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Stabat Mater por Evgraf Semeonovich Sorokin, 1873
[Stabat Mater por Evgraf Semeonovich Sorokin, 1873]

10 Stabat Mater que precisa de ouvir

O Teatro Nacional de São Carlos dá a ouvir o Stabat Mater de Dvorák, uma obra marcada pela tragédia pessoal do compositor. A Time Out sugere mais dez versões deste hino medieval musicado por vários compositores de génio

Escrito por
José Carlos Fernandes
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Que relação tinha Jesus com a sua mãe? Hoje, alimentados por alguns séculos de representações artísticas, elucubrações teológicas e outras ficções, podemos ser levados a pensar que eram muito próximos, mas a verdade é que as Sagradas Escrituras são quase completamente omissas sobre o assunto. Se a religião cristã nascera com forte pendor misógino, o século IV assistira à tentativa de “inclusão” das mulheres através da figura da “mãe misericordiosa” (mater misericordia), que ganharia mais consistência na Idade Média com o estabelecimento de um paralelismo entre o sofrimento de Maria perante a cruz e a gratidão e veneração do crente perante o sacrifício de Jesus, associação que atribuiu a Maria o papel de co-redentora dos pecados da humanidade.

Esta visão é consubstanciada no hino católico Stabat Mater, datado do século XIII e atribuído ao frade franciscano Jacopone da Todi (ou ao papa Inocêncio II), representando Maria devastada pela dor ao contemplar a crucifixão do filho e apelando ao crente para se comover perante esta lancinante cena.

Muitos compositores musicaram o Stabat Mater, apesar de ele pôr alguns desafios, o maior dos quais é sustentar o interesse musical da obra e evitar a monotonia, quando o texto é uma imagem estática de dor, angústia e desolação, com excepção do final, em que o crente fortalecido pelo sacrifício de Cristo e respaldado na intercessão da Virgem, exprime o desejo de que “a minha alma alcance a glória do Paraíso”.

Nota: os diferentes compositores agruparam de diferentes formas os 20 versículos do hino, pelo que os números atribuídos aos andamentos não coincidem necessariamente entre os vários Stabat Mater. 

O Stabat Mater de Dvorák em Lisboa

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10 Stabat Mater que precisa de ouvir

Josquin

Ano: c. 1500

O franco-flamengo Josquin Desprez (c.1450-1521) passou boa parte da carreira em Itália. mas o seu Stabat Mater terá provavelmente sido composto quando esteve em França, ao serviço de Luís XIII. O moteto a cinco vozes é construído sobre uma linha de tenor pedida emprestada a uma canção profana de Gilles Binchois, “Comme Femme Desconfortee”, uma prática que poderá hoje parecer sacrílega, mas que era corrente na época.

[Pelo ensemble Graindelavoix, com direcção de Björn Schmelzer, ao vivo na Kapellekerk, Bruxelas, 2017]

Palestrina

Ano: c. 1590-91

O Stabat Mater a oito vozes de Giovanni Pierluigi Palestrina (c.1525-1594) destina-se a coro duplo e foi composto para a Cappella Giulia, o coro da Basílica de S. Pedro, em Roma, que Palestrina dirigiu em 1551-54 e 1571-94, alguns autores crêem que o moteto foi composto para Gregório XIV, que foi papa em 1590-91. A peça destinava-se ao uso exclusivo da Cappella Giulia, mas, quando visitou Roma em 1770, Charles Burney conseguiu obter uma cópia que fez publicar no ano seguinte em Londres. O nome de Palestrina foi também associado a um Stabat Mater a 12 vozes, mas alguns musicólogos atribuem este a outro compositor da “escola romana”, Felice Anerio (c.1560-1614).

[Pelo ensemble Ars Nova Copenhagen, com direcção de Paul Hillier, ao vivo na Garnisonskerk, Copenhaga, 2014]

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Scarlatti, Alessandro

Ano: 1724

Alessandro Scarlatti (1660-1725) foi um dos mais prolíficos e influentes compositores da viragem dos séculos XVII-XVIII e trabalhou em Nápoles, Roma e Florença para figuras cimeiras da política e da cultura em Itália, como o vice-rei de Nápoles, a rainha Cristina (que após abdicar do trono sueco instalara a sua corte em Roma), o cardeal Ottoboni ou Ferdinando de’ Medici. O Stabat Mater foi-lhe encomendado por uma entidade bem mais humilde: uma confraria de Nápoles, a Confraternità dei Cavalieri della Vergine dei Dolori (Confraria dos Cavaleiros da Virgem das Dores), que tinha sede na igreja franciscana de San Luigi di Palazzo. Os escassos meios da confraria explicam os modestos requisitos da obra: duas vozes agudas (que, na época, seriam confiadas a rapazes ou a castrati), dois violinos e baixo contínuo (violoncelo e órgão). Mas Scarlatti não poupou nem na invenção nem na expressividade e o resultado é uma das suas mais belas peças sacras.

[“Quis Non Posset Contristari”), por Sara Mingardo (contralto) e Concerto Italiano, em instrumentos de época, com direcção de Rinaldo Alessandrini (Opus 111/Naïve)]

Scarlatti, Domenico

Ano: c.1715

Convirá não confundir o Stabat Mater de Alessandro Scarlatti com o que foi composto pelo seu filho Domenico (1685-1757), para a Cappella Giulia (ver Palestrina). Em contraste com a textura esparsa e o intimismo da obra de Alessandro, é uma obra densa e monumental, para dez vozes e baixo contínuo, como conviria à solenidade da Basílica de S. Pedro. Porém, contrariando o estilo então favorecido em Roma, Domenico não optou pela escrita em duplo coro, criando antes dez linhas vocais independentes.

O compositor não deixou muito mais obras no domínio sacro, pois em 1720 veio para Lisboa, ao serviço da corte de D. João V, tendo por principal função ensinar cravo à princesa Maria Bárbara, que acompanharia para Espanha quando esta se casou com o futuro Fernando VI – e durante o seu “período ibérico”, a sua produção centrou-se exclusivamente nas sonatas para cravo.

[Andamento final (“Quando Corpus Morietur”), por Les Cris de Paris, em instrumentos de época, com direcção de Geoffroy Jourdain, ao vivo]

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Pergolesi

Ano: 1736

A carreira de Giovanni Battista Pergolesi (1710-1736) foi tragicamente breve, mas duas obras bastaram para lhe assegurar a imortalidade: o intermezzo cómico La Serva Padrona (1733) e o Stabat Mater para duas vozes, cordas e baixo contínuo encomendado pela mesma confraria que, oito anos antes, encomendara o Stabat Mater de Alessandro Scarlatti. Pergolesi compô-lo quando, na fase final da tuberculose que o levaria poucas semanas depois, buscou refúgio no mosteiro franciscano em Pozzuoli, perto de Nápoles. Johann Sebastian Bach julgou a obra suficientemente válida para, por volta de 1745-47, a ter convertido numa cantata em alemão, Tilge, Höchster, Meine Sünden.

[I andamento (“Stabat Mater”), por Céline Scheen (soprano) e Damien Guillon (contratenor) e Le Banquet Céleste, em instrumentos de época]

Haydn

Ano: 1767

Antes da estreia, em 1799, da oratória A Criação, o Stabat Mater era a mais popular peça sacra de Joseph Haydn (1732-1809). A obra conforma-se ao estilo napolitano, chegando mesmo a reter alguns elementos do Stabat Mater de Pergolesi, que, entretanto, conquistara a Europa. Para se certificar da conformidade da obra ao estilo napolitano, Haydn submeteu a obra à apreciação do prestigiado compositor alemão Johann Adolf Hasse, que fizera parte da carreira em Itália e conhecia a fundo as tradições musicais italianas.

[I andamento (“Stabat Mater”), por Makoto Sakurada (tenor) e coro e orquestra Atalanta Fugiens, em instrumentos de época, dirigido por Vanni Moretto, ao vivo no Festival di Stresa, 2008; a peça começa a 1’15]

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Rossini

Ano: 1831-42

Rossini pusera abruptamente termo à sua estrondosa carreira operática após Guilherme Tell (1829) e, embora ainda não tivesse chegado aos 40 anos, estava como que “reformado”. Porém, em 1831, numa viagem por Espanha com um amigo, acedeu ao pedido do padre Fernández Varela, conselheiro de Estado, para compor um Stabat Mater. Problemas de saúde forçaram-no a deixar a obra a meio e a pedir a um colega, Giovanni Tadolini, que a completasse. Entregou a partitura a Varela (sem lhe revelar que nem tudo era de sua lavra), que fez executar a obra na Sexta-feira Santa de 1833, numa igreja de Madrid. A história teria ficado por aqui se, após a morte de Varela, a quem Rossini confiara o uso exclusivo da partitura na condição de não ser dada à estampa, os herdeiros do padre não tivessem tentado publicá-la a troco de 6000 francos. Rossini, alertado pelo seu editor, interveio de imediato, interditando a publicação da obra e revelando que nem tudo nela era de sua lavra; e interrompeu a sua reforma dourada para completar as partes que antes delegara em Tadolini. Foi esta segunda versão que estreou em 1842 em Paris, com eufórica aclamação, a que se seguiu uma tournée europeia de grande sucesso.

Este acolhimento caloroso dispensado ao Stabat Mater não decorreu de um particular ardor religioso dos ouvintes ou da excepcional profundidade da obra, mas de esta conter os ingredientes de exuberância vocal e certeiro sentido melódico que tinham feito a glória de Rossini enquanto compositor de ópera.

[IX andamento (Quartetto a sole voci “Quando Corpus Morietur”), por Anna Netrebko (soprano), Marianna Pizzolato (mezzo-soprano), Matthew Polenzani (tenor), Ildebrando D’Arcangelo (baixo) e Coro e Orquestra da Accademia Nazionale di Santa Cecilia, com direcção de Antonio Pappano]

Dvorák

Ano: 1877

Se o texto do Stabat Mater retrata a dor de uma mãe pela perda de um filho, nada impede que possa exprimir a dor de um pai perante perda análoga. Pode ver-se o Stabat Mater de Antonín Dvorák como um Stabat Pater ou o seu Kindertotenlieder (por analogia com as “Canções das Crianças Mortas”, de Mahler), já que Dvorák iniciou a composição da obra como reacção à morte, em Setembro de 1875, da sua filha Josefa, com dois dias de idade. Outros projectos solicitaram a sua atenção e o Stabat Mater foi posto de lado, até que a morte da sua filha Ruzena, de 11 meses, em Agosto de 1877, e do seu filho Otakar, de três anos e meio, menos de um mês depois, o fez regressar à partitura.

A obra estreou em Praga em 1880 e em poucos anos foi difundido pela Europa e América do Norte, tendo resultado numa multiplicação de convites e encomendas e culminando no reconhecimento internacional de Dvorák como um dos grandes compositores do seu tempo.

[III andamento (“Eja Mater, Fons Amoris”), pelo Collegium Vocale Gent e a Real Filarmónica Flamenga, com direcção de Philippe Herreweghe (Phi)]

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Poulenc

Ano: 1950

Um Stabat Mater pode também ser um Requiem – é o caso do de Francis Poulenc (1899-1963), que homenageou a memória do seu amigo Christian Bérard, falecido subitamente em 1949, com um Stabat Mater para soprano, coro e orquestra de grandes dimensões. Poulenc pensara primeiro num Requiem, mas afastara a ideia por achar o formato “demasiado pomposo”, mas à escolha não será alheio o facto de Bérard, um conhecido ilustrador de moda e cenógrafo, ser assumidamente homossexual e de Poulenc também o ser (embora menos abertamente). A obra é sóbria mas menos austera do que as anteriores obras sacras de Poulenc e representa um dos pontos mais altos da sua produção.

[Andamento VI (“Vidit Suum”), por Kathleen Battle (soprano) e o Coro & Orquestra Sinfónica de Boston, com direcção de Seiji Ozawa (Deutsche Grammophon)]

Pärt

Ano: 1985

É uma obra austera e hierática, destinada a soprano, alto e tenor e violino, viola e violoncelo e é uma das obras mais conhecidas do estónio Arvo Pärt (n.1935). Foi encomendada pela Fundação Alban Berg a fim de assinalar o centenário do nascimento do compositor. Existe também um versão para coro e orquestra, estreada em 2008.

[Excerto pelo coro Vox Humana e o ensemble de cordas Inter Arcus, direcção de Dag Jansson, ao vivo na igreja de Uranienborg, Oslo, Suécia]

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