Notícias

O fenómeno Maria Francisca Gama: “Foram os leitores que decidiram que eu sou uma escritora”

A autora acaba de lançar o seu mais recente romance, ‘Filha da Louca’, e já está a dar que falar no BookTok e fora dele.

Beatriz Magalhães
Escrito por
Beatriz Magalhães
Jornalista
Maria Francisca Gama
DR | Maria Francisca Gama
Publicidade

Estamos no primeiro sábado da Feira do Livro. Por todo o lado andam famílias, para cima e para baixo, e algumas com uma pilha considerável de livros nas mãos. Na praça da Penguin, começam a preparar-se as mesas e cadeiras para a sessão de autógrafos às 17.00. Mas cerca de uma hora antes, já começa a formar-se uma fila. Entre quem passa, perguntando-se se será esta a fila para pagar, há quem, timidamente, se deixe ficar por aqui. Vão olhando em volta, impacientes, desviando-se de onde bate o sol, quando reparam em Maria Francisca Gama e sorriem-lhe e acenam na sua direcção. Ela retribui-lhes o olhar e acena de volta, com um sorriso de orelha a orelha. “Fico sempre muito nervosa nestas coisas. As pessoas tiveram a amabilidade de ler o meu trabalho e têm coisas a dizer, sentam-se e contam coisas delas e dizem coisas muito bonitas, muito lisonjeadoras, e tenho sempre pânico de não dizer a coisa certa ou de dizer uma coisa muito tola”, confessa, entre risos. Neste dia, muitas estão aqui para falar com a autora acerca do seu mais recente livro – Filha da Louca –, publicado no final de Maio, mais de um ano após A Cicatriz, que tomou de assalto o BookTok português.

Tal como Rita da Nova ou Helena Magalhães, Maria Francisca Gama faz parte de um leque de escritoras da nova geração que têm vindo a tornar-se nomes cada vez mais sonantes da ficção literária portuguesa. Estreou-se com A Profeta, em 2022, mas, ao contrário do que seria esperado, só dois anos depois é que viria a colher os frutos desta sua primeira incursão literária. “[Os leitores] querem saber o que é que vou fazer e o que é que já fiz. E isso é muito bom, porque acho que é raríssimo um livro que tem dois anos e tal vender mais passados esses dois anos e tal do que na altura em que saiu. Normalmente, os livros vendem mais na altura do lançamento e depois vão diminuindo gradualmente as suas vendas. E aqui aconteceu o contrário”, explica a autora de 27 anos.

O efeito Maria Francisca Gama 

Mas não foi com A Profeta que se deu o boom em torno de Maria Francisca Gama. Foi sim a sua segunda obra – A Cicatriz –, lançada em Fevereiro de 2024, que se tornou viral nas redes sociais, pondo assim o nome da escritora no radar dos leitores portugueses. A história, protagonizada por um casal de férias no Rio de Janeiro, é escrita na primeira pessoa e relata os contornos de um episódio de violência sexual. Depois dos primeiros vídeos de pessoas a partilhar a sua experiência de leitura, no TikTok ou no Instagram, rapidamente se multiplicaram os relatos. Chegavam até, muitas das vezes, em forma de aviso, destacando o quão devastador era o livro. 

“Eu fiquei um tanto curioso, porque os temas que a Maria Francisca escreve são muito sensíveis e fiquei muito surpreso da maneira como ela respeita as situações ruins que temos no Brasil. Ela toma muito cuidado ao tocar nesses assuntos, sempre fazendo questão de que o país é sempre incrível, mas ressaltando que existem coisas boas e ruins. A partir desse momento, comecei a me interessar cada vez mais por ela e comecei a seguir o seu perfil”, começa por dizer Matheus Ribeiro, de 29 anos, enquanto espera na fila, de cerca de 50 pessoas, para conhecer Maria Francisca Gama, já depois de ter comprado A Profeta Filha da Louca.

Não é o único que a conheceu através das redes sociais, aliás é assim que a maioria a ficou a conhecer. Daniela Machado, 23, e Filipa Manso, 26, são seguidoras ávidas do BookTok e das tendências literárias e, por isso, não é de estranhar que o algoritmo da rede social, a dado momento, lhes tenha sugerido vídeos sobre a autora. “Há muito mais variedade de livros em inglês do que em português, mas tento sempre procurar autores portugueses que sejam falados no TikTok e sobre os quais as pessoas falam bem. Depois, acabo por ler”, explica Filipa Manso. A amiga, Daniela, concorda e acrescenta: “É muito bom ela [Maria Francisca Gama] estar a mostrar o trabalho dela, porque, por exemplo, A Cicatriz é muito conhecido por causa do trabalho que ela fez no TikTok. E acho que é bom ter o sucesso que tem, porque é um livro bom e foi por todo o trabalho que ela fez no TikTok de divulgar o livro.”  

Foi numa tentativa de divulgar esta segunda obra que levou Maria Francisca Gama a tornar-se mais activa nas redes sociais. Começou por partilhar conteúdos acerca das suas leituras e, depois, passou também a publicar vídeos acerca de A Cicatriz. E se, no início, chegou a ter de pôr de lado algum preconceito em torno de partilhar mais sobre si para os seguidores, hoje percebe como todo esse trabalho foi essencial para o sucesso. “Quero escrever e ser lida, e os escritores e os críticos representam uma fatia muito pequena do eventual público que posso ter. O que está a acontecer comigo, um caso que não sei se é tão comum assim, é que foram os leitores que decidiram que eu sou uma escritora, independentemente da idade que tenha ou do que já tenha feito. Os leitores é que puseram A Cicatriz meses e meses nos tops, é que enchem as salas onde se fala sobre os meus livros e isso não tem nada a ver com aquilo que a classe acha ou deixa de achar”.

Novo livro, os leitores de sempre

Com Filha da Louca, nas livrarias há pouco mais de duas semanas, parece que o efeito pode vir a repetir-se. “Em Portugal, há um problema muito grande relacionado com a oferta e a procura. Há mais livros a serem publicados do que aquelas que são efectivamente adquiridos e é um privilégio muito grande, tal como aconteceu e continua a acontecer, abrir o meu TikTok e ver muitos vídeos, às vezes vídeos seguidos, de pessoas a falar do meu trabalho. Isso é espectacular e tenho muito a agradecer aos leitores e criadores de conteúdo, porque, de alguma maneira, democratizaram a leitura”, acredita.

Tal como para a escritora, também para os leitores parece que o futuro dos livros virá a passar cada vez mais pela divulgação e partilha de opiniões nas comunidades de leitura online. “[A Cicatriz] chegou à nona edição por algum motivo e acho que foi por todo o trabalho que a Maria Francisca fez nas redes. Isso é cada vez mais óbvio. Tens a Rita da Nova, que tem o Livra-te e várias edições do primeiro livro. Acho que o BookTok está a crescer imenso, o Bookstagram também, e é óptimo. Nota-se que há cada vez mais gente na Feira do Livro”, diz Fábio Silva, de 31 anos, assim que acaba de se despedir da escritora, com quem conversou durante alguns minutos. 

De facto, a Feira do Livro está cheia. E não se enche apenas daqueles que querem aproveitar as oportunidades do dia ou de quem aparenta ter muita leitura em atraso. Os autores conversam para plateias de dezenas de pessoas, atentas e alheias ao rebuliço que se faz sentir à sua volta, e as filas para as sessões de autógrafos são, várias vezes, confundidas com as filas de pagamento devido ao seu tamanho. Chegam a dar a volta ou então é necessário que um dos livreiros da editora se mantenha de pé no fim da mesma, para que não haja grandes confusões. “Há cada vez mais pessoas aqui nas filas, antigamente não se via isto. Não havia pessoas a pedir autógrafos aos autores, não havia tanta gente a comprar livros. Eram pessoas mais velhas”, nota Paula Lopes, de 53 anos, que ficou a conhecer os livros A Cicatriz e, agora, Filha da Louca, através da filha.

Há até uma parte das pessoas que nunca esteve numa sessão de autógrafos – não têm o hábito de o fazer, dizem-nos. Mas por Maria Francisca Gama, vieram. Vieram porque já planeavam vir à feira neste dia e pensaram “Porque não?”, porque queriam ter a oportunidade de falar com a autora, ou então porque queriam simplesmente apoiar o trabalho de jovens escritoras como ela. E vieram, sobretudo, porque confiam nela – naquilo que ela escreve e quer dizer. Bastou-lhes ler um livro para, em menos de nada, pegarem nos outros. E é em pé, na fila, enquanto esperam pela sua vez, que folheiam as primeiras páginas de Filha da Louca.

A ‘Filha da Louca’

“A ideia para o Filha da Louca surgiu por causa de uma notícia que li relacionada com uma mãe que não protegeu a sua filha. (...) Então comecei a escrever essa história sobre uma mulher que tem algum problema e que, por causa disso, não consegue ajudar a filha. A certa altura, tornou-se outra coisa, muito distante daquilo que tinha lido e é uma história sobre uma criança que cresce a ser a filha da louca.” Tal como aconteceu com A Cicatriz, este novo livro assenta em temáticas sensíveis, como a perda, o luto e a saúde mental, centrando-se na história de Matilde, que se vê, aos 25 anos, sem pai nem mãe.

“Acho que utilizo muito a escrita para parar e pensar. E estes temas, que tenho acabado por ter nos meus livros, reflectem um bocadinho aquelas que são as minhas preocupações. Quando comecei a escrever o livro, não estava grávida, mas na fase que estou a viver agora, grávida, tenho muita empatia para com esta mãe e os leitores vão perceber porquê. Não acredito na maldade por si só, e muito menos na loucura, e muitas vezes o termo louca é utilizado para descrever mulheres que fogem à norma e, muitas delas provavelmente, são pessoas com perturbações psiquiátricas que deviam receber ajuda e não ser ostracizadas”, continua, realçando que esta obra é melhor que a anterior, acredita ela, devido às críticas que recebeu acerca do último livro.

Contudo, ainda que A Cicatriz tenha recebido várias críticas negativas, os elogios chegam-nos em ondas e de uma só vez. Leitores como Matheus Ribeiro ou Cláudia Oliveira, de 28 anos, elogiam a forma como a autora consegue transmitir a história num tom tão pessoal. Já Jéssica Roldão, 24, descreve o livro como “um murro no estômago” e Leonor Ferreira, 22, conta-nos o quão “presa” ficou à obra. E todos chegam à mesma conclusão, nem sendo preciso terminar a pergunta para saber que a resposta é sim. Sim, são fãs de Maria Francisca Gama. Sim, vão ler tudo aquilo que ela publicar. “Sim, com toda a certeza vou comprar um livro novo dela. Acho que é, actualmente, uma das minhas autoras portuguesas predilectas”, confirma Matheus.

Para o próximo livro, porém, Maria Francisca Gama quer tomar um rumo diferente – quer escrever um policial/thriller. “Sou muito nova. Se for escritora para o resto da minha vida, que acho que serei, tenho muitos, muitos livros para escrever. Portanto, por vários motivos – pelos leitores, mas principalmente por mim – para continuar a gostar do que faço e para me desafiar e evoluir, preciso de sair do registo literário onde estou. Preciso de escrever livros sobre os quais os meus leitores dizem ‘Não gostei nada deste, volta a escrever os outros’. E preciso de ir buscar leitores que não tenho”, remata.

🏡 Já comprou a Time Out Lisboa, com as últimas aldeias na cidade?

🏃 O último é um ovo podre: cruze a meta no FacebookInstagram Whatsapp

Últimas notícias
    Publicidade