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B Fachada
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B Fachada: “A igreja está mais perto da política do que a arte e a cultura”

B Fachada canta “Zeca, Zeca e mais Zeca!” no ciclo Sons de Liberdade, do Teatro Tivoli, na sexta-feira, 26. Falámos com os três convidados deste ciclo sobre música e protesto.

Luís Filipe Rodrigues
Escrito por
Luís Filipe Rodrigues
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Há mais de uma década que B Fachada (1984) estuda e reinterpreta as canções de José Afonso. Por volta de 2012, chegou a gravar um disco inteiro de versões que nunca viu a luz dia – mas ainda poderá “tirar dois ou três temas dessa sessão para pôr numa gravação maior do Zeca, se existir”. E vai voltar a cantá-las no encerramento do ciclo Sons de Liberdade do Teatro Tivoli, na sexta, 26.

Fachada é o último dos três artistas que a organização convidou para revisitar canções de protesto e outras de autores que associamos à revolução de 25 de Abril – depois de JP Simões e Gisela João. A Time Out desafiou-os a responderem exactamente às mesmas perguntas sobre este repertório, os seus significados e peso. E a umas poucas questões mais específicas sobre estes concertos.

Cinquenta anos depois do fim da ditadura, as pessoas continuam a rever-se nas canções de protesto da época. Porquê?
Não sei se rever-se nas canções é a maneira mais certa de se pôr a questão, mas acho que as canções de protesto da época do fim da ditadura representam uma memória muito forte de um momento de sincronia colectiva, e de euforia colectiva também, depois da revolução. E a música, pela sua própria natureza, presta-se a ser fixadora desse sentimento de comunidade, de grupo, de base comum, de crença comum e de sincronia, muito forte. Provoca essa sensação de uma maneira muito intensa, e depois essa memória vai ecoando com o passar dos anos. E a verdade é que o fim da ditadura é um momento muito marcante para várias gerações. Sei que, na minha experiência familiar, é um momento muito marcante para os meu avós e para os meus pais. E essa memória depois ainda vai reverberar enquanto estiver viva. Mesmo que as pessoas deixem de se rever no conteúdo literal das canções, enquanto objecto cultural e guardadores de memória e da sensação de comunidade, elas ainda se vão perpetuar por mais umas décadas. 

O que achas apelativo nelas?
São canções de uma altura em que há mais atenção à qualidade da escrita e ao ofício da escrita, digamos assim. Mesmo quando as canções não me interessam por aí além, estão sempre relativamente bem escritas. 

Porque é que voltamos sempre a essas canções, mas nunca recordamos a música de protesto de décadas posteriores?
A música de protesto das décadas posteriores é uma música de protesto mais particular, mais individual. Não representa uma sincronia de grupo tão forte, nem tão marcante. Não volta a haver nenhum momento de união nacional – não gosto nada desta palavra, mas pronto como o 25 de Abril, portanto é natural que as memórias do colectivo posteriores não ecoem da mesma maneira com o passar dos anos.

A entronização das canções de protesto da década 70, e a nostalgia por elas, acaba por ser entrave à actualização deste repertório?
Acho que não. O que é o entrave à actualização do repertório é a falta de intérpretes e de uma cultura de intérpretes e de interpretação das canções, de sucessiva apropriação das canções. Uma coisa que, na música brasileira, é muito natural e acontece muito rapidamente. Há poucas canções do Chico Buarque que resistam mais de um ano a serem recantadas e recantadas e recantadas outra vez, e reouvidas e reouvidas. Aqui em Portugal a indústria da música é mais pequenina. Também existe, se calhar, uma certa formalidade para com os autores e, portanto, há alguma dificuldade em quebrar essa barreira de pegar numa canção de outra pessoa e cantá-la. Ao mesmo tempo, contam-se pelos dedos as carreiras de intérprete em Portugal, as pessoas que foram pegando em canções e as fizeram suas. 

Nas décadas de 60 e 70, os músicos acreditavam que estas canções podiam forçar uma mudança de regime. Algum músico acredita nisso hoje?
Acho que essa sensação da cultura enquanto arma de mudança externa é uma questão cíclica. Pelo menos desde o início do século XX que é um século que já conseguimos compreender um bocadinho melhor do que o que está para trás – que é fácil reparar que há sempre uma oscilação entre fases de surrealismo e de neo-realismo e de realismo. E os produtores de cultura, nas fases surrealistas, estão preocupados com a cultura como ferramenta de mudança interna; e, nas fases realistas, os artistas, os escritores, os pintores estão preocupados com a cultura como ferramenta de mudança externa. Acho que é um sentimento que está sempre a ir e a vir, e nem sequer me parece que se possa cobrir as décadas de 60 e 70 assim, genericamente, como décadas de produção realista em que a música era uma arma de mudança. Porque eu acho que grande parte do trabalho do Zeca ainda é da fase surrealista, ainda é de uma fase de busca interna e ainda é uma música de sobrevivência e não uma música de mudança. E rapidamente, quando o Zeca fica desiludido com os resultados culturais da revolução, volta outra vez a fazer um trabalho de sobrevivência e de busca interna mais do que de transformação para fora. Portanto, nesse aspecto, até acho que o Zeca é um bocadinho diferente da música da geração que se lhe segue imediatamente, do Sérgio Godinho e do Zé Mário e do Fausto, que já estão muito mais ligados a uma música realista, de intervenção no exterior. Hoje, estamos outra vez numa fase muito realista, em que os jovens voltam a acreditar que a sua produção criativa tem mais potencial de mudança externa do que interna. E daqui a dez anos vamos estar outra vez ao contrário. É sempre assim. Ainda não estamos prontos para uma decisão definitiva em relação a essa batalha entre o surrealismo e o realismo. 

Essa descrença é um reflexo da derrota e da desesperança das pessoas de esquerda?
As pessoas de direita também estão bastante desesperadas. Acho que há aqui um bocado um lado duplo entre aquilo de que estava a falar na resposta anterior, o surrealismo e o realismo, e ao mesmo tempo esta derrota e a desesperança. Parece que a derrota leva a uma tentativa de moralizar o outro, a sensação de derrota e de desesperança parece que activa o realismo e a ideia de que se vai mudar os outros antes de se mudar o próprio. Mas não sei, na pergunta anterior acabei a dizer que acho que sim, que ainda acreditam, portanto agora já não posso justificar que não acreditam.

Pode o crescimento da reacção e de um partido como o Chega revigorar a canção de protesto contemporânea e engajar mais os artistas?
Aqui, a luta política e o discurso político e a vida política estão completamente desculturalizados. Ao ponto de haver espaço para surgir um aparente nacionalismo que está completamente desligado de valores culturais (risos) e de algum domínio da cultura, da história, da língua. É um nacionalismo vazio de portugalidade, que acaba por ser um pouco um paradoxo. Porque, na verdade, eu é que sou o anti-nacionalista e, no entanto, trabalho no meu dia-a-dia muito mais com a matéria-prima da língua portuguesa e da cultura portuguesa e da história de Portugal do que estes ditos novos nacionalistas. Parece-me difícil vir a ter algum resultado positivo de ir misturar agora, no ponto em que as coisas estão, a cultura com a política, numa altura em que não se poderia estar mais a andar para trás. Está-se a andar para trás, muito para trás. A igreja está mais perto da política do que a arte e a cultura. Portanto, não tenho grande expectativa nesse aspecto. Sim, o engajamento dos artistas vai aumentando, mas esse engajamento acaba sempre por desembocar em moralismo, em pressão sobre o outro, em pouco trabalho verdadeiramente revolucionário, pouca novidade. Acaba por ser uma batalha de reaccionários de um lado e do outro. O engajamento acaba por servir para manter os artistas presos ao passado e a fecharem o seu trabalho num campo reaccionário, porque têm medo de abrir portas ao adversário.

Há muitos anos gravaste um disco de versões de José Afonso com o Walter Benjamin. Porque é que nunca o editaste?
Gravei essas versões com o Benjamim, com o meu amigo Luís Nunes, quando fui visitá-lo a Londres, há muitos anos. Ele estava a estudar produção e nós tínhamos acesso a um estúdio espectacular na escola dele, durante a noite, quando não havia aulas. Não tínhamos canções nossas para gravar, e cheguei-me imediatamente à frente com as canções do Zeca. E embora tenha sido uma sessão de gravação lendária, mítica, que ficou na nossa memória para sempre, para hoje, e de termos resultados dessa sessão, esse disco nunca ficou propriamente acabado. Como nunca ficou propriamente acabado, nunca foi editado e não houve maneira de voltar a pegar nesse trabalho. Estava muito ligado àquelas semanas que eu tinha estado na casa do Luís em Londres, portanto era muito difícil pegar naquilo noutras circunstâncias, e foi ficando para trás. Entretanto, já não cantaria assim as músicas e já não pegaria assim nas versões. Mas poderei tirar dois ou três temas dessa sessão para pôr numa gravação maior do Zeca, se existir.

Não desististe de gravar o repertório afonsino?
O meu trabalho com o reportório do Zeca, na verdade, ainda não está completamente terminado. Tenho vindo sempre a adiar a gravação das canções, sempre com a expectativa de que a gravação será o fim do meu trabalho sobre o Zeca e do meu estudo das canções dele. Vou sempre acrescentando versões e todos os anos vou aprendendo a tocar canções novas. Há algumas que eu já canto há muitos anos, mas só ganham uma versão cristalizada, que resulta de uma maneira especial, mais tarde. Às vezes demoram anos até encontrar a maneira certa de cantar a canção, às vezes até vou trocando de instrumento: há canções que eu começo por cantar na guitarra, passo para o piano, passo para a guitarra, etc. Costumo dizer, a gozar, que essa gravação do Zeca para mim é como se fosse a minha tese de doutoramentoembora eu não tenha acabado o curso. Ainda não desisti de gravar, mas é um projecto que tem algum grau de megalomania e que eu, já agora, gostava de ver chegar até ao fim. 

Quão diferente de outros concertos de Zeca, Zeca e mais Zeca! que tens dado vai ser este?
O Tivoli é provavelmente a sala maior e mais formal onde eu já fiz este concerto de versões do Zeca. Por isso, tenho estado a tentar escolher as versões que, de facto, ficam com alguma magia pop quando as canto, das quais me consigo apropriar a 100%, ter o cuidado de ouvir bem, com atenção, e tentar perceber quais é que estão mesmo apropriadas por completo, e quais é que eu ainda estou só a arranhar a superfície da canção do Zeca. Também estou a tentar arredondar um bocado o som porque, no ano passado, por exemplo, este concerto do Zeca foi na ZDB, que é um espaço muito pequeno e que permite uma existência mais punk e mais crua das canções. O Tivoli precisa de um som mais polido, das ideias mais apuradas e mais puras, para conseguirem chegar ao segundo balcão. Porque ideias excessivamente experimentais não passam da segunda fila da plateia, lá para a frente já não chegam. Então tem de ser um concerto mais seguro e mais apurado. Ao mesmo tempo, claro, tem que ter uma versão do Venham Mais Cinco que a malta consiga cantar comigo, senão crucificam-me.

Como é que a nossa relação com o legado do José Afonso evoluiu ao longo dos anos?
A nossa relação com o legado do Zeca evoluiu muito pouco, evoluiu muito devagarinho. Houve, de certa maneira, uma necessidade ao longo dos anos 80 e 90 de explorar outros caminhos na música e de renegar um bocado aquela canção mais política dos anos 60 e 70. Porque ele também tem um legado enquanto activista e enquanto representante dessa sensação de sincronia de que eu falava no início da entrevista, de certa maneira, essa existência do Zeca activista, do Zeca amigo e do Zeca ícone das canções, acaba por fazer sombra à música propriamente dita, na sua existência musical eterna, infinita. E, portanto, a maneira como nós olhamos para as canções do Zeca e a maneira como nós cantamos e o potencial de transformação das canções do Zeca ainda está só a começar. Ainda podemos imaginar pelo menos mais 100 ou 200 anos de versões e reinterpretações das canções do Zeca à medida que elas vão perdendo o seu significado literal e a sua ligação à memória literal das pessoas que viveram aquela época muito intensa.

Teatro Tivoli BBVA. 26 Abr (Sex). 21.00. 12€-20€

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