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Primeiro, as apresentações. Mark Millar é um escocês de 51 anos e um ávido consumidor de comics desde os quatro. Com Alan Moore (Watchmen, V de Vingança), Frank Miller (Sin City, 300) e o seu mentor Grant Morrison (Doom Patrol, Os Invisíveis) como referências, começou a escrever as suas próprias BD ainda adolescente. Trabalhou para as maiores editoras norte-americanas, incluindo a DC, onde, ao fim de uma década de trabalho, ensaiou e publicou uma história alternativa para o Super-Homem, cuja nave teria aterrado na União Soviética e não no Kansas (Superman: Red Son, 2003); e para a Marvel, onde reinventou os X-Men (Ultimate X-Men, 2001-2003) e Os Vingadores (Os Supremos, 2002-2007) e desenvolveu as narrativas que estão na base de dois filmes: Capitão América: Guerra Civil (2016) e Logan (2017). Em 2004, criou a marca Millarworld; em 2010 cortou amarras com os gigantes americanos dos comics; e em 2017 vendeu tudo à Netflix por 28,5 milhões de euros, mantendo-se à frente dos destinos criativos da empresa. A Netflix, por sua vez, tem grandes expectativas para o “mundo” de Millar. O director de conteúdos do serviço de streaming, Ted Sarandos, considera-o “o mais próximo que há de um Stan Lee nos nossos tempos”. Quase quatro anos depois de assinado o contrato de aquisição, eis que chega o primeiro projecto desta joint-venture: O Legado de Júpiter.
O Millarworld inclui uma vintena de títulos, alguns dos quais já adaptados com sucesso ao grande ecrã: Wanted (Procurado, 2008), Kick-Ass (O Novo Super-Herói, 2010) e Kingsman (2014 e 2017). Estas duas últimas obras estão nas mãos de outras produtoras. Portanto, por onde começar? Com um catálogo menos rico do que a concorrência nas sempre apelativas personagens de capa e máscara, a Netflix optou por uma história de super-heróis para fazer companhia a Umbrella Academy (série baseada nos comics de Gerard Way, cujo mentor na BD foi... Grant Morrison). Há mais cinco filmes e duas séries a caminho, mas agora é hora de O Legado de Júpiter. A estreia é esta sexta-feira, 7 de Maio. São oito episódios de cerca de uma hora cada, com Steven S. DeKnight (Batalha do Pacífico: A Revolta) como showrunner e o próprio Mark Millar à perna de toda a gente. “Não sabia que era um controlador deste calibre, mas é o meu nome que está no topo dos créditos. Quero que a série seja boa”, disse recentemente ao Guardian. Frank Quitely, o artista que desenhou os comics originais, publicados em dois volumes entre 2013 e 2017 (editados em Portugal pela G Floy), também está envolvido como produtor executivo.
Vamos então à história. Uma fantasia de super-heróis tornada drama familiar pelas complexas idiossincrasias do presente. Os velhos elementos da União de Justiça estavam habituados a tempos mais simples: quem defendesse o seu país era declarado herói. Hoje, não é bem assim. Sheldon Sampson (Josh Duhamel), a sua mulher, Grace Sampson (Leslie Bibb), e o seu irmão, Walter Sampson (Ben Daniels), conquistaram os seus super-poderes nos anos 1930, durante a Grande Depressão, graças a uma misteriosa fonte de energia numa ilha perdida. Tornaram-se, respectivamente, The Utopian, Lady Liberty e Brainwave. É sobretudo nesta família que se vai concentrar a acção, mas não são os únicos super-heróis originais: Fitz Small, ou The Flare (Mike Wade), George Hutchence, ou Skyfox (Matt Lanter), e o Dr. Richard Conrad, ou Blue Bolt (David Julian Hirsh), completam o sexteto fundador da União, que jurou estar ao serviço da Humanidade, abdicar de qualquer exercício de poder político e nunca matar. Estes princípios estão inscritos numa espécie de constituição, “O Código: Heróis”, que guia o idealismo extemporâneo de Sheldon. A mulher, mais realista, contemporiza; o irmão tem outras aspirações, não partilha do voluntarismo salvífico.
Quem também não alinha pelo diapasão de Sheldon são os seus próprios filhos, Brandon, ou Paragon (Andrew Horton), e Chloe (Elena Kampouris), que têm sobre os ombros a pesada responsabilidade de vir a ocupar o lugar dos pais enquanto protectores da civilização – e as ameaças não cessam nem ficam mais fáceis de resolver. Mimados, problemáticos e talhados num ambiente familiar que tanto era de exigência máxima como de ausência constante dos pais, os jovens super-heróis protagonizam um clash geracional (que se diria um boomers vs. millennials). Estão pouco disponíveis para a abnegação e dão por si envolvidos em escândalos que alimentam tablóides e desiludem Sheldon e Grace. Há ainda um terceiro elemento da nova geração, Hutch (Ian Quinlan), filho de George Hutchence mas que não herdou os poderes do pai e leva a vida como vigarista (a determinada altura, Hutchence entra em conflito com os irmãos Sampson e transforma-se ele próprio num vilão). Com eles, O Legado de Júpiter procura respostas a esta inquietação: se normalmente já damos cabo das cabeças aos nossos filhos, como seria se tivéssemos expectativas sobre-humanas para eles? O tema das famílias dos super-heróis parece, aliás, estar em voga. Vejam-se os casos de The Boys e Invincible, na Amazon Prime Video, ou de Superman & Lois, no TVCine. Não se pense, no entanto, que as quezílias familiares são desculpa para poupar nos efeitos visuais. O Legado de Júpiter continua a ser uma série de super-heróis, e promete encher o olho.
Netflix. Sex (Estreia).