Quando era miúdo, François Ozon teve um jantar de família feito por uma tia, em que um dos pratos servidos eram cogumelos, que tinham sido colhidos por aquela. Todos os participantes na refeição ficaram doentes por causa dos cogumelos nessa mesma noite, menos a tia, que foi a única que não os comeu. O pequeno Ozon, que já nessa altura tinha uma imaginação fértil e gostava de inventar histórias, pôs-se a pensar que a sua bondosa e atenciosa velha tia afinal era uma assassina, sabia que os cogumelos que tinha apanhado no campo eram perigosos, e tinha feito de propósito para se ver livre de toda a família.
Muitos anos depois, François Ozon usou esta memória de família como ponto de partida do seu novo filme, Quando Chega o Outono, passado na província francesa. Michelle (Hélène Vincent) é uma idosa reformada que trocou Paris por uma vilazinha na Borgonha, onde é vizinha da sua melhor amiga, Marie-Claude (Josiane Balasko). Michele adora o seu único neto, Lucas (Garlan Eros), mas não se dá bem com a sua filha divorciada, Valérie (Ludivine Sagnier). Aparentemente, porque esteve à morte após ter comido um prato de cogumelos colhidos e cozinhados pela mãe, que não lhes tocou.
Valérie chega de Paris para deixar Lucas com a avó durante uma semana, mas as coisas acabam por não correr como Michelle previa, para seu grande desgosto. Entretanto, Vincent (Pierre Lottin), o único filho de Marie-Claude, sai da cadeia e diz à mãe que nunca mais vai consumir droga, que vai arranjar um emprego e deixar-se dos pequenos delitos com que sustentava o seu vício. Pouco a pouco François Ozon vai-nos revelando pormenores sobre o passado das personagens de Quando Chega o Outono, vamos percebendo a motivação por trás dos seus comportamentos, e que nada aqui é tão linear como parecia. E dizer mais sobre o enredo do filme e os seus desenvolvimentos é falar demais.
Esta nova realização de François Ozon remete-nos, por um lado, para os filmes de Claude Chabrol passados na França profunda, e pelo outro, para os livros de Georges Simenon, e não somente para os do Inspector Maigret. Só que a fita não tem nem o cinismo frio e a distância dos de Chabrol, nem a componente policial das obras de Simenon (embora haja uma sugestão que não encontra continuidade). Ozon opta por conservar os cenários campestres e, à primeira vista, pacatos, do primeiro; e as atmosferas narrativas, emocionais e morais em claro-escuro, com cambiantes fugidios e bifurcações inesperadas, do segundo.
Quando Chega o Outono é todo ele feito em sugestão e insinuação, em não-dito e de elipses, sempre a pedir ao espectador que preencha os espaços em branco deixados pelo realizador. E de tal forma que, como notou um crítico francês, é como se houvesse não um mas dois filmes: aquele que Ozon rodou, e outro que se passa dentro da nossa cabeça, em que especulamos sobre tudo o que não está explícito naquele. O Outono na sua manifestação mais bucólica e melancólica é o pano de fundo contra o qual o realizador desfia a sua história de um Outono da vida muito pouco tranquilo, o de Michelle (a octogenária Hélène Vincent é notável no papel, veja-se como passa da ternura à inquietação, de um matiz emocional luminoso a um sombrio, num piscar de olhos) e põe em cena os conflitos em surdina, molda a tensão psicológica, e instala a inquietação e a dúvida.
Os fãs de policiais decerto teriam preferido que François Ozon tivesse explorado até às últimas consequências os elementos próprios do thriller que a história contém, e que são contrariados pelo rumo que o realizador lhe dá. Já os apreciadores do cinema do versatilíssimo autor de filmes tão diferentes como 8 Mulheres, Swimming Pool, Dentro de Casa e Frantz perceberão o que ele quis fazer aqui. Quando Chega o Outono parece um policial, mas não o chega a ser. E não precisa.