Notícias

No Turvo, o risco de Vasco Lello é o nosso lucro

A zona não é “óbvia”, mas tem “substância” e é onde Vasco Lello se sente em casa. No Bairro dos Actores, junto à subida para o coração do Alto do Pina, o chef aventurou-se finalmente num restaurante próprio, sem barreiras à criatividade.

Hugo Torres
Escrito por
Hugo Torres
Director-adjunto, Time Out Portugal
Turvo
Rita Chantre | Vasco Lello
Publicidade

Estava na hora. Depois da saída do Lota d’Ávila, Vasco Lello andou por aí. Entre pop-ups e consultorias, o chef ajudou a lançar a operação do Locke de Santa Joana, esteve na redefinição do Praia do Tamariz para o Estoril Sol, passou pelo Chefs On Fire e puxou a brasa à sua Trifana, a receita de bifana que, como diz o slogan do projecto, não é bi, é tri. “Foi um ano e meio, quase dois assim”, recorda. Mas andava de olho no espaço de um antigo restaurante tradicional, com muita história no Bairro dos Actores, um daqueles negócios de décadas que passam de pais para filhos, mas que havia fechado com a pandemia: o Viseu.

Durante algum tempo, ficou simplesmente devoluto. Mas Vasco Lello manteve-se vigilante. Quando a tabuleta à procura de novos ocupantes apareceu na montra, ligou para saber condições, montou um plano, arranjou sócios. Acontece que as estrelas nem sempre se alinham e a ideia foi-se arrastando. Por fim, o chef decidiu assumir o risco todo e lançar-se sozinho. Assim nasceu o Turvo, uma das portas que Abril abriu este ano na restauração lisboeta e uma nada óbvia, seja pela localização – numa rua em que a estrada acaba num beco e a pé se sobe para o coração do Alto do Pina –, seja pela cozinha propositadamente indefinida, de autor, “sem grandes barreiras à criatividade”. O nome também vem daí. 

“O que eu queria era algo com substância, mas que não fosse muito óbvio. O nome Turvo pode ter várias interpretações – e corro esse risco, de ser menos claro –, mas é um nome em que acredito, porque é o conceito em que também acredito”, explica Vasco Lello. “A ideia é as pessoas virem, serem bem tratadas, acima de tudo com muita substância, mas não ser assim muito óbvio [nos pratos], para que levem daqui mais do que a expectativa que trouxeram. É isso que quero proporcionar. Se calhar é um objectivo um bocado alto…”, diz. "Isto não é um fine dining, longe disso. Também não é um restaurante tradicional – logo aqui começa um bocadinho a ficar turvo. É um restaurante onde és recebido como num restaurante tradicional, bem recebido, em que nos lembramos das pessoas, e onde podes encontrar uma cozinha mais cuidada do que num restaurante tradicional.”

Turvo
Rita ChantreA sala do Turvo

A inspiração principal é a cozinha nacional – “receituário, produtos, técnicas portuguesas”, enumera o chef –, embora cruzando gastronomias e sabores de outras latitudes. “Estive tanto tempo à espera para ter o meu próprio restaurante que não quis que tivesse assim grandes barreiras à criatividade”, sublinha. Vasco Lello dá como exemplo, a esse propósito, uma das propostas na carta: tomate, mole, manjericão (9€). “É um prato de tomate português, mas com muitas variantes, com algumas técnicas portuguesas, o tempero, mas também outras de fora. Faço um molho que parece quase o mole mexicano, mas basicamente é um sabor de tomate muito concentrado e fumado, e é isso que depois vai potenciar o tomate fresco que está por cima.”

Dos quatro pratos que a Time Out provou no Turvo, num final de tarde quente, foi provavelmente o que mais sobressaiu. Talvez só equiparado pelo chicharro, cortado como se fosse sashimi, ligeiramente braseado, mergulhado num ajo blanco de textura vencedora e acompanhado por pickles de alperce (11€) – quando acabar o alperce será de uva. Os outros dois foram o atum, sriracha e rábano (5,50€/unidade), que vem servido na parte de cima de um pote de três barros feito pelo pai de um amigo do chef, professor na vizinha António Arroio; e o escabeche de perdiz (8€), um prato que acompanha Vasco Lello desde os tempos do Café Príncipe Real, no Memmo. O que igualmente não poderia faltar era o peixe e os mariscos frescos, matéria que trabalhou diariamente no Sea Me, antes do Lota.

Turvo
Rita ChantreTomate, mole, manjericão
Turvo
Rita ChantreChicharro, ajo blanco

O exercício para encontrar um prato preferido não passa disso mesmo no Turvo. Tudo o que veio para a mesa gerou aquele assentimento universal do corpo, aquela cabeça anuente a dizer que sim, senhor, muito bem. A carta é curta, nem sequer está dividida por entradas, principais, sobremesas. Nela constam ostras (2€/unidade), cabeça de xara (5€) ou croquete de pato (4€/unidade), que podem bem abrir a refeição; gamba curada em tosta de brioche (10€), berbigão beurre blanc, cebolinho (11€), pepino, caju, aneto (9€), ou chalotas assadas (7€) para continuar; dourada grelhada com tomatada de mexilhão e batata doce (22,50€), pica-pau (18€), ou cachaço de porco confitado com guisado de feijão maduro (16€), para algo mais substancial; e pudim d’ovos (5€) ou mousse de chocolate (5€) para fechar. Os pratos vão mudando, não todos, mas quase todas as semanas se trocam dois ou três.

O chef aponta para os 35€/40€ por pessoa para uma refeição confortável, admitindo porém a possibilidade de uma conta a metade desse valor para quem decidir ir ao Turvo petiscar umas entradas, beber um copo e seguir viagem. Os vinhos desempenham um papel importante na conta final, claro, e por aqui os preços por garrafa variam entre os 27€ e os 78€, uma vez que também nesse departamento Vasco Lello optou por aplicar a ideia de ser pouco previsível nas escolhas. A maioria das referências é portuguesa, mas há vinhos franceses ou austríacos na carta. “Tenho vinhos com menos intervenção do que os vinhos habituais, muitos deles não têm intervenção, são naturais, são vinificados”, nota. É possível pedi-los a copo (5€), e estão disponíveis cocktails (9€-12€) e cerveja Estrella Damm (2€-3€).

Turvo
Rita ChantreAtum, sriracha e rábano
Turvo
Rita ChantreEscabeche de perdiz

Tal como com a comida e com o vinho, o mantra do chef mantém-se quando a conversa passa para a localização do restaurante: pouco óbvio, muita substância. Estamos a cinco minutos a pé da Fonte Luminosa, no meio de um bairro residencial. Embora apenas ao dobrar da esquina do GAAT, o atelier e galeria de arte onde há uns anos a Time Out foi testar o palato, num dos jantares do MAU, está longe de ser um local de passagem. Cá fora, ouvem-se os pássaros, os postes estão enfeitados com bicicletas à espera dos respectivos donos e um jovem está sentado nas escadas que dão para a parte superior da rua, a ler um livro. O Verão pode bem estar a contribuir para este cenário, mas é difícil imaginá-lo agitado noutra alturas.

Como é que Vasco Lello veio cá parar? “Eu vinha cá almoçar [ao Viseu] com regularidade. A minha irmã vivia neste bairro e eu vinha aqui muitas vezes. Eu vivi no Intendente durante muitos anos, atrás da Casa Independente, e antes disso ao pé da Casa dos Bicos. E trabalhei muitos anos no Chiado e no Príncipe Real. Foram muitos anos de confusão e comecei a procurar alguma tranquilidade na vida”, diz. “Comecei a recuar na cidade, para as zonas com menos movimento, se calhar um bocadinho menos confusas para mim, e eu próprio vim morar para aqui”, conta o chef. O Viseu existiu durante cerca de 50 anos – e não desapareceu completamente. As portas de inox ficaram, o tubo do exaustor ocupa o sítio que já era dele, atrás do balcão, e até há antigos azulejos que sobreviveram na ombreira de uma porta. Talvez até o esquema das toalhas de mesa, uma de papel sobre uma de pano, seja um vestígio dessa história (embora agora seja branco sobre branco). O resto mudou.

Turvo
Rita ChantreO balcão do Turvo

Desde logo o balcão, em L, onde fica Vasco Lello com a cozinha aberta à sua direita e quatro lugares à sua frente. A sala senta 28 pessoas no total (mais 12 na esplanada), mas nesta nova vida há espaço entre as mesas, já não estamos naquele aperto de tasca, onde certamente não existiam candeeiros de pé nem haveria uma coluna a debitar Parcels (“Tieduprightnow” é óptima para imaginar o ambiente que se pretende). Onde uma estatueta de Santo António, protector dos comerciantes e presença assídua em estabelecimentos tradicionais, não teria a companhia de um velociraptor ameaçador sob um jarro de flores lilases.

Rua José Acúrcio das Neves, 18A (Alameda). 92 699 2406. Ter-Sáb 19.00-23.00

Últimas de Comer&Beber na Time Out

Sabia que Vítor Sobral abriu uma Carvoaria no Príncipe Real? O chef não ser trendy, só o homem da grelha. A Alcântara chegaram as pizzas ao estilo nova-iorquino – estão na Rico Pizza e podem ter vodka. Na Penha de França, sai um cafezim, um bolim e um pão de queijo recheado no Matuta. Estas e outras novidades à mesa estão na lista dos melhores novos restaurantes em Lisboa.

Últimas notícias
    Publicidade