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Ingmar Bergman
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Ingmar Bergman aos 100 anos

Cem anos depois do nascimento, Ingmar Bergman não corre o risco de ser esquecido. Os seus filmes dão-se bem com o tempo

Escrito por
Rui Monteiro
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Há, sem dúvida, muito mais pessoas que conhecem a reputação de Ingmar Bergman do que aquelas que conhecem os seus filmes. Mas, no fundo, todos, mesmo os que não os viram, conhecem o cinema do realizador sueco, pois a sua influência espalhou-se como um vírus e reflecte-se na obra de muitos cineastas contemporâneos, por vezes mesmo involuntariamente. Pode dizer-se que ninguém lhe escapou, ou escapará, porque a sua obra é espantosa, viva, experimental, imersiva, a espaços chocantemente moderna na maneira com aborda visualmente os sentimentos e deles nos faz cúmplices. Dez exemplos, ou uma pequena amostra de uma filmografia.

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Ingmar Bergman aos 100 anos

'Mónica e o Desejo' (1953)

Começar pelo princípio é a melhor introdução, até porque em Mónica e o Desejo fica-se logo a saber ao que vem o cineasta sueco.

Com esta história em que Harry (Lars Ekborg) conhece a irrequieta Mónica (Harriet Andersson), caem apaixonados, são contrariados e fogem para passar o Verão numa ilha isolada, até que ela fica grávida, decidem casar, ele torna-se pai e marido muito responsável, mas ela continua apenas a querer boa vida e divertimento. Com esta história – dizia – o realizador estabeleceu a base visual e psicológica de praticamente todo o seu cinema. Melhor, em jeito de bónus, abalou o puritanismo ao exibir tão descaradamente um amor fora das normas. E não seria a primeira, menos ainda a última vez.

'Sorrisos de Uma Noite de Verão' (1955)

É curioso como o filme que deu a Bergman um nome pronunciado internacionalmente com curiosidade e respeito, depois da sua apresentação no Festival de Cinema de Cannes, seja um daqueles em que os tormentos, digamos, metafísicos, que acompanharão o cineasta nas décadas seguintes, estão quase de todo ausentes.

Esta comédia, vagamente inspirada em Sonho de Uma Noite de Verão, de William Shakespeare, é, de facto, uma excepção na sua vasta obra. Mas nem por isso deixou de inspirar, directa e assumidamente, obras tão diferentes como A Little Night Music, o musical de Stephen Sondheim, ou o filme de Woody Allen Uma Comédia Sexual numa Noite de Verão. Voltando ao assunto, nesta película (com Gunnar

Bjornstrand, Ulla Jacobsson, Bjorn Bjelfvenstam, Harriet Andersson e Eva Dahlbeck) o realizador alia-se à farsa, porém descartando de imediato qualquer intenção de ligeireza cómica com um argumento que deixa ver as entrelinhas pouco morais de um enredo carregado de sexo e sensualidade, ocasionalmente perturbados pela dor da infidelidade.

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'Morangos Silvestres' (1957)

De volta ao seu ambiente natural, aqui, Bergman, como fará muito mais vezes, usa a viagem como um pretexto para percorrer a alma e as suas contradições.

A via é a de explorar pelo expressionismo o confronto interior e a descoberta de um velho professor (Victor Sjöström), a caminho de receber um prémio, de como o vazio dominou a sua existência, que o realizador aproveita, andando para trás e para a frente com o tempo, para traçar um cruel retrato de uma burguesia tão ciente da sua importância como afastada da realidade.

'O Sétimo Selo' (1957)

Na sua segunda longa-metragem concluída em 1957, curiosamente, e apesar de ainda em desenvolvimento, é já possível encontrar uma espécie de síntese do pensamento artístico de Ingmar Bergman.

O Sétimo Selo, passados todos estes anos, com a sua singela demanda de um cavaleiro (Max von Sydow) por respostas sobre a vida e a morte e a existência de deus, que encontra o seu zénite na partida de xadrez com a Morte (Bengt Ekerot), é o lugar onde se alinham grande parte das preocupações estéticas e espirituais que dominam toda a obra de Bergman nas suas múltiplas variações. A chave, por assim dizer, de uma obra tão atraente como, muitas vezes, fechada no universo criado pelo cineasta, e também a razão da atracção de tantos realizadores por esta universo onde, como no mundo, coexistem beleza e crueldade.

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'Luz de Inverno' (1962)

A ansiedade, a angústia e a perspectiva de uma crise espiritual encontram-se nesta película com a amargura e a crueldade numa variedade de exercício sobre a moral.

No centro da acção está o pastor interpretado por Gunnar Bjornstrand, melhor, estão as suas, para ele, assustadoras dúvidas na infalibilidade de Deus, comprimidas no entrecho em três horas de uma fria e desagradável tarde de Novembro em que o religioso, depois de despachar aos paroquianos o sermão de domingo, começa a sentir-se, por assim dizer, soterrado por não encontrar respostas para as preocupações e necessidades de alguns membros da congregação. Coisas chãs, como a do homem interpretado por Max von Sydow, atemorizado pelo medo da nuclearização da China, ou a mulher (Ingrid Thulin) que lhe confessa o seu afecto de maneira particularmente expressiva, perante a impotência do clérigo, ele próprio vítima dos seus pensamentos e, principalmente, das suas dúvidas.

'A Máscara' (1966)

Embora nisto das obras-primas de Ingmar Bergman cada cinéfilo tenha a sua, por esta altura, neste filme com Liv Ullmann e Bibi Andersson, o cinema do realizador sueco atingiu um ponto dos mais desafiantes da sua cinematografia.

O supra-sumo do seu cinema surge aqui na forma do emocionalmente poderoso e até um pouco doentio, embora comovente, relacionamento de uma doente, actriz que apesar da óptima saúde se recusa a falar, com a sua diligente enfermeira, e aparentemente perita em empatia, a qual, ainda assim, passa tormentos para estabelecer alguma forma de comunicação, no processo criando uma relação que muito ultrapassa os condicionamentos da vivência entre uma cuidadora e a sua paciente.

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'A Vergonha' (1968)

Há quem veja na ideia que dá o pontapé de saída de muitas das suas mais estimulantes longas-metragens uma tentativa de experiência sociológica. Ideia que em A Vergonha ganha indiscutível dimensão, tamanha é a manipulação a que são sujeitas as personagens.

Nesta película, ao contrário do costume, em que o mal-estar familiar é dispensado em doses homeopáticas até ao desastre final, o cineasta não hesita em atirar o casal (Liv Ulmann e Max von Sydow), que tantas vezes é o centro dos seus filmes, para uma guerra sem quartel. Desta batalha entre uma mulher caracterizada pela sua força, sentido prático e impaciência, e um marido perdido em choraminguices emocionais, resulta um espantosamente provocador manifesto sobre a moral em situação de conflito, concluído por uma devastadora análise sobre o desmoronar de um casamento.

'Lágrimas e Suspiros' (1972)

Eis uma obra que deve ser encarada sob a perspectiva de a compreensão da narrativa ser muito sobrevalorizada e que a relação emocional é, ela sim, determinante para o entendimento do entrecho.

Nesta longa-metragem, vencedora de um Óscar para Melhor Fotografia, entregue ao muito influente nesta cinema Sven Nykvist, e, embora debalde, senhora de um ror de nomeações, pode mais uma vez observar-se o microcosmo familiar no seu pior. Pois é basicamente de tortura psicológica que falam as interpretações de Harriet Andersson e Liv Ullmann, no papel de duas irmãs cuidando de uma moribunda (Kari Sylwana) enquanto os seus sonhos, ou mesmo os seus mais simples desejos, se desvanecem no ambiente doentio de uma casa habitada por um rancor surdo.

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'A Sonata de Outono' (1978)

As relações familiares são, mais ou menos, o pão-nosso de cada dia da cinematografia bergmaniana.

Neste filme, o pretexto é a visita de uma mãe, Charlotte (Ingrid Bergman) pianista mundialmente conhecida, à sua filha, Eva (mais uma vez Liv Ullmann), cuja educação sempre negligenciou, por isso há muito afastada. Aos poucos, como de costume, a tensão entre as duas vai crescendo, em silêncios, meias-palavras e olhares, até que numa certa conversa o verniz estala e a modos que se assiste a um ajuste de contas particularmente catártico.

'Fanny e Alexander' (1982)

Esta película em que uma família tenta proteger suas crianças de um bizarro padrasto, pelo seu poder de síntese, quase testamentário da metodologia cinematográfica de Ingmar Bergman, é provavelmente a forma mais pedagógica de abordar esta filmografia por um cinéfilo ainda não iniciado na bergmanice pura e dura. Feito para televisão, com Pernilla Allwin e Bertil Guve, a história é um cacharolete de relações sentimentais onde a esposa convive com a amante do marido, ou o tio dorme com a criada, rapariga adorada por todos, incluindo a mulher encornada. E tudo correria muito bem, não fora o pai dos miúdos morrer e a decisão da mãe de casar com um religioso que vai pôr a casa de pantanas.

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