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Alguma coisa estava demasiado certa. Enquanto os pais esperavam que as suas crianças terminassem as aulas de natação nas piscinas do Complexo Desportivo da Junta de Freguesia de Benfica, na coluna de som da cafetaria ia tocando MGMT. “Kids”. Damos por nós a bater o pé e a pensar na feliz coincidência. Depois, toca Arctic Monkey. Depois, Clash, Queens of The Stone Age, Cream. O quê que se passa aqui? A cafetaria, que sempre tinha sido um espaço anódino, sem história, como todas as suas congéneres, tinha reaberto e estavam pessoas novas lá dentro. Aproximámo-nos e Victor Hugo Sintra estava a explicar a alguém que a granola era feita por eles, como tudo o que ali se servia, aliás, dos pratos do dia às sandes e à pastelaria. Mais atrás, André Andrade – no pulso, uma pulseira da Bluey.
O quê que se passa aqui? Primeiro, passa-se que não há coincidências. O resto era preciso descobrir. As pistas iniciais estavam nas redes sociais e viríamos a confirmá-las mais tarde, em conversa com a dupla de cozinheiros: antes de se estabeleceram neste sítio improvável, a que deram o nome de Raio, passaram pelo Sea Me, o Rabo D’Pêxe, a Taberna do Calhau, a Isco, a Marquise ou o Mama Shelter. Não são estranhos ao serviço, nem gente preocupada em despachar clientes com o menor trabalho e a maior margem possíveis. As recomendações de amigos do bairro e vizinhos não tardaram e em menos de nada estávamos a almoçar nas mesas que costumavam servir de bancada aos pais a querer ter a miudagem debaixo de olho, na água, com uma vidraça pelo meio. O mobiliário é novo, tudo está mais limpo e arrumado – mas não deixa de ser um sítio insólito para uma boa refeição.
Basta uma trinca para acabar com qualquer desconfiança. Mal acaba aquele reflexo de fechar um olho e de emitir aquele som primitivo que significa "ai-que-bom", damos por nós a confirmar os números da conta (paga-se após o pedido). Menu prato (com sopa e água ou sumo, feito na casa): 8,90€. Menu tosta/sandes (com sopa e sumo ou água): 6,90€. Café (Delta Platina): 0,80€. Almoço para dois: 17,40€. O preço é de tasca, mas no Raio os pratos do dia estão um nível acima (dois, três?) em sofisticação. Podem ser moqueca de pescada, ervilhas com ovos escalfados, gnocchi de batata doce e arrabiata, moussaka, orzo e almôndegas de feijão, brandade de bacalhau, feijoada de cogumelos e farinheira, arroz de moelas, xerém de cogumelos, arroz de pato, caril japonês e noodles, croquetes de rabo de boi e arroz grego… A sopa? Pode ir do tradicional creme de legumes à ajoblanco espanhola, do creme de coentros à sopa de beterraba e ao gaspacho (normal ou, por exemplo, de couve roxa).

As sandes não ficam atrás. Muito pelo contrário. E começa logo pela base, o pão. A primeira pergunta que tínhamos planeada para André e Victor Hugo era exactamente essa: de onde vem o vosso pão? Mas eles anteciparam-se e foram adiantando a resposta quando ainda a estavam a preparar. Vem da Massa Mãe, na Estrada de Benfica, direcção Sete Rios. Faz uma grande – enorme – diferença. Dentro de duas fatias desse pão ímpar podemos encontrar bacon, alface e tomate seco (BLT); ovo com farinheira; beringela, sardinha e pickles; porco à portuguesa, coleslaw e cebola frita; couve-flor assada; frango, caril e maionese de alho; tuna melt; pulled pork e coleslaw; manteiga de alcaparras e mortadela; frango e feta; sardinha braseada, beringela e teryaki; ou hummus e legumes assados. Muda semanalmente.
É uma sorte a padaria artesanal de Paulo Martins estar tão perto, embora não o suficiente para encaixar no conceito do Raio, uma vez que já fica em São Domingos de Benfica. “Estamos a tentar que os nossos fornecedores sejam todos no raio de Benfica”, diz André Andrade. “Neste momento temos dois fornecedores que não são: a Delta e o pão, que vamos buscar, mas vamos buscar à pata – apanhamos o autocarro, vamos à Massa Mãe, e voltamos de autocarro.” O resto vem das imediações. “Alguns dos frescos, vamos buscar ali ao Sing, o senhor que tem uma loja ao pé de minha casa, ou então ali ao senhor Luís.” A maioria vem do Mercado de Benfica, a dez minutos a pé da piscina. “O Victor vai buscar 50% dos nossos frescos ao mercado, todas as manhãs, às sete, sete e meia”, continua. “Mesmo os materiais de limpeza, conseguimos safar-nos perfeitamente nestas drogarias.”

Antes de decidirem criar o Raio, André e Victor não eram amigos. Conheciam-se do meio, mas era só. No entanto, tinham pelo menos duas coisas em comum: uma era o ponto de partida, uma vez que começaram ambos sob a alçada do chef Filipe Rodrigues, que está hoje no Garum (Victor no Sea Me, André no Rabo D’Pêxe); e a outra era a vontade de mudar e ganhar qualidade de vida. E queriam fazê-lo com um projecto que veiculasse, ele próprio, essa ideia. Uma ideia que, apontando para uma forma mais saudável e sustentável de viver, em termos pessoais, fosse inevitavelmente política, propondo também uma forma de viver a cidade, em particular os pedaços de cidade que habitamos. Victor sublinha, por isso, a importância de terem “valores sociais e políticos muito, muito, muito parecidos”.

A proximidade é um elemento central. “Começámos a ver espaços há um ano”, recorda Victor. Ficar em Benfica sempre foi o objectivo. É onde moram. “Queríamos estar perto do local de trabalho, não queríamos andar em transportes”, continua. “É demasiado tempo que passamos no commute, de casa para o trabalho, do trabalho para casa”, acrescenta André. “Fomos vendo espacinhos, espacinhos, e um dia o André mandou-me isto. Para mim foi tão fora… O que senti foi: é tão fora que eu tenho de fazer isto. É tão diferente de tudo que tenho mesmo de tentar”, relata Victor, sublinhando que não queriam um “restaurante-restaurante”. “Dissemos os dois que não queríamos fazer mais jantares, não queríamos trabalhar mais à noite. Portanto, isto tem movimento durante o dia, é uma cafetaria, podemos fazer aqui coisas um bocado diferentes, e trazer todo o nosso know-how e experiência que tivemos em restaurantes para uma cena completamente inusitada.”

O facto de ser um espaço de concessão pública, em que a renda não atinge os valores exorbitantes que se vão pedindo por Lisboa, também ajudou. O complexo desportivo faz parte do edifício da Junta de Freguesia de Benfica, que durante mais de seis décadas foi sede do Sport Lisboa e Benfica e que é onde ficam também o ringue António Livramento e o auditório Carlos Paredes. “Nós pensávamos que o nosso target seria o pessoal daqui, porque nos falaram que passam por aqui 400 utilizadores das piscinas e dos ginásios. Mas esse não é nada o nosso target hoje em dia, são os almoços”, diz André. As pessoas vão de propósito ao complexo para almoçar. Sobretudo quem trabalha na Junta (“uma grande parte”), “outras pessoas vêm do Baldaya, outras vêm lá de cima [do Politécnico] e da residência”, explica Victor. Como chamaram a atenção destas pessoas? Antes de mais decidiram ter bom café e vendê-lo a um preço de café comum. Depois, os bolos, feitos por eles, nada produzido numa fábrica. “No primeiro mês, não tivemos pratos do dia. Foi um bocadinho a construir esta identidade. ‘Olha, tudo o que está aqui é feito por nós e bem escolhido.’ OK, os preços estão um bocadinho abaixo do que gostaríamos, mas era para as pessoas perceberem o que é que ia acontecer aqui.” A receptividade, continua Victor, foi “muito, muito positiva”.

O preço desempenha um papel importante, naturalmente. Como é que conseguem praticar valores tão baixos? “É uma luta. É uma luta constante. Quando fazemos um prato de bacalhau, sabemos que o resto da semana temos que fazer pratos muito mais baratos, coisas mais vegetarianas, mais controladas”, explica Victor. Mas essa é só uma parte do segredo, como revela André: “Também vamos buscar muito da nossa margem à técnica. Ou seja, conseguimos comprar produtos mais em bruto, que ficam mais baratos – o que numa cafetaria não é o normal, normalmente compram-se coisas de quinta gama e os bolos são feitos com aqueles sacos de farinha que é só juntar água e ovos e de repente tem-se um bolo de arroz. Nós fazemos tudo de raiz. Portanto, vamos buscar o nosso tempo e a nossa técnica, porque é aí que está a margenzinha que nos permite ter estes preços.”

A dupla percebeu que, se queria chegar às pessoas do bairro, num sítio escondido, teria de ser assim: boa comida a preços competitivos. E as pessoas aderiram. Costumam pedir mais aquilo que conseguem reconhecer, mas também já se aventuram em propostas menos óbvias. “Os pratos mais seguros são os que têm mais adesão, mas, por exemplo, houve um prato que o André fez, um quarto de couve-coração, grelhada com bechamel, bacon tostado e molho satay, uma receita super diferentona, que teve uma receptividade brutal”, conta Victor. “As pessoas não só pediram o prato como deram feedback: ‘Isto estava incrível, nunca comi nada assim’." André pega na palavra: “Pessoalmente, isso é das coisas que mais adoro fazer aqui. Fazer assim coisas muito diferentes e vir aquela senhora que não faz ideia do que é molho de soja e pedir okonomiyaki. Servi-la e depois ouvi-la dizer que nunca tinha provado e que gostou, essas são as minhas partes preferidas”. O que é para manter.
“Sinto de há alguns anos para cá que Benfica está a ferver”, remata Victor. “E eu quero fazer parte disto, quero contribuir para enaltecer o bairro de uma forma fixe, sem gentrificar e sem fazer uma coisa muito pretensiosa”. De segunda a sexta-feira, e ao sábado de manhã, contem com eles para esse trabalho – seja para almoçar, inclusive uma quiche ou uma salada, seja para o pequeno-almoço ou o lanche, com uma torrada ou uma tosta de pão artesanal, ou um bolinho caseiro, seja para conversar com um café à frente ao som das suas playlists imaculadas. A noite, o sábado à tarde e o domingo são para descanso. Como devem ser.
Raio. Avenida Gomes Pereira 17 (Benfica).
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