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©Fabrice Demoulin

“Haja Matéria”: o grito de guerra do chef João Rodrigues

A Time Out participou na terceira edição do Matéria, um projecto do chef João Rodrigues, do Feitoria. Parta connosco numa viagem de três dias entre grandes produtores e grandes pratos.

Escrito por
Mariana Correia de Barros
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O princípio era a matéria. Peixes, nacos de carne ou legumes no estado puro, que vinham à mesa dos clientes do Feitoria, antes de serem transformados pelas facas dos chefs. Depois, João Rodrigues transformou-a num projecto de quatro jantares com chefs estrangeiros, que incluem visitas a produtores portugueses, de onde se trazem os produtos a usar na cozinha.

A Time Out participou na terceira edição do Matéria, um projecto dinâmico, que conhecerá vida digital em Março do próximo ano.

Dia 1
©Fabrice Demoulin

Dia 1

O relógio marca as 10.15 e na recepção do Altis Belém Hotel & Spa conversa-se em inglês, francês e português. O chef João Rodrigues, sem a habitual jaleca, mas fardado com roupa de campo – um oleado e umas botas Timberland –distribui o pequeno grupo por dois carros e avisa: “vamos, já estamos atrasados”. Com ele seguem August Lill, chef sueco com carreira feita em França, a namorada Jessica, parisiense, formada em pastelaria, e Ruben Trindade Santos, cozinheiro português que trabalhou no Feitoria; no carro atrás seguem jornalistas e António Gonçalves, responsável pela Pousada de São Bartolomeu em Bragança, também com escola feita no Feitoria.

Primeira paragem: Mercado do Livramento - Mercado Municipal de Setúbal (Av. Luísa Todi, 163. 265 545 392. Ter-Dom 07.00-14.00). Quem recebe o grupo é Luís Barradas, setubalense de gema, com passagens pelo Sea Me, o Tago’s e agora à frente de uma nova morada na terra que o viu nascer, o Zagaia, com marisco, sushi e pratos tradicionais de peixe. Conhece como ninguém o mercado onde se abastece – é aqui que toma o pequeno-almoço diariamente, composto por uma uma bifana e uma mini, na Casa das Bifanas do Ramiro e da Celisa – e é ele que vai explicando, banca a banca, peixe a peixe, como se cozinha cada um dos exemplares. “Aprendi com o Ángel Léon [restaurante Aponiente, Porto de Santa Maria], a cozinhar as bochechas deste peixe como se fossem carne de pombo”, conta, enquanto aponta para uma xaputa. “Nos salmonetes, costumamos tirar o fígado e fazer um molho”, explica, a August Lill em particular, mas a todos em geral. Afinal, é este o chef convidado para o terceiro jantar Matéria. João Rodrigues explica o projecto.

“Trata-se de conhecer pessoas: nós, os que transformamos, e os que produzem. É isso que está na base do Matéria. Um chef internacional, um chef local de uma região, uma região e um produtor de vinhos dessa região. O Matéria nasceu há um ano e meio como um menu do restaurante. Ao fim de um tempo de fazer uma reflexão e de fazer um percurso já grande no Feitoria, comecei a analisar bem tudo o que se passava em termos de redes sociais e reacções dos clientes. E percebi que as pessoas têm uma reacção sempre efusiva ao produto, muito mais do que a pratos, chefs, seja o que for. O que quer dizer que vibram quando vêem bom produto. Mas as pessoas estão cada vez mais distantes disto que temos aqui à nossa volta [campo]. Deixámos de conhecer quem trata das cabras, quem plantou os legumes, quem fez o vinho. Portanto, achei que tinha de ter um menu com uma dinâmica boa de trazer - já que não podemos pegar nas pessoas e fazer isto que estamos a fazer, de as levar aos produtores - trazer os produtos até aos clientes e explicar um bocadinho de onde é que ele veio, porquê, quem é que o traz, qual é o produtor.”

 

©Fabrice Demoulin

Feita a visita ao mercado, onde nos cruzamos com peixes-rei, fanecas, peixes-carta, tudo, partimos para uma produção de ostras na Reserva Natural do Estuário do Sado, a Neptune Pearl, numa zona outrora usada para a produção de sal. À frente da empresa está Célia Rodrigues, nascida em Peniche, com família ligada ao mar, que lançou a sua empresa há cerca de cinco anos e abastece alguns restaurantes de Lisboa (trabalha com chef André Magalhães, por exemplo), além de fazer exportação. No passeio à volta das antigas salinas, enquanto Luís Barradas apanha e distribui pelo grupo salicórnias e sacocórnias (plantas que crescem nas imediações das salinas), Célia vai explicando em detalhe o trabalho que faz com as ostras colocadas em sacos ostrícolas - “demoram até um ano e dois meses a atingir o tamanho ideal” - fala sobre as espécies que trabalha, como a ostra plana da Galiza, a crassostera giga (ostra-do-Pacífico) e até a francesa fine de claires, produzida de forma diferente, fora dos sacos.

Pouco tempo depois, subimos a bordo de um barco da Sea Life Lovers (www.sealifelovers) para provar as ostras de Célia Rodrigues, acabadas de abrir pela própria, e não só. Com saída da Doca de Recreio das Fontainhas, a embarcação percorre a costa da praias da Serra da Arrábida. A empresa organiza todo o tipo de passeios, programas desportivos, como baptismo de mergulho ou yoga, além de fazer viagens gastronómicas com cozinheiros, por exemplo. O propósito, explica João Rodrigues, é dar a conhecer também uma parte de Portugal aos estrangeiros.

“Se queremos passar uma mensagem, podemos fazê-lo internamente, mas de alguma forma tens de internacionalizar a tua ideia. E então, ajudas a vender a marca Portugal como algo que é diferente. Não é melhor, nem pior, é simplesmente diferente. A melhor maneira de fazer isso é trazer as pessoas cá e daí convidar um chef internacional, às vezes também jornalistas internacionais, para podermos proporcionar uma experiência que não é criada, nem demasiado fictícia. É o dia a dia, é o encontro, no fundo é conhecer pessoas.”

O dia termina com uma grande almoçarada (o relógio marcava as 18.00, ainda assim chamou-se ao repasto um almoço) numa tertúlia em Setúbal, com quase todos os pratos confeccionados pela equipa do Feitoria, musicado por setubalenses e com direito a acordes de guitarra tocados por João Rodrigues e Luís Barradas. No menu, arroz de lingueirão, salmonetes de Setúbal na grelha, pão caseiro do Feitoria, queijos de cabra português da Maçussa e tortas de Azeitão do restaurante A-Mar (Av. Luísa Todi, 157), com consultoria do chef André Cruz, subchef de João Rodrigues no Altis Belém.

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Dia 2
©Fabrice Demoulin

Dia 2

Às 10.00, o mesmo grupo do dia anterior, com um novo elemento a bordo, Pedro Cardoso, d’A Queijaria, no Príncipe Real, volta a atravessar a Ponte 25 de Abril, em direcção ao distrito de Setúbal. Logo para abrir o apetite, bate-se à porta da queijaria artesanal Victor Fernandes (Rua de São Brás - C.C.I. 850. 21 080 7796), uma empresa familiar com quase 30 anos, onde se produzem 600 Queijos de Azeitão por dia. Na visita às salas de produção, feita por Rúben Fernandes, aprende-se mais sobre a técnica de produção – “fazemos os queijos com cardo” – sobre o tempo que passam nas câmaras frigoríficas, cerca de 22 dias em duas salas diferentes e com temperaturas diferentes, sobre as várias lavagens e todo o processo antes de chegar ao consumidor. Os queijos são usados no Feitoria, mas João Rodrigues sublinha que nem só dos seus fornecedores se faz o Matéria.

“Há mais vida para além do Feitoria. O que nós queremos é transmitir um pouco uma imagem geral do país. Agora é claro que eu tento escolher pessoas com quem tenho cumplicidade, que já conheço o trabalho e os sítios onde trabalham e isso ajuda depois a que o ambiente seja de amizade, de harmonia.”

 

©Fabrice Demoulin

Por isso mesmo, e depois da visita ao rebanho de ovelhas, ordenhadas duas vezes por dia para produção dos queijos, o destino é a mítica Quinta do Poial (Rua da Matosa, Quinta do Poial, Vendas de Azeitão. 21 218 8085). Há quem conheça o nome da banca do Mercado Biológico do Príncipe Real, aos sábados de manhã, quem saiba abastece vários restaurantes de Lisboa (José Avillez, Vincent Farges e João Rodrigues, claro, são clientes fiéis), já desde os tempos da criação da quinta, por Maria José Macedo (morreu em Maio de 2016). No leme está agora Joana, a filha, que tem vindo a precaver-se para as mudanças de clima, mas ainda assim continua a mostrar orgulhosa as estufas carregadas de ervas aromáticas mais ou menos comuns – manjericão roxo ou mizuna, por exemplo – dos vários tipos de tomate, dos citrinos, das cenouras, alfaces, beterrabas, tudo biológico.

O almoço, hoje a horas decentes (14.30), acontece num terreno no Pinhal Novo, bem conhecido pela equipa do Feitoria. 

“Já falámos muitas vezes neste sítio, em quase todas as entrevistas que demos falámos dele. Mas não o podemos chamar nosso. É do sogro do André Cruz, o meu subchef no Feitoria. Surgiu porque isto está na família deles. É a casa do Zé Manel, são as hortas do Zé Manel, as colmeias do Zé Manel, mas houve desde o primeiro momento uma grande abertura para que pudéssemos usufruir livremente disto. E depois com muita insistência do André, que é muito ligado a estas questões da agricultura, principalmente orgânica e biológica, achámos que seria interessante poder usá-la de uma forma quase educativa para os nossos cozinheiros. A ideia foi construir quase um mapa de sazonalidade, de colheitas e de épocas para semear os legumes, para fazer as sementeiras, e dessa forma poder trazer os cozinheiros para eles aprenderem os ciclos de vida e a dureza que é um trabalho destes. A ideia é que no fim possam respeitar o produto porque percebem todo o trabalho que está por trás. Isto faz tudo parte do Matéria.”

Um cozido com direito a cascas de Bragança (António Gonçalves trouxe-as na mala), uma ordenha de cabra e vários copos de vinho depois, parte-se rumo à Casa Agrícola Horácio Simões (Rua João de Deus, 10. Quinta do Anjo, Palmela. 21 287 0500), onde Pedro Simões, a quarta geração da família a pegar nos vinhos desta marca centenária, dá a provar uma série de experiências que tem vindo a fazer – como um vinho feito a partir de uma vinha que ardeu. O seu trabalho tem passado pela recuperação de uvas autóctones que caíram em esquecimento, como a casta Boal do Barreiro. Boa parte do que se prova é Moscatel Roxo, uma casta também perdida há 30 anos, que esta casa agrícola e outros produtores locais fizeram um esforço para recuperar nas últimas décadas.

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Dia 3
©Fabrice Demoulin

Dia 3

No último dia o ponto de encontro é mais tarde, 19.30, e a viagem fica pela mesa do Feitoria, num menu cozinhado a seis mãos: João Rodrigues, Luís Barradas e August Lill, numa apresentação de pratos feitos com alguns dos produtos apresentados no dia anterior, regado a vinhos Horácio Simões. Exemplos? Um sashimi de salmonete e pó de fígados (Luís Barradas), um prato de beterrabas, raíz forte, bagas de sabugueiro e merugem (August Lill), ostras da Neptune Pearl com arroz de salicórnia queimada, algas e yuzu (João Rodrigues) ou uma sobremesa de castanhas, bagas nórdicas preservadas e sangue de porco (August Lill).

 

©Fabrice Demoulin

Por enquanto está agendado outro programa semelhante em Janeiro (apenas para convidados), noutra região, mas a boa notícia é que em breve a Matéria se tornará virtual.

“Quero que tudo isto faça parte do que é o Matéria. Quero é que o Matéria tenha vida própria, por isso o próximo passo é fazer uma plataforma digital que sirva quase de network entre todos os chefs, entre os produtores. Todas as pessoas que se interessem, que tenham conhecimento e que o possam partilhar. É claro que isto é um trabalho que tem de ser feito não só por mim, mas por toda a gente. O que acaba por apelar um bocado a alguma militância – se é que a palavra se pode usar neste caso – por parte dos chefs. Acho que nós estamos numa fase muito boa em que há uma comunhão grande – pelo menos nos chefs da nova geração. Mas esta geração penso que tem esta particularidade de se querer dar bem e construir algo. Portanto é mais uma ferramenta para ser construída em conjunto. É feita por todos e para todos. Acho que é uma coisa que pode dar frutos muito bons. Eu disse aquilo no congresso [Congresso dos Cozinheiros, em Novembro, onde falou do Matéria] passaram duas ou três semanas e já muita gente me ligou a querer contribuir – e não só chefs. E isso é o sinal que esse trabalho está por fazer e é claro que depois isto é muito grande. Passamos depois da gastronomia para tudo o que lhe está associado. Por isso é uma coisa que não tem fim. Espero que não tenha fim.”

O Matéria aconteceu dias 5, 6 e 7 de Dezembro, no distrito de Setúbal e terminou com um jantar no Feitoria.

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