro de Lisboa ou no Porto, mas há muitos teatros que são enormes, em sítios pequenos, mas depois é só o invólucro que existe concretamente, os meios técnicos deixam de ter manutenção, ou deixam de adquirir equipamentos”, lamenta. 

Nas fichas técnicas das peças de teatro das novas temporadas, os nomes repetem-se. “Acho que há pouca gente na área”, admite Cárin. “Não sei se é atractivo, não sei se por causa dos valores, não sei se por seres freelancer. Muitas pessoas não gostam disso, da instabilidade financeira, e esta área não te dá isso [estabilidade], nem nunca te há-de dar”, solta. “O número de desenhadores de luz é reduzido porque muitas pessoas não conseguem ter uma continuidade de trabalho que lhes permita viver só disso”, garante Pedro Domingos, 52, que passou pelo Teatro da Malaposta e, desde 1994, assina a luz de espectáculos dos Artistas Unidos. Domingos criou em 2008 a sua própria companhia, Teatro da Terra. É uma excepção. “Normalmente as companhias têm alguém encarregue de fazer os desenhos de luz. É muito raro um desenhador de luz fazer parte da estrutura da companhia.” 

Luz, Holofote
Mariana Valle Lima

Domingos foi aluno de Orlando Worm, nome maior no desenho de luz em Portugal, que trabalhou nos principais espaços das artes de palco portugueses e que foi um dos fundadores da Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo. “Foi das pessoas que iniciou em Portugal a característica mais artística da luz em espectáculos de teatro, dança ou ópera. Até ao Orlando Worm a iluminação em teatro em Portugal era muito básica, era uma coisa mais considerada [como] uma função técnica”, atesta Domingos.

“O desenhador de luz assegura a qualidade artística e técnica da iluminação de um espetáculo ou evento”, lê-se na página da licenciatura em Teatro na Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo, no Porto. Mas ainda há quem questione se o desenho de luz é um trabalho artístico. “Mesmo dentro da área às vezes há um equívoco [sobre se] o desenhador de luz é criador ou não”, diz Rui Monteiro. “Há pessoas que querem um projector ali, outro aqui, querem uma ferramenta técnica, alguém para a executar e não uma pessoa criativa, um criador. Acontece cada vez menos, mas ainda vai existindo”, admite. Salvo raras excepções, “a execução não é uma coisa que me dê vontade de fazer”. 

Rui Monteiro
Francisco Romão PereiraRui Monteiro

Para organismos como a Autoridade Tributária (AT), o reconhecimento do desenho de luz enquanto trabalho artístico é recente. “Houve um movimento de alguns desenhadores de luz que queriam que fosse considerado um processo autoral”, conta Rui. Em termos práticos, a diferença da nomenclatura permite aplicar “o artigo 9.º, que tem a ver com a isenção do IVA como qualquer outra arte na área do espectáculo”, explica o desenhador, cujo caso está a ser partilhado como exemplo num grupo informal com outros profissionais. “Criei uma [empresa] unipessoal, fiz um pedido vinculativo às Finanças para que o desenho de luz fosse considerado um processo autoral, pedi um parecer à Sociedade Portuguesa de Autores, à IGAC, e peguei em dois ou três contratos públicos, com o Teatro Nacional de São Carlos, com o Teatro Nacional D. Maria II e com o Teatro Nacional de São João.” No documento a que a Time Out teve acesso, a AT conclui que “a cedência dos direitos de autor respeitantes aos ‘desenhos de luz’, efectuada às entidades que realizam ou produzem os espectáculos, beneficia de enquadramento na alínea 16) do artigo 9.º do CIVA”.

Para os encenadores, não há dúvidas sobre a importância artística do desenho de luz. “A luz é a magia do teatro”, diz Filipe La Féria. “A luz e a sombra, o dia e a noite, é o labirinto e o mistério, é o mais encantatório no espectáculo, a luz.” Pedro Penim, director artístico do D. Maria II e encenador, vai mais longe: “Os espectáculos às vezes são muito feios. Sem um cenário no palco e sem iluminação, os actores sentem-se desprotegidos. O momento em que chega a luz pode salvar um espectáculo. A luz tem esse poder encantatório.”

Este artigo foi originalmente publicado na revista Time Out Lisboa, edição 659 — Outono 2022.

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