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Domínio públicoJosé Afonso - Monumento em Grândola

Sons de Liberdade. JP Simões, Gisela João e B Fachada em discurso directo

Fizemos as mesmas perguntas aos três convidados do programa do Teatro Tivoli BBVA para o 25 de Abril. As respostas foram muito diferentes.

Luís Filipe Rodrigues
Escrito por
Luís Filipe Rodrigues
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O Estado Novo foi derrubado a 25 de Abril de 74. Para assinalar os 50 anos desse “dia inicial inteiro e limpo”, o Teatro Tivoli BBVA convidou um cantor que era uma criança quando se deu a revolução (JP Simões) e mais dois que ainda nem eram nascidos (Gisela João e B Fachada) para revisitarem canções de protesto e outras de autores que marcaram à época, entre quarta, 24, e sexta-feira, 26. A programação especial chama-se Sons da Liberdade.

A Time Out desafiou os três a responderem às mesmas perguntas sobre este repertório, os seus significados e o seu peso. E a umas poucas questões mais específicas sobre estes concertos.

Recomendado: Cantar Abril: uma dúzia de canções revolucionárias e de protesto

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Cinquenta anos depois do fim da ditadura, as pessoas continuam a rever-se nas canções de protesto da época. Porquê?
Não creio que toda a gente, as pessoas como dizes, se reveja nas canções de protesto que nasceram circa 1974. Aliás, como estas últimas eleições o demonstraram, outras estéticas e protestos são também de vasto alcance e estão na ordem do dia. Acontece, creio, que em Abril elas renascem com as comemorações da revolução, porque foram, por um lado e de certo modo, a banda sonora que testemunhou a passagem entre dois modos de vida muito diversos, a ditadura e a democracia; e por outro, por representarem um pedaço muito significativo da melhor música popular que se produziu em Portugal na década de 1970, e que, para muitos, continua a ser bela e apelativa, ultrapassando por isso a circunstância em que foi gerada.

O que achas apelativo nelas?
As letras e a música; a produção e os arranjos; os cantores, poetas e músicos que as criaram.  

Porque é que voltamos sempre a essas canções, mas nunca recordamos a música de protesto de décadas posteriores?
Não creio que tenha havido nos últimos 50 anos uma mudança social e política tão significativa para a história do nosso país, gerada por concidadãos nossos e apoiada por uma tão unânime e considerável fatia da população, como o 25 de Abril de 1974. Música de protesto sempre houve e haverá: e a cada um, a música que melhor acompanhe as suas revoluções pessoais.

A entronização das canções de protesto da década 70, e a nostalgia por elas, acaba por ser entrave à actualização deste repertório?
A nostalgia remete para algo que se encontre despojado já de vida ou de sentido, e que se queira, por força de convicção, forçar a ressuscitar, de modo a com isso reviver emocionalmente uma época que se crê ter sido mais amável ou significativa. No que toca ao repertório aqui focado, imagino que se pode comparar à nostalgia que se possa experimentar, por exemplo, pela Declaração Universal dos Direitos Humanos: foi elaborada há mais tempo, em 1948, mas para muitas pessoas o seu sentido continua a ser muito importante e mais do que meramente actual. Daí a legitimidade de alguma entronização, como dizes. No que toca a canções, creio que essa época gerou em Portugal material artístico que ainda hoje influencia os modos de produzir, até porque, dando apenas Zeca Afonso como exemplo, ela foi também exploratória e revolucionária esteticamente: e isso não constitui certamente um entrave à actualização mas, muito pelo contrário, uma motivação para o impulso criativo e inovador de quem veio a seguir.

Nas décadas de 60 e 70, os músicos acreditavam que estas canções podiam forçar uma mudança de regime. Algum músico acredita nisso hoje?
Quem se dedica à música, experimenta a vertigem e o entusiasmo de acreditar que o mundo todo acabou de mudar no momento em que uma canção nasce e lhe devolve toda a esperança de beleza e liberdade que depositou na sua construção. Aconteceu que, nas décadas em questão, as canções tenham tido um papel significativo enquanto porta-estandarte de palavras de ordem para os muitos movimentos sociais importantes que aconteceram no ocidente, nomeadamente o Maio de 68 em França ou os movimentos pacifistas nos Estados Unidos da América, em redor da Guerra do Vietname e dos conflitos raciais endémicos. Hoje, para dar só um exemplo, muitos festivais de música que abarcam a diversidade etnográfica do planeta, e as novas formas de produção electrónica, trazem, para lá do lado saudavelmente lúdico da liberdade de fruir música, sugestões de novos modos de encarar a comunidade humana como um todo funcional, inventado ferramentas práticas de sustentabilidade e uso racional dos meios de subsistência e promovendo formas de solidariedade e partilha de experiências e conhecimento. Por outro lado, não creio que os músicos da época acreditassem de forma tão simplória que esta ou aquela canção abririam rombos em paredes de edifícios negros: muitos acreditavam, isso sim, como hoje acreditam, que a música polariza e dissemina ideias sempre revolucionárias como o amor e o respeito mútuo, a liberdade de ser e fazer, e o caminho para o fim do peçonhento fosso que persiste entre quem tem tudo e quem não tem nada.

Essa descrença é um reflexo da derrota e da desesperança das pessoas de esquerda?
Se por esquerda se entende um determinado número de indivíduos que acreditam ser possível existir harmonia entre a mais abrangente e pacífica liberdade individual e uma redistribuição mais dignificante dos ganhos produzidos com o trabalho e os recursos da sua comunidade, não creio que tenha passado um único dia desde há 50 anos em que esses valores não tenham estado na ordem do dia. Lutar contra o egoísmo intrínseco à condição humana está sempre votado à derrota e à desesperança: é por isso que é a única luta cujo interesse e fascínio nunca cessam. 

Pode o crescimento da reacção e de um partido como o Chega revigorar a canção de protesto contemporânea e engajar mais os artistas?
Pode.

O disco JP Simões canta José Mário Branco tem apenas oito canções. O que te levou a escolher estas e não outras?
A escolha destes temas partiu de um critério muito simples: foram os que me soaram melhor de todas as versões que fizemos de José Mário Branco. Ficaram oito, número que simboliza o infinito.

Houve algumas canções com que te identificas mais, ou que achas melhores do que estas, mas que preferiste não interpretar? Porquê?
Não. Há muitas e muitas canções de José Mário Branco pelas quais tenho muito apreço e com as quais me identifico, mas um disco como este também é feito de uma série de processos que concorrem para o seu resultado final. Há cerca de cinco anos que tenho vindo a fazer concertos à volta da sua obra e já interpretei cerca de vinte temas do compositor, assim como também já editei uma versão de “Inquietação” num disco em 2006: a escolha aqui foi feita pela positiva, ou seja, não preteri nenhum tema que já tivesse interpretado, antes preferi os que achei mais bem conseguidos, mais próximos do original e, ao mesmo tempo, que me soassem mais naturais cantados pela minha voz e sustentados por arranjos que fossem uma boa tradução dos originais.

No Teatro Tivoli BBVA vais apenas cantar as canções do disco, ou vais juntar-lhes outras? Quais?
No Tivoli vou conseguir ter finalmente em palco todos os instrumentos que foram utilizados para produzir este disco. Ou seja, vamos interpretar o disco o mais próximo possível da sua expressão e juntar-lhe mais alguns temas de José Mário Branco, um de Zeca Afonso e um de Fausto: estes, com todo o respeito, prefiro manter em segredo para haja alguma surpresa dedicada a quem nos honrar com a sua presença no teatro. 

Depois do Tivoli, vais dar alguns concertos no norte com repertório de outros cantores de protesto. O que podemos esperar deles?
Vão ser três concertos com a Orquestra de Jazz de Espinho, que muito amavelmente me convidou – a mim e à Marta Ren – para cantar nos seus concertos de comemoração dos 50 anos do 25 de Abril. Não creio que todas as músicas do concerto encaixem no epíteto de canções de protesto, mas o certo é que, para cada uma delas, houve um compositor convidado para produzir os arranjos para a orquestra e, portanto, haverá muita diversidade e liberdade nas abordagens musicais. Os concertos serão no Auditório de Espinho, a 26 e 30, e no dia 28 no Coliseu do Porto.

Teatro Tivoli BBVA. 24 Abr (Qua). 21.00. 15€-25€

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Cinquenta anos depois do fim da ditadura, as pessoas continuam a rever-se nas canções de protesto da época. Porquê?
As canções de protesto da época da ditadura ainda fazem tanto sucesso porque são como crónicas da nossa história. Elas contam as lutas, as dores e as vitórias de um povo que se recusou a ficar calado. É uma energia que, felizmente, continua a mover muita gente.

O que achas apelativo nelas?
O que acho mesmo fixe nessas canções é a autenticidade. São como uma bofetada de verdade na cara, sem rodeios nem floreados. É música que vem do coração, directa para a alma.

Porque é que voltamos sempre a essas canções, mas nunca recordamos a música de protesto de décadas posteriores?
Acho que o segredo é que essas canções da ditadura estão entranhadas na nossa identidade, fazem parte do nosso ADN. Mas não sei se é justo dizermos que não recordamos música de protesto de décadas posteriores. Alguns artistas, como a Capicua, com quem colaborei na “Casa da Mariquinhas” e na “Hostel da Mariquinhas”, criaram um cancioneiro muito importante também.

A entronização das canções de protesto da década 70, e a nostalgia por elas, acaba por ser entrave à actualização deste repertório?
Acho que não é entrave. A nostalgia até pode ser uma coisa boa, viva. Em vez de ser vista dessa forma estática de algo que nos prende ao passado, é algo que nos traça um caminho de memória muito vivo. É importante trazer esse espírito de protesto para os dias de hoje, com novas músicas que reflitam as nossas batalhas actuais.

Nas décadas de 60 e 70, os músicos acreditavam que estas canções podiam forçar uma mudança de regime. Algum músico acredita nisso hoje?
O mundo não se muda num movimento só… Acredito no poder da música para unir, emocionar e mover as pessoas, e dar voz a causas importantes.

Essa descrença é um reflexo da derrota e da desesperança das pessoas de esquerda?
Não acho que seja derrota e desesperança, mas sim uma mudança de perspectiva. As lutas agora são diferentes, e a música também acompanha isso.

Pode o crescimento da reacção e de um partido como o Chega revigorar a canção de protesto contemporânea e engajar mais os artistas?
Com certeza! O crescimento da reacção mostra que ainda há muito para lutar, e a música pode ser uma arma poderosa nessa batalha.

Por que vais passar o resto do ano a tocar este espectáculo que celebra o 25 de Abril?
Porque o 25 de Abril é uma data que não podemos esquecer. É uma homenagem à liberdade, à coragem dos que lutaram e uma forma de manter viva a chama da revolução.

O crescimento da direita radical, nas ruas e no Parlamento, pesou nessa decisão?
A decisão de fazer este espectáculo estava tomada antes destes eventos mais recentes. Claro que o crescimento da direita radical traz uma maior urgência e maior responsabilidade ao que quero aqui fazer.

Quais são os autores que integram o repertório destes concertos?
Tantos! Zeca Afonso, Sérgio Godinho, Fausto... são os mestres da resistência, as vozes que nos inspiram a nunca baixar os braços.

Vais estar acompanhada pelo guitarrista Carles Rodenas Martinez. O que te levou a convidar um espanhol para cantar canções tão portuguesas?
Convidei o Carles e o Luís Pereira para me acompanhar porque os acho artistas de uma sensibilidade incrível, capazes de fazer reviver estas músicas com a força e a beleza que merecem. A ideia de convidar o Carles surgiu em Valência, num período que passei a estudar lá. Mostrei-lhe algumas destas músicas numa conversa em que estávamos a falar do nosso cancioneiro, e ele adorou-as. O Carles é um artista incrível. A música não tem fronteiras, e ter um espanhol a tocar estas músicas portuguesas só mostra como a arte pode unir o mundo.

Teatro Tivoli BBVA. 25 Abr (Qui). 21.00. 15€-25€

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Cinquenta anos depois do fim da ditadura, as pessoas continuam a rever-se nas canções de protesto da época. Porquê?
Não sei se rever-se nas canções é a maneira mais certa de se pôr a questão, mas acho que as canções de protesto da época do fim da ditadura representam uma memória muito forte de um momento de sincronia colectiva, e de euforia colectiva também, depois da revolução. E a música, pela sua própria natureza, presta-se a ser fixadora desse sentimento de comunidade, de grupo, de base comum, de crença comum e de sincronia, muito forte. Provoca essa sensação de uma maneira muito intensa, e depois essa memória vai ecoando com o passar dos anos. E a verdade é que o fim da ditadura é um momento muito marcante para várias gerações. Sei que, na minha experiência familiar, é um momento muito marcante para os meu avós e para os meus pais. E essa memória depois ainda vai reverberar enquanto estiver viva. Mesmo que as pessoas deixem de se rever no conteúdo literal das canções, enquanto objecto cultural e guardadores de memória e da sensação de comunidade, elas ainda se vão perpetuar por mais umas décadas. 

O que achas apelativo nelas?
São canções de uma altura em que há mais atenção à qualidade da escrita e ao ofício da escrita, digamos assim. Mesmo quando as canções não me interessam por aí além, estão sempre relativamente bem escritas. 

Porque é que voltamos sempre a essas canções, mas nunca recordamos a música de protesto de décadas posteriores?
A música de protesto das décadas posteriores é uma música de protesto mais particular, mais individual. Não representa uma sincronia de grupo tão forte, nem tão marcante. Não volta a haver nenhum momento de união nacional – não gosto nada desta palavra, mas pronto como o 25 de Abril, portanto é natural que as memórias do colectivo posteriores não ecoem da mesma maneira com o passar dos anos.

A entronização das canções de protesto da década 70, e a nostalgia por elas, acaba por ser entrave à actualização deste repertório?
Acho que não. O que é o entrave à actualização do repertório é a falta de intérpretes e de uma cultura de intérpretes e de interpretação das canções, de sucessiva apropriação das canções. Uma coisa que, na música brasileira, é muito natural e acontece muito rapidamente. Há poucas canções do Chico Buarque que resistam mais de um ano a serem recantadas e recantadas e recantadas outra vez, e reouvidas e reouvidas. Aqui em Portugal a indústria da música é mais pequenina. Também existe, se calhar, uma certa formalidade para com os autores e, portanto, há alguma dificuldade em quebrar essa barreira de pegar numa canção de outra pessoa e cantá-la. Ao mesmo tempo, contam-se pelos dedos as carreiras de intérprete em Portugal, as pessoas que foram pegando em canções e as fizeram suas. 

Nas décadas de 60 e 70, os músicos acreditavam que estas canções podiam forçar uma mudança de regime. Algum músico acredita nisso hoje?
Acho que essa sensação da cultura enquanto arma de mudança externa é uma questão cíclica. Pelo menos desde o início do século XX que é um século que já conseguimos compreender um bocadinho melhor do que o que está para trás – que é fácil reparar que há sempre uma oscilação entre fases de surrealismo e de neo-realismo e de realismo. E os produtores de cultura, nas fases surrealistas, estão preocupados com a cultura como ferramenta de mudança interna; e, nas fases realistas, os artistas, os escritores, os pintores estão preocupados com a cultura como ferramenta de mudança externa. Acho que é um sentimento que está sempre a ir e a vir, e nem sequer me parece que se possa cobrir as décadas de 60 e 70 assim, genericamente, como décadas de produção realista em que a música era uma arma de mudança. Porque eu acho que grande parte do trabalho do Zeca ainda é da fase surrealista, ainda é de uma fase de busca interna e ainda é uma música de sobrevivência e não uma música de mudança. E rapidamente, quando o Zeca fica desiludido com os resultados culturais da revolução, volta outra vez a fazer um trabalho de sobrevivência e de busca interna mais do que de transformação para fora. Portanto, nesse aspecto, até acho que o Zeca é um bocadinho diferente da música da geração que se lhe segue imediatamente, do Sérgio Godinho e do Zé Mário e do Fausto, que já estão muito mais ligados a uma música realista, de intervenção no exterior. Hoje, estamos outra vez numa fase muito realista, em que os jovens voltam a acreditar que a sua produção criativa tem mais potencial de mudança externa do que interna. E daqui a dez anos vamos estar outra vez ao contrário. É sempre assim. Ainda não estamos prontos para uma decisão definitiva em relação a essa batalha entre o surrealismo e o realismo. 

Essa descrença é um reflexo da derrota e da desesperança das pessoas de esquerda?
As pessoas de direita também estão bastante desesperadas. Acho que há aqui um bocado um lado duplo entre aquilo de que estava a falar na resposta anterior, o surrealismo e o realismo, e ao mesmo tempo esta derrota e a desesperança. Parece que a derrota leva a uma tentativa de moralizar o outro, a sensação de derrota e de desesperança parece que activa o realismo e a ideia de que se vai mudar os outros antes de se mudar o próprio. Mas não sei, na pergunta anterior acabei a dizer que acho que sim, que ainda acreditam, portanto agora já não posso justificar que não acreditam.

Pode o crescimento da reacção e de um partido como o Chega revigorar a canção de protesto contemporânea e engajar mais os artistas?
Aqui, a luta política e o discurso político e a vida política estão completamente desculturalizados. Ao ponto de haver espaço para surgir um aparente nacionalismo que está completamente desligado de valores culturais (risos) e de algum domínio da cultura, da história, da língua. É um nacionalismo vazio de portugalidade, que acaba por ser um pouco um paradoxo. Porque, na verdade, eu é que sou o anti-nacionalista e, no entanto, trabalho no meu dia-a-dia muito mais com a matéria-prima da língua portuguesa e da cultura portuguesa e da história de Portugal do que estes ditos novos nacionalistas. Parece-me difícil vir a ter algum resultado positivo de ir misturar agora, no ponto em que as coisas estão, a cultura com a política, numa altura em que não se poderia estar mais a andar para trás. Está-se a andar para trás, muito para trás. A igreja está mais perto da política do que a arte e a cultura. Portanto, não tenho grande expectativa nesse aspecto. Sim, o engajamento dos artistas vai aumentando, mas esse engajamento acaba sempre por desembocar em moralismo, em pressão sobre o outro, em pouco trabalho verdadeiramente revolucionário, pouca novidade. Acaba por ser uma batalha de reaccionários de um lado e do outro. O engajamento acaba por servir para manter os artistas presos ao passado e a fecharem o seu trabalho num campo reaccionário, porque têm medo de abrir portas ao adversário.

Há muitos anos gravaste um disco de versões de José Afonso com o Walter Benjamin. Porque é que nunca o editaste?
Gravei essas versões com o Benjamim, com o meu amigo Luís Nunes, quando fui visitá-lo a Londres, há muitos anos. Ele estava a estudar produção e nós tínhamos acesso a um estúdio espectacular na escola dele, durante a noite, quando não havia aulas. Não tínhamos canções nossas para gravar, e cheguei-me imediatamente à frente com as canções do Zeca. E embora tenha sido uma sessão de gravação lendária, mítica, que ficou na nossa memória para sempre, para hoje, e de termos resultados dessa sessão, esse disco nunca ficou propriamente acabado. Como nunca ficou propriamente acabado, nunca foi editado e não houve maneira de voltar a pegar nesse trabalho. Estava muito ligado àquelas semanas que eu tinha estado na casa do Luís em Londres, portanto era muito difícil pegar naquilo noutras circunstâncias, e foi ficando para trás. Entretanto, já não cantaria assim as músicas e já não pegaria assim nas versões. Mas poderei tirar dois ou três temas dessa sessão para pôr numa gravação maior do Zeca, se existir.

Não desististe de gravar o repertório afonsino?
O meu trabalho com o reportório do Zeca, na verdade, ainda não está completamente terminado. Tenho vindo sempre a adiar a gravação das canções, sempre com a expectativa de que a gravação será o fim do meu trabalho sobre o Zeca e do meu estudo das canções dele. Vou sempre acrescentando versões e todos os anos vou aprendendo a tocar canções novas. Há algumas que eu já canto há muitos anos, mas só ganham uma versão cristalizada, que resulta de uma maneira especial, mais tarde. Às vezes demoram anos até encontrar a maneira certa de cantar a canção, às vezes até vou trocando de instrumento: há canções que eu começo por cantar na guitarra, passo para o piano, passo para a guitarra, etc. Costumo dizer, a gozar, que essa gravação do Zeca para mim é como se fosse a minha tese de doutoramentoembora eu não tenha acabado o curso. Ainda não desisti de gravar, mas é um projecto que tem algum grau de megalomania e que eu, já agora, gostava de ver chegar até ao fim. 

Quão diferente de outros concertos de Zeca, Zeca e mais Zeca! que tens dado vai ser este?
O Tivoli é provavelmente a sala maior e mais formal onde eu já fiz este concerto de versões do Zeca. Por isso, tenho estado a tentar escolher as versões que, de facto, ficam com alguma magia pop quando as canto, das quais me consigo apropriar a 100%, ter o cuidado de ouvir bem, com atenção, e tentar perceber quais é que estão mesmo apropriadas por completo, e quais é que eu ainda estou só a arranhar a superfície da canção do Zeca. Também estou a tentar arredondar um bocado o som porque, no ano passado, por exemplo, este concerto do Zeca foi na ZDB, que é um espaço muito pequeno e que permite uma existência mais punk e mais crua das canções. O Tivoli precisa de um som mais polido, das ideias mais apuradas e mais puras, para conseguirem chegar ao segundo balcão. Porque ideias excessivamente experimentais não passam da segunda fila da plateia, lá para a frente já não chegam. Então tem de ser um concerto mais seguro e mais apurado. Ao mesmo tempo, claro, tem que ter uma versão do Venham Mais Cinco que a malta consiga cantar comigo, senão crucificam-me.

Como é que a nossa relação com o legado do José Afonso evoluiu ao longo dos anos?
A nossa relação com o legado do Zeca evoluiu muito pouco, evoluiu muito devagarinho. Houve, de certa maneira, uma necessidade ao longo dos anos 80 e 90 de explorar outros caminhos na música e de renegar um bocado aquela canção mais política dos anos 60 e 70. Porque ele também tem um legado enquanto activista e enquanto representante dessa sensação de sincronia de que eu falava no início da entrevista, de certa maneira, essa existência do Zeca activista, do Zeca amigo e do Zeca ícone das canções, acaba por fazer sombra à música propriamente dita, na sua existência musical eterna, infinita. E, portanto, a maneira como nós olhamos para as canções do Zeca e a maneira como nós cantamos e o potencial de transformação das canções do Zeca ainda está só a começar. Ainda podemos imaginar pelo menos mais 100 ou 200 anos de versões e reinterpretações das canções do Zeca à medida que elas vão perdendo o seu significado literal e a sua ligação à memória literal das pessoas que viveram aquela época muito intensa.

Teatro Tivoli BBVA. 26 Abr (Sex). 21.00. 12€-20€

Mais três dedos de conversa

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