Críticas de cinema

Os filmes que estão ou estiveram em cartaz, avaliados pelas críticas de cinema da Time Out

Publicidade

Críticas de cinema - 5 Estrelas

  • Filmes
  • Drama
  • 5/5 estrelas
  • Recomendado

Há duas figuras tutelares que presidem a A Mão de Deus (Netflix), o novo – e profunda e melancolicamente autobiográfico – filme de Paolo Sorrentino. Uma é Diego Armando Maradona, que em 1984 foi jogar para o Nápoles, concretizou uma espécie de milagre profano, deu à equipa napolitana os seus primeiros dois títulos e instalou na cidade um culto com o seu nome que dura até hoje. E foi, indirectamente, o responsável por Fabietto Schisa (Filippo Scotti, o alter ego de Sorrentino no filme) não ter tido o mesmo trágico destino dos pais, já que nesse dia o Nápoles jogava em casa e Fabietto não os acompanhou para a casa de campo onde morreram intoxicados por uma fuga de dióxido de carbono.

A outra é Federico Fellini, de quem os filmes de Paolo Sorrentino sempre mostraram influências, sobretudo no gosto pelo grotesco e pela excentricidade humana. Influências essas nunca mais fortes e presentes do que em A Mão de Deus, onde o mestre vai até Nápoles em busca de figurantes para a sua próxima realização e Marchino, o irmão mais velho de Fabietto, que quer ser actor, vai ao casting. Fabietto acompanha-o e fica na sala de espera, rodeado de candidatos, cada um mais bizarro do que o outro. E ao recordar a sua juventude napolitana neste filme, onde as boas recordações se combinam com uma dor imensa e inapagável, Sorrentino faz com que A Mão de Deus esteja para si como Amarcord está para Fellini – e termina a fita com um aceno a Os Inúteis.

Só a crónica familiar retroactiva e a evocação sorridente e lânguida da Nápoles dos anos 80 bastariam para fazer de A Mão de Deus um grande filme. Há as tias gordíssimas e faladoras, os tios extravagantes, a parente desbocada que até em dias de calor assassino não tira o casaco de peles que o filho lhe deu, a escultural e sensual tia Patrizia (Luiza Ranieri), a quem São Januário apareceu para a fazer fértil e lhe apalpou o rabo, o amigo piloto de lanchas que contrabandeia tabaco, a baronesa vizinha do andar de cima que acha tudo “uma piroseira”, Maria (Teresa Saponangelo), a mãe de Fabietto, que faz malabarismo com laranjas e gosta de pregar partidas, o pai Saverio (o indispensável Toni Servillo), bancário, que se recusa veementemente a comprar um comando para a televisão (“Sou comunista!”, justifica) e comunica com a mulher com um assobio cúmplice, a irmã Daniella que está sempre metida na casa de banho e só vemos mesmo no final do filme. E os planos aéreos da baía de Nápoles a brilhar ao sol, os barulhentos almoços estivais da família, a luz macia do fim de tarde a atravessar as oliveiras, os banhos de mar colectivos, a euforia compartilhada das vitórias do Nápoles.

Mas há ainda o solitário e insatisfeito Fabietto, ainda mais após o desaparecimento dos pais. Fabietto que só viu dois ou três filmes na vida mas decide ser cineasta e ir para Roma, para fugir a Nápoles, à solidão e a essa realidade que “não presta” e que o cinema ajuda a enganar, como o irmão Marchino ouviu Fellini dizer, e que se intrometeu da forma mais brutal possível na sua vida, partindo o coração e a espinha dorsal à família para sempre. Fabietto que terá uma iniciação sexual tão inesperada quanto carinhosa, e será cerradamente criticado nas suas intenções, mas também encorajado, por um dos mais destacados realizadores napolitanos, Antonio Capuano (Ciro Capano), o mentor de Paolo Sorrentino na vida real, que o ajudou a talhar o seu futuro. A homenagem aos pais que é A Mão de Deus desdobra-se, no segundo tempo do filme, em entrega a uma arte (o cinema) que servirá também como bálsamo da incomensurável dor sentida.

Serenamente afectuoso e pungente, pessoalíssimo e por isso sentido por Paolo Sorrentino como nenhum dos que fez antes, A Mão de Deus é um dos seus melhores filmes, juntamente com A Grande Beleza, e um dos grandes filmes deste ano. É um pecado que em Portugal não possa ser visto no cinema e esteja apenas acessível em streaming.

  • Filmes
  • Acção e aventura
  • 5/5 estrelas
  • Recomendado

Desviando-se de uma fórmula tão bem engomada quanto os smokings de James Bond, Sem Tempo para Morrer despede-se de Daniel Craig com tantas surpresas que é difícil saber por onde começar. Existem decisões narrativas sem precedentes e de grande magnitude; 007 relaciona-se não com uma, mas com várias mulheres como suas iguais; e, a certa altura, até faz panquecas para uma criança.

A melhor surpresa de todas, porém, é o quão bom este filme é. Muito atrasado, sobretudo devido a uma troca na cadeira do realizador (saiu Danny Boyle saiu pata entrar Cary Fukunaga), chega finalmente aos cinemas para nos lembrar do poder que o grande ecrã exerce sobre blockbusters bem urdidos. É também o Bond mais engraçado de sempre, com uma escrita vibrante (muito possivelmente devido às contribuições de Phoebe Waller-Bridge), concretizada com desenvoltura por Craig e companhia.

A reintrodução de James Bond na abertura do filme – que envolve a praça de uma cidade, o seu Aston Martin DB5 e metade de Spectre, enquanto Bond é puxado de um devaneio romântico com Madeleine Swann (Léa Seydoux) – é uma cena icónica que limpa as teias de aranha do franchise em dez minutos esmagadores. De elegante e enamorado, Craig rapidamente está de volta à forma como o conhecemos e amamos: ferido e maltratado, a ceder ao canto da sereia do dever, enquanto a CIA e o MI6 lutam por uma nano-arma perdida.

Fukunaga e o seu director de arte, Linus Sandgren (La La Land), encontram notas de elegância visual em todo o lado. Uma sequência numa quinta de Havana pode ser a coisa menos convencional de se ver num franchise que, não nos esqueçamos, já nos deu um submarino-crocodilo e Christopher Walken. Lá, Bond e Ana de Armas deambulam pelo que parece ser um sonho de David Lynch repleto de queijo, à procura de um cientista com acesso àquele MacGuffin todo-ameaçador da humanidade.

A reforçar o elenco de personagens femininas está Nomi, a agente 00 de Lashana Lynch, que partilha uma boa anti-química com Bond, no que parece um passo significativo para as duas personagens.

E o vilão? O Safin de Rami Malek puxa os seus cordelinhos quase sempre fora de cena, mas lá consegue o seu momento num terceiro acto que vai emocionar qualquer um que anseie pelos cenários massivos da era de Ken Adam e os sonhos megalómanos de Dr No.

Se uma duração de quase três horas faz soar alarmes, este Bond é um banquete surpreendentemente light. Ele voa de um local habilmente escolhido para outro (é favor adicionar Matera, no Sul da Itália, à sua bucket list), mas as cenas mais lentas e de desenvolvimento de personagens – o calcanhar de Aquiles de alguns dos Bonds mais recentes – vêem-se muito bem também.

Só a Moneypenny de Naomie Harris é que parece errada. Depois de uma introdução dinâmica como agente de campo em Skyfall, o franchise parece não saber o que fazer com ela, com a Nomi de Lynch a ocupar a lacuna que Harris poderia ter preenchido. Até mesmo o meme residente do MI6, Tanner (Rory Kinnear), parece ter tido mais com que trabalhar.

Outros resmungos centram-se numa batalha climática que permanece mais do que devia, e uma ou duas cenas de violência desnecessariamente chocantes. Mas por quaisquer métricas usadas para medir um filme de James Bond – trama rígida, vilões nojentos, sinceridade emocional – a apresentação final de Daniel Craig é um sucesso estrondoso. #CraigNotBond parece uma realidade muito distante, em todos os sentidos.

Publicidade
  • Filmes
  • Documentários
  • 5/5 estrelas
  • Recomendado

A corrupção é um tema recorrente no cinema romeno recente (recorde-se O Exame, de Cristian Mungiu), e em Colectiv–Um Caso de Corrupção, de Alexander Nanau, é o documentário a tratar dela, através da crónica da investigação feita pelo maior diário desportivo do país. Após um incêndio numa discoteca de Bucareste em 2015, a Colectiv do título, que causou muitos mortos e feridos, uma equipa de jornalistas da Gazeta Sporturilor foi procurar a razão da morte, nos meses seguintes, de vários dos feridos que estavam internados, descobrindo uma fraude com os desinfectantes usados nos hospitais do país, que por sua vez revelou uma sinistra rede de corrupção envolvendo médicos, enfermeiros, políticos, professores e mafiosos, e levou à queda do governo. Colectiv–Um Caso de Corrupção é um filme sobre o papel fundamental de uma comunicação social livre, independente e corajosa nas nossas sociedades.

  • Filmes
  • Documentários
  • 5/5 estrelas
  • Recomendado

A francesa Alice Guy-Blaché (1873-1968) não foi apenas a primeira mulher a realizar um filme, em 1896 (A Fada das Couves). Foi também a primeira a ser directora de produção de um estúdio (a Gaumont, em Paris), e a fundar e liderar uma produtora cinematográfica (a Solax, em Nova Jérsia, nos EUA, em 1910, juntamente com o marido, Herbert Blaché, e um sócio, George A. Magie, quando nem sequer se sonhava com cinema em Hollywood e a região de Nova Iorque era o coração da indústria das imagens em movimento na América).

Em França, Blaché foi secretária de Léon Gaumont, conheceu os irmãos Lumière e Georges Méliès, trabalhou com Louis Feuillade, realizou uma das primeiras superproduções, A Vida de Cristo, em 1906, e foi uma das pioneiras no uso do som sincronizado com a imagem no cinema. Nos EUA, à frente da Solax, o maior estúdio de cinema pré-Hollywood, dirigiu a actriz Lois Weber, que se tornaria na primeira realizadora americana (e que lhe “roubaria” o marido), assinou o primeiro filme com um elenco todo composto por actores negros (A Fool and his Money, 1912) e rodou com nomes como Ethel e Lionel Barrymore ou Alla Nazimova.

Entre aqueles que viram os seus filmes, a elogiaram e citaram como influência, constam Sergei Eisenstein e Alfred Hitchcock. Até fechar os seus estúdios e abandonar a realização, em 1920, Alice Guy-Blaché manivelou mais de mil filmes mudos, 22 dos quais de longa-metragem. Sobrevivem hoje cerca de 150. Durante algumas décadas, Blaché esteve esquecida, em especial em França, o seu país natal. Não era referida nos livros de cinema e os seus filmes eram atribuídos a outros. Até mesmo Henri Langlois, o lendário director da Cinemateca Francesa, parecia não ter conhecimento da sua existência e importância.

Blaché escreveu a autobiografia nos anos 40, mas ninguém a quis publicar, o que só aconteceu após a sua morte, em 1976. Ao longo da vida, sempre procurou corrigir a sua ausência dos livros de cinema e dos registos da indústria, e os erros sobre os seus dados biográficos e a atribuição da autoria dos filmes, bem como listá-los, saber onde se encontravam e chamar a si os direitos. Graças à filha e à nora, a alguns jornalistas e historiadores de cinema e ao trabalho das cinematecas, Alice Guy-Blaché não foi completamente esquecida. Muitos dos seus filmes foram conservados, encontrados e recuperados (vários deles podem agora ser vistos no YouTube). Fizeram-se documentários e livros sobre ela e o nome da realizadora acabou por ser reposto onde devia e merecia estar nos registos da história do cinema.

É num desses livros, Alice Guy-Blaché: Lost Visionary of the Cinema (2002), da investigadora Alison MacMahan, que Pamela B. Green se apoiou para fazer o documentário Be Natural – A História Nunca Contada de Alice Guy-Blaché, narrado por Jodie Foster. Recorrendo a entrevistas, depoimentos, documentos e imagens de arquivo, e também a recriações digitais, a autora não se limita a contar, com o maior detalhe e o máximo de informação, e de forma visualmente atractiva, entusiasmada e dinâmica, a história da vida cheiíssima e da impressionante carreira no cinema de Alice Guy-Blaché, e a destacar-lhe a personalidade, o pioneirismo e o talento – bem como a modéstia.

Além dos familiares, e dos jornalistas, historiadores e investigadores que sempre se interessaram por Blaché e pela sua obra, Pamela B. Green mostra ainda em Be Natural – A História Nunca Contada de Alice Guy-Blaché a importância dos coleccionadores, cinematecas e arquivos de cinema de todo o mundo, na preservação, busca e restauro dos seus filmes. É um verdadeiro trabalho detectivesco e genealógico, que a leva a vários países e a põe no encalço de parentes e descendentes de pessoas que conheceram a realizadora e trabalharam com ela na Gaumont ou na Solax, ou que se interessaram por ela e pela sua obra, e mesmo à detecção e identificação de filmes de Blaché.

Paralelamente, Green ainda arranja tempo para referir outras contemporâneas de Blaché que foram também pioneiras e nomes relevantes nos primórdios da Sétima Arte, recordar o peso e a presença das mulheres na indústria cinematográfica desse tempo, e os obstáculos que encontraram e enfrentaram, e mostrar como muitas delas caíram no quase total esquecimento. No título deste completíssimo, empolgado e empolgante documentário, está a frase “Be natural”. Ela constava numa placa que Alice Guy-Blaché mandou pôr bem visível nos estúdios Solax em Nova Jérsia, e que era um conselho aos actores dos seus filmes: sejam naturais e não artificiais ou afectados. E pelos filmes que chegaram até nós, podemos ver que foi seguido à letra.

Publicidade
  • Filmes
  • 5/5 estrelas
  • Recomendado

No dia 2 de Junho de 1962, na cidade industrial de Novocherkassk, na URSS, agentes do KGB dispararam sobre os operários que tinham entrado em greve e se manifestavam contra a falta de comida, a subida dos preços e os cortes nos salários, deixando mais de 25 pessoas mortas e quase 90 feridas. Andrei Konchalovsky reconstitui os acontecimentos de forma avassaladora, e do ponto de vista de Lyuda (Julia Vysotskaya, mulher do realizador), uma fiel militante e quadro do partido, cuja filha se manifestava e desapareceu na confusão, mostrando o colapso das suas convicções perante as implacáveis e brutais evidências do totalitarismo comunista. Em Caros Camaradas!, o instinto maternal triunfa sobre a convicção ideológica.

  • Filmes
  • 5/5 estrelas
  • Recomendado

O ciclo Joseph Losey, Cineasta Essencial acolhe, em cópia digital restaurada, esta adaptação sumptuosa e pastoral do livro de L.P. Hartley feita por Harold Pinter, que valeu a Losey a Palma de Ouro do Festival de Cannes de 1971. Alan Bates, Julie Christie, Edward Fox e Dominic Guard interpretam uma história de amor secreta entre um homem e uma mulher de classes sociais diferentes na Inglaterra rural de 1900, e mediada por um rapazinho que serve de correio entre ambos.

Publicidade
  • Filmes
  • 5/5 estrelas
  • Recomendado

Reposição, em cópia digital restaurada, no ciclo Rever Joseph Losey, Cineasta Essencial, deste filme de 1968, um drama psicológico mórbido com contornos de policial, e uma das realizações menos vistas de Losey. Elizabeth Taylor personifica uma prostituta de meia-idade que vive em Londres e um dia acolhe em sua casa uma desamparada rapariga órfã (Mia Farrow) que se parece com a filha que perdeu há muitos anos. Tudo parece correr bem entre as duas mulheres, até ao aparecimento do ameaçador padrasto da rapariga (Robert Mitchum), que vai perturbar a harmonia existente.

  • Filmes
  • Drama
  • 5/5 estrelas
  • Recomendado

As discussões sobre se Citizen Kane – O Mundo a Seus Pés é o melhor filme alguma vez feito vão durar para sempre. Mas o melhor filme sobre Citizen Kane – O Mundo a Seus Pés (e provavelmente sobre qualquer outro filme) é este. Definitivamente. O 11.º filme de David Fincher é uma pródiga carta de amor à velha Hollywood em toda a sua glória, cinismo e extravagância. É trabalhado com o tipo de elegância monocromática que implora para ser absorvida no grande ecrã – embora a televisão sirva perfeitamente por enquanto.

“Mank” é Herman J. Mankiewicz (Gary Oldman), o dramaturgo irreverente, encharcado em álcool e viciado no jogo a que Orson Welles (Tom Burke) recorre para o ajudar a escrever o guião de Citizen Kane – O Mundo a Seus Pés. Trata-se de um dos melhores escritores de Hollywood, um talentoso dramaturgo da Broadway aliciado pela promessa de muito dinheiro e pela possibilidade de desempenhar o papel de bobo sagrado numa corte de magnatas movidos pelo ego. Mas, para pormos as coisas educadamente, Mank é uma pedra no sapato de Tinseltown, e Oldman tira todo o partido de cada aparte espertalhão, de cada tirada arrogante e grandiloquente, num argumento que é rico em ambos.

Esse argumento é a conquista póstuma do pai de Fincher, Jack, cuja história estava a aguardar financiamento desde 1997. Ou talvez estivesse apenas à espera que aparecesse a Netflix, porque quando Welles se gaba a Mankiewicz de conseguir sempre a “edição final, tudo final” para Citizen Kane – O Mundo a Seus Pés, esse pedaço de diálogo conta a dobrar para Mank. Este opus de época, feito a preto e branco, sobre um argumentista relativamente desconhecido não é exactamente o que chamaríamos de uma proposta mainstream, e Fincher tem carta branca para usar todos os brinquedos e técnicas à sua disposição. Mas não é preciso ser um cinéfilo empedernido para o ver. Nem por sombras.

Mank apresenta o seu protagonista em 1940, a caminho da ruína: um acidente de carro deixa-o acamado, e Welles assegura-se de que a cama em questão esteja num remoto rancho da Califórnia, onde uma secretária britânica, Rita Alexander (Lily Collins, Emily in Paris), e uma fisioterapeuta alemã (Monika Gossmann) conseguem mantê-lo longe da bebida por tempo suficiente para cumprir o seu exigente prazo.

Um flashback faz-nos então retroceder uma década. Dá-nos a ver uma versão de Mank em plena actividade, alinhavando com os seus colegas novas ideias para filmes, no escritório do patrão da Paramount, David O Selznick, antes de passar para a órbita do fanfarrão Louis B Mayer, o manda-chuva da MGM (Arliss Howard interpreta-o carregando na malícia e na intimidação). Esta fase do filme é um quem-é-quem das mais altas figuras de Tinseltown que nunca cai na caricatura, uma enfermidade de que padecem outros filmes sobre a indústria do cinema. As estrelas surgem de forma tão densa e rápida que nem se sente particularmente a ausência de uma Joan Crawford aqui ou um Charlie Chaplin ali.

Mank está completamente comprometido com o seu estilo wellesiano, com fades teatrais no fim das cenas, eco nas misturas de som, uma banda sonora de Trent Reznor e Atticus Ross a pedir meças a Bernard Herrmann, e uma grande profundidade de campo. O director de fotografia, Erik Messerschmidt, emula o seu homólogo de Kane, Gregg Toland, capturando cada troca de olhar conspirativa e desdenhosa nos planos de fundo das cenas de festa sumptuosamente encenadas. Messerschmidt baseia-se na autenticidade da cinematografia daquele período, certificando-se de que o seu trabalho nunca se transforma num pastiche.

Há poucas coincidências quando está em causa Fincher, e o número de britânicos no elenco não será uma delas. O realizador persegue deliberadamente um estilo de época no que diz respeito à interpretação, e encontra-o em Collins, toda Vivien Leigh e Deborah Kerr. As cenas delicadas com Oldman são pontos altos e podem mesmo merecer-lhe o reconhecimento da Academia nos Óscares. A contenção também lá está, com a interpretação que Charles Dance faz de William Randolph Hearst, o magnata da imprensa que inspirou a personagem Charles Foster Kane. O “Cidadão Hearst” é uma besta completamente diferente do magnata ficcional: uma presença taciturna e vampiresca nas festas em que é ele próprio o anfitrião, num castelo semelhante a Xanadu. É numa dessas festas que Mank finalmente – e fatalmente – vai para fora de pé.

Nada falha. Burke é maravilhoso, como sempre, apesar de um nariz protético que, de perfil, o faz parecer tanto Sam, a Águia (dos Marretas) quanto Orson Welles. Tuppence Middleton é demasiado jovem para interpretar a mulher de Mankiewicz, Sara (um casal que na vida real é da mesma idade). Mas a actriz faz um excelente trabalho em diálogos que decorrem sobretudo por telefone, enquanto a vida do marido se transforma num furibundo caos. Amanda Seyfried está na melhor forma de sempre como Marion Davies, a amante de Hearst, alguém muito mais inteligente do que a personagem que terá inspirado em Citizen Kane – O Mundo a Seus Pés, Susan Alexander.

Inevitavelmente satisfatório é o show de Oldman. Seja em cenas que o têm preso à cama, seja rezingando espirituosamente com os anfitriões de mais um sarau decadente, ou distanciando-se das corrosivas alianças políticas de Hollywood, Oldman é magnético. Interpreta Mank como um patife adorável, com uma língua que o põe em apuros e uma caneta que o salva deles. A última vez que Oldman deu corpo a um alcoólico na década de 1940, ganhou um Óscar por isso. Não será surpreendente se isso voltar a acontecer.

Publicidade
  • Filmes
  • Drama
  • 5/5 estrelas
  • Recomendado

Para assinalar os 40 anos da estreia de Apocalypse Now, que ganhou então a Palma de Ouro do Festival de Cannes, Francis Ford Coppola apresenta uma nova versão do filme, que rapa 20 minutos à versão Redux, estreada em 2001 e que é a mais longa das existentes. Apocalypse Now: Final Cut foi restaurada do negativo original em 4K ec Dolby Atmos. Coppola pode esticar e encolher o filme à vontade. O filme será sempre uma experiência cinematográfica única e avassaladora sobre a guerra do Vietname, traduzida em termos de uma viagem irreal e alegórica ao mais fundo das forças primitivas que podem apoderar-se dos homens. E onde a selva é uma personagem tão fundamental como Willard, Kilgore ou Kurtz.

Por Eurico de Barros

  • Filmes
  • 5/5 estrelas
  • Recomendado

A segunda longa-metragem da Ovelha Choné e de todos os seus comparsas da quinta Mossy Bottom é parte paródia genial ao cinema de ficção científica pós-Guerra das Estrelas, parte comédia burlesca esfuziante, combinando a tradicional animação de volumes fotograma a fotograma que é marca criativa dos estúdios Aardman e efeitos digitais, sem que fique uma suspeita de costura a ver-se. Um simpático e jovem extraterrestre aterra o seu disco voador junto da quinta e Choné e companhia vão ajjudá-lo a voltar para casa e evitar que seja capturado pelo governo. É o filme de animação do ano, a comédia do ano, a aventura de ficção científica do ano e a produção de temática rural do ano. Simplesmente méééééééravilhoso.

Por Eurico de Barros

Publicidade
  • Filmes
  • Drama
  • 5/5 estrelas
  • Recomendado

O novo filme de Martin Scorsese, que em Portugal pode ser visto apenas na Netflix, é a longa despedida do realizador a uma geração extinta de mafiosos, e ao próprio género de gangsters tal como ele o definiu e celebrizou. Robert De Niro interpreta Frank Sheeran, o irlandês do título, que serviu a Máfia ao longo de várias décadas, foi muito próximo do desaparecido líder sindical Jimmy Hoffa, e já velho e doente, tendo sobrevivido a toda a gente, recorda esses tempos.

Em O Irlandês, o Scorsese de Tudo Bons Rapazes e Casino encontra o Scorsese de A Última Tentação de Cristo e Silêncio. A sobreexcitação visual e a violência espectacular são substituídos pela calma, pela compostura, pela melancolia, pelo peso do tempo, pela agonia moral e pelo sentimento de culpa. Também com Al Pacino num Hoffa espalha-brasas e Joe Pesci surpreendente num chefe mafioso todo ele ponderação, bom senso e discrição. Até quando manda matar alguém, é de forma reservada.

Por Eurico de Barros

  • Filmes
  • Drama
  • 5/5 estrelas
  • Recomendado

O sul-coreano Bong Joon-ho ganhou este ano o Festival de Cannes com este filme parte drama familiar de fundo social, parte comédia negra satírica, parte filme de terror "político", que põe em cena as tensões, idiossincrasias, desigualdades e fantasmas colectivos da Coreia do Sul. Uma família pobre que vive de pequenos trabalhos e esquemas consegue infiltrar-se na luxuosa casa de uma família rica e frívola, e tudo corre bem até a história dar uma reviravolta quebra-costas. Joon-hoo dá a esta história local uma ressonância universal, e passa em Parasitas uma visão pessimista da natureza humana.

Por Eurico de Barros

Publicidade
  • Filmes
  • Comédia
  • 5/5 estrelas
  • Recomendado

Hollywood, 1969. Leonardo DiCaprio é Rick Dalton, uma antiga vedeta da televisão que não consegue singrar no cinema, e Brad Pitt é Cliff Booth, o seu “duplo”, melhor amigo e fiel assistente, neste formidável novo filme de Quentin Tarantino. O realizador de Pulp Fiction e Jackie Brown conta uma história de amizade masculina sólida como betão, ao mesmo tempo que recria ao milímetro a Los Angeles de há 50 anos, onde viveu desde muito novo, exprime o seu amor pelo cinema, pela música pop, pela cultura consumista e pelos automóveis , e propõe um fim diferente para uma tragédia ocorrida em Agosto desse fatídico ano de 1969. Imperdível.

  • Filmes
  • Acção e aventura
  • 5/5 estrelas
  • Recomendado

Akira Kurosawa realizou em 1985 esta fita histórica, que adapta Rei Lear, de Shakespeare, para o Japão do tempo dos samurais. e que regressa agora aos cinemas em cópia restaurada em 4K. "Ran" significa, em japonês, caos, confusão, revolta. É precisamente isso que Kurosawa filma, com uma turbulência épica e uma superior mestria visual. Tal como já havia feito em 1957 em Trono de Sangue (inspirado por Macbeth), o autor de Os Sete Samurais volta aqui a combinar o teatro Nõ, a tragédia ocidental de matriz shakespeareana e a espectacularidade bélica do filme de samurais (ou Jidaigeki), que ele cultivou como nenhum outro. É a reposição do ano.

Por Eurico de Barros

Publicidade
  • Filmes
  • Animação
  • 5/5 estrelas
  • Recomendado

Realizado em estreia por Josh Cooley e escrito pelo grande Andrew Stanton, Toy Story 4 é o melhor filme da série da Pixar sobre os brinquedos vivos liderados pelo cowboy Woody,  e aquele em que é atingida uma intensidade emocional e uma vibração existencial que envergonham o cinema de imagem real. Interessamo-nos, preocupamo-nos, sofremos e vibramos por um conjunto de brinquedos criados por computador como se fossem pessoas verdadeiras. A nova personagem mais importante desta parte 4 é Garfy, um garfo de plástico descartável transformado em brinquedo pela pequena Bonnie, e a intriga, que decorre durante uma viagem de férias da família desta, casa superiormente drama e comédia, até um final tão surpreendente como comovente. A qualidade da animação é assombrosa e as interpretações vocais fabulosas. Um dos melhores filmes do ano.

Por Eurico de Barros

  • Filmes
  • Suspense
  • 5/5 estrelas
  • Recomendado

Antonioni e Patricia Highsmith são dois dos nomes que podem vir à baila a propósito de Em Chamas, do sul-coreano Lee Chang-Dong, que se inspira num conto de Haruki Murakami, por sua vez inspirado por um outro de William Faulkner. É um filme enigmático, difuso e sinuoso que assenta num trio de personagens, uma das quais desaparece a certa altura, e que pode ser visto como um thriller movediço e ambíguo, com tempero de mal-estar existencial e de disfunções emocionais, mas também como uma história por onde passam vários dos problemas da Coreia do Sul de hoje e de uma nova geração de coreanos. E que bem filma Chang-dong, como se pode ver pela sequência em que a personagem feminina dança seminua ao ar livre, ao som de Miles Davis, enquanto a luz do dia vai desaparecendo. É um grande momento de cinema puro, que levamos connosco, tal como o final magnificamente desvairado, quando há, enfim, chamas. E muito sangue.

Por Eurico de Barros

Publicidade
  • Filmes
  • Animação
  • 5/5 estrelas
  • Recomendado

Mais uma delicadíssima, sumptuosa e divertida longa-metragem animada do japonês Mamoru Hosoda, que combina animação tradicional e efeitos digitais sem que se veja uma costura. Esta história de Kun, um menino de quatro anos que fica cheio de ciúmes e de raiva da irmã recém-nascida, anda para a frente e para trás no tempo, e ensina ao pequeno protagonista o significado e a importância que têm a memória e a continuidade familiar.

Por Eurico de Barros

  • Filmes
  • Drama
  • 5/5 estrelas
  • Recomendado
A Pereira Brava
A Pereira Brava

O turco Nuri Bilge Ceylan filma uma história de frustração pessoal e de conflito entre um pai e um filho, numa vila da Anatólia, com o seu notável talento visual. A Pereira Brava é mais verboso do que o habitual em Ceylan, mas isso não afecta absolutamente nada este admirável filme, que tem mais de três horas mas nunca exaspera nem pesa no espectador.

Por Eurico de Barros

Publicidade
  • Filmes
  • Drama
  • 5/5 estrelas
  • Recomendado

Clint Eastwood realiza e interpreta Correio de Droga, baseado numa história real que deu uma grande reportagem no The New York Times: a de Earl Stone, um veterano da II Guerra Mundial que aos 90 anos se tornou no mais valioso correio de droga de um cartel mexicano. Eastwood transforma o enredo em mais uma das suas meditações sobre a velhice e a perplexidade perante o mundo contemporâneo. Vendo o seu negócio de cultivo de orquídeas falido por causa da internet e despejado de sua casa, Earl começa a transportar droga na sua carrinha para poder ter dinheiro e tentar reconciliar-se com a família, que cortou com ele por causa da sua dedicação obsessiva às flores, até perceber a enormidade daquilo em que se meteu e ter um rebate de consciência. É um filme moral mas não moralista. A realização é notavelmente fluida, prática e eloquente, e sem o menor elemento supérfluo, e no papel de Stone, Clint Eastwood tira todo o partido da sua cara enrugada e da sua voz de gravilha para transmitir simpatia e afabilidade, indignação e desprezo, mas também arrependimento. A cena que tem com Dianne Wiest, que interpreta a sua ex-mulher, no leito de morte desta, está entre as mais comoventes de todos os filmes que fez.

Por Eurico de Barros

  • Filmes
  • Drama
  • 5/5 estrelas
  • Recomendado

Robert Redford encerra a sua carreira de actor no cinema em grande estilo, com uma última e inesquecível interpretação. Neste filme de David Lowery baseado em factos reais e passado no início dos anos 80, ele é Forrest Tucker, um assaltante de bancos septuagenário e cavalheiresco. Redford interpreta-o usando toda a memória do seu passado cinematográfico, e com a economia
de gestos, palavras, expressões, comportamentos e emoções de um actor que já não tem nada a aprender, exibir ou provar. Todo
o filme, e todo o restante elenco, uma feliz e homogénea mistura de veteranos como Redford (Sissy Spacek, Danny Glover, Tom Waits, Keith Carradine) e de gente mais nova (Casey Affleck,
Tika Sumpter, Elizabeth Moss), partilham dessa parcimónia eloquente e dessa atitude pausada, sem pressas, de Tucker. Não há neste filme o mais leve vestígio da lufa-lufa que afecta o cinema americano de hoje. O Cavalheiro com Arma é o imenso adeus de uma das últimas lendas vivas do cinema.

Por Eurico de Barros

Publicidade
  • Filmes
  • Suspense
  • 5/5 estrelas
  • Recomendado

Justin Benson e Aaron Moorhead realizam e interpretam este filme indie de terror cósmico com fumos de ficção científica (Benson também assina o argumento) feito sob a sombra tutelar de Lovecraft. É a história de dois irmãos que regressam à seita ufológica e milenarista a que pertenceram quando eram jovens, depois de receberem uma estranha mensagem. Os autores não têm orçamento para grandes efeitos especiais, por isso tudo depende aqui (e muito bem) da sugestão, da alusão, dos sinais inquietantes ou insólitos ou do jogo com a nossa percepção do real, para a criação de um clima de terror crescente e de catástrofe iminente com origens sobrenaturais. O Interminável tem tudo para se tornar num filme de culto e é uma das grandes surpresas deste ano cinematográfico.

Por Eurico de Barros

  • Filmes
  • Drama
  • 5/5 estrelas
  • Recomendado

Com mais de cinco horas de duração, e estreado em partes, este filme do japonês Ryusuke Hamaguchi é um monumento de naturalismo e de verismo emocional e psicológico. Delicado e esmagador.

Por Eurico de Barros

Publicidade
  • Filmes
  • Drama
  • 5/5 estrelas
  • Recomendado

Vencedor do Prémio de Realização do Festival de Cannes, o polaco Pawel Pawlikowski (Ida, Óscar de Melhor Filme Estrangeiro), conta aqui uma história de
amor agitada, acidentada e ziguezaguante entre um homem e uma mulher (a fabulosa Joanna Kulig e Tomasz Kot), vivida do pós-guerra aos anos 60, entre o Leste totalitário e a Europa livre. Inspirando-se na história dos seus próprios país, Pawlikowski filma esta tragédia de um amor ardente em tempos de rigorosa invernia ideológica em apenas 88 minutos, recorrendo a uma banda sonora mesclada de música folclórica polaca, jazz e rock dos inícios, e com uma economia narrativa que só realça ainda mais a alta temperatura das emoções em jogo. Um dos melhores filmes do ano.

Por Eurico de Barros

  • Filmes
  • 5/5 estrelas
  • Recomendado
The Incredibles 2 - Os Super-Heróis
The Incredibles 2 - Os Super-Heróis

No segundo filme animado da superfamília Parr, de novo realizado por Brad Bird, há novidades sobre os papéis domésticos do Sr. Incrível e da Mulher-Elástica, bem como sobre os superpoderes do bebé Jack-Jack, de que o realizador aproveita para tirar o máximo rendimento cómico. Em tudo o resto, e felizmente, Bird mantém as qualidades técnicas, estéticas, visuais, narrativas e humorísticas que fizeram do original (datado de 2004) uma das expressões mais altas da animação por computador da Pixar, evitando ainda 
a tentação de emular, ao seu nível e neste universo específico, os detestáveis filmes de super-heróis da Marvel e da DC. Que, e a propósito, The Incredibles 2: Os Super-Heróis bate em toda a linha.

Por Eurico de Barros

Publicidade
  • Filmes
  • Comédia
  • 5/5 estrelas
  • Recomendado

Armando Iannucci, criador de séries de sátira política como The Thick of It e Veep, flagela de riso (muito, muito negro) o horror totalitário em A Morte de Estaline. Baseado numa BD francesa. Com Michael Palin, Steve Buscemi e Simon Russell Beale.

Por Eurico de Barros

  • Filmes
  • Terror
  • 5/5 estrelas
  • Recomendado

Um grande, grande filme de terror sobrenatural do sul-coreano Na Hong-jin, e o primeiro dos três deste realizador a estrear-se em Portugal. O Lamento vai ficar para a posteridade como a resposta asiática a O Exorcista, de William Friedkin. É uma história de possessão demoníaca – não de uma pessoa, mas de vários habitantes de uma vila do interior da Coreia do Sul –, investigada por um polícia trapalhão cuja filha foi atingida, e em que Hong-jin afeiçoa o horror às características culturais e religiosas da sociedade em que vive.

Por Eurico de Barros

Publicidade
  • Filmes
  • Suspense
  • 5/5 estrelas
  • Recomendado
15:17 Destino Paris
15:17 Destino Paris

Aos elaboradíssimos filmes de super-heróis, Clint Eastwood responde com um filme simplex até mais não, sobre heróis inesperados e arrancados ao quotidiano banal: os três amigos americanos, dois deles militares de licença, que estavam de férias na Europa e no dia 21 de Agosto de 2015 impediram um atentado terrorista no comboio Thalys de alta velocidade que ligava Amesterdão a Paris. Eastwood põe os três a interpretarem-se a eles próprios, reconstrói as suas vidas desde a infância, quando
se conheceram na escola, e
filma no limite do minimalismo eloquente e da síntese expressiva, dando uma lição de cinema à maneira dos clássicos.

Por Eurico de Barros

  • Filmes
  • Drama
  • 5/5 estrelas
  • Recomendado

Um filme brilhante sobre perfeccionismo obsessivo, amor perseverante e luta pelo poder num microcosmo familiar, comercial e criativo (uma casa de moda de luxo na Londres dos anos 50), rodado por Paul Thomas Anderson com uma elegância, um rigor e um saber cinematográfico clássicos. Daniel Day-Lewis tem aqui o seu derradeiro papel, o excêntrico, mimado, exigente e genial costureiro Reynolds Woodcock, interpretado com a mesma fixação pela excelência no seu ofício que move a personagem que incarna. Vicky Krieps faz a sua nova e determinada amante, modelo e empregada, e Lesley Manville é Cyril, a austera irmã solteirona daquele.

Por Eurico de Barros

Publicidade
  • Filmes
  • 5/5 estrelas
  • Recomendado

Thierry Frémaux, Delegado-Geral do Festival de Cannes e director do Instituy Lumière de Lyon, compilou e comentou aqui 108 filmezinhos de Louis e Auguste Lumière, e dos operadores da sua invenção, o cinematógrafo, feitos em França e em várias paragens do globo, de 1895 a 1905. Entre a realidade captada espontaneamente ou encenada, e os filmes humorísticos ou feitos em família, Lumière! é um testemunho preciosíssimo, tocante, variado e divertido de uma era desaparecida, e de como o cinema abriu os olhos para o mundo e começou de imediato a registá-lo em toda a sua multiplicidade.

Por Eurico de Barros

  • Filmes
  • Drama
  • 5/5 estrelas
  • Recomendado
Paterson
Paterson

Uma comédia de Jim Jarmusch finamente encantadora e poética, quotidiana e excêntrica, o triunfo do espírito keep it simple. Paterson, com Adam Driver e Golshifteh Farahani, pode muito bem ser o melhor filme de sempre sobre condutores de autocarros de New Jersey que escrevem poesia, casados com iranianas que adoram pintar círculos em tudo e querem ser cantoras de country & western. Para já, é um dos melhores filmes do ano.

Por Eurico de Barros

Publicidade
  • Filmes
  • 5/5 estrelas
  • Recomendado

Entre a fé e o esforço, 11 mulheres vêm em peregrinação a pé de Vinhais, em Trás-os-Montes, até Fátima (400 duros quilómetros),
no novo filme de João Canijo. O realizador está menos interessado em questionar o fenómeno de Fátima e as suas circunstâncias, do que em mostrar os efeitos físicos, emocionais e psicológicos que uma jornada deste tipo tem sobre um grupo de mulheres que se conhecem bem, vêm do mesmo sítio e têm as mesmas origens sociais. E Canijo consegue-o com um sentido de encenação do real único no cinema português.

Por Eurico de Barros

  • Filmes
  • Drama
  • 5/5 estrelas
  • Recomendado
Mulheres do Século XX
Mulheres do Século XX
Cruzamento de cinco pessoas numa nesga de tempo em que tentam aprender a navegar num oceano existencial que parece demasiado vasto. Uma nesga de um tempo analógico, com punk, feminismo, humor e um presidente decente (Jimmy Carter). Nada começa nem acaba no que aqui se vê, entregue por um elenco exemplar. Uma obra extraordinária, luminosa, para ver em loop.

Por Jorge Lopes
Publicidade
  • Filmes
  • 5/5 estrelas
  • Recomendado
O novo filme de Mel Gibson é a história, verdadeira, de um objector de consciência que se recusou a pegar em armas na II Guerra Mundial e mesmo assim foi um dos seus heróis. É também, até ver, o melhor filme de 2016.

Por Nuno Henrique Luz
  • Filmes
  • 5/5 estrelas
  • Recomendado
O filme de João Pedro Rodrigues é a história de Fernando (Paul Hamy), um estudioso de pássaros, que depois de um acidente de barco no Douro se perde no mato e vive uma aventura excêntrica. O Ornitólogo mostra que se um realizador é capaz de pensar e depois sabe rodear-se das pessoas certas encontrará sempre as imagens para fazer passar o que quer dizer, e em grande estilo.

Por Nuno Henrique Luz

Críticas de cinema - 4 Estrelas

  • Filmes
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

Basta olharmos para Rahim (Amir Jadidi), o protagonista de Um Herói, do iraniano Asghar Farhadi (Uma Separação, O Passado), para percebermos que é um pobre diabo, de ar cabisbaixo, modos reticentes e sorriso simpático mas a sugerir fraqueza. Ele vive na cidade de Shiraz e acabou de sair da cadeia com autorização para estar ausente por dois dias. Calígrafo e pintor de letreiros, tentou abrir um negócio do ramo com um sócio, que depois fugiu com todo o dinheiro. Falido, Rahim, que está divorciado da mulher e tem um filho com problemas de fala que vive com a irmã dele e o cunhado, pediu dinheiro emprestado ao irmão da ex-mulher para montar o negócio. E como não lhe conseguiu pagar, este fez queixa dele e o desgraçado foi parar à cadeia, onde é um preso modelar.

Rahim tem uma namorada, Farkhondeh (Sahar Goldust), a terapeuta da fala do filho. Esta achou na rua uma mala de senhora com moedas em ouro, que deu a Rahim para ele vender e angariar dinheiro para pagar parte da dívida. Mas a cotação do ouro está em baixa e Rahim decide procurar a dona da mala e devolver-lhe o ouro, fazendo de conta que foi ele que a encontrou, e não Farkhondeh, porque não quer que ninguém saiba da relação, nem sequer os familiares mais próximos.

Só que este acto de honestidade resignada, de probidade hipócrita, vai chegar aos ouvidos dos directores da cadeia. E em pouco tempo Rahim vê-se entrevistado pela televisão e com a fotografia nos jornais, apresentado à sociedade como um modelo de honestidade e decência (“Prisioneiro devolve mala com ouro”, lê-se numa manchete), aplaudido pelos vizinhos e pelos outros presos, e objecto de uma recolha de fundos por parte de uma associação que ajuda prisioneiros e condenados à morte, resgatando-os com dinheiro às autoridades. Da noite para o dia, passa de presidiário anónimo e carregado de dívidas a herói dos media e das redes sociais, e o seu credor a vilão de piquete.

Contar o resto da história é estragar o filme a quem o irá ver. Mas podemos dizer que, em Um Herói, Asghar Farhadi volta ao seu tema favorito: os pequenos erros cometidos por pessoas comuns, que vão desencadear e adensar o drama, selar o destino do protagonista e lançar estilhaços sobre todos aqueles que o rodeiam, quer lhe queiram bem, quer lhe queiram mal. E em Um Herói Rahim não pára de cometer pequenos erros, o que não convém nada a um herói popular. Sobretudo na era do Twitter, do Facebook e dos vídeos virais, e por mais que ele procure justificar-se, salvar a face, manter um mínimo de dignidade e evitar que o próprio filho seja precipitado na espiral de passos em falso, manipulação em série, falsas aparências e dilemas morais que se criou.

Paralelamente à história do protagonista, Farhadi vai-nos mostrando relances da vida e das particularidades da sociedade iraniana contemporânea, onde as pessoas podem ir para a cadeia por dívidas, como na Inglaterra vitoriana, mas toda a gente tem iPhones e televisores de plasma como nos países ocidentais. Além de nos alertar para a crónica imperfeição do ser humano e do mundo, que longe de ser a preto e branco é feito de matizes de cinzento (veja-se como o realizador vai, progressivamente, mudando a imagem que fizemos à primeira vista do credor), Farhadi diz-nos ainda que Rahim não está sozinho nos seus erros.

Porque os directores da prisão também querem, através dele, dar uma boa imagem da gestão do estabelecimento, e escamotear os suicídios que ali acontecem; a associação da ajuda aos presos, fazer exibicionismo do seu trabalho; e os cidadãos comuns sentir-se virtuosos ao comoverem-se com o belo gesto do preso e contribuir com dinheiro para aliviar a sua dívida e tirá-lo da cadeia, enquanto vertem gordas lágrimas perante o menino que consegue elogiar o pai e apelar em seu favor, apesar da sua gaguez.

Vencedor do Grande Prémio em Cannes e candidato ao Óscar de Melhor Filme Internacional, Um Herói é filmado por Asghar Farhadi com um enorme sentido da vida tal como ela é vivida, um naturalismo nunca árido e tão atento aos pequenos pormenores humanos como do quotidiano, e um controlo narrativo que não admite o mais pequeno deslize de verosimilhança, ritmo ou sentimental. E os resultados dos longos e detalhados ensaios a que se dedica com os intérpretes antes de começar a filmar, são bem visíveis num elenco em que, dos actores principais aos papéis mais secundários e às crianças, todos sabem perfeitamente o que fazer e formam parte integrante e fundamental desse grande e minucioso verismo aturadamente procurado pelo realizador.

No final, apenas resta a Rahim o amor da namorada e do filho. E apesar de Farhadi o fazer pagar as consequências das suas más escolhas, também nos diz que é preciso dar- -lhe algum desconto. Porque um mundo onde não há lugar para a compreensão dos erros alheios, é um mundo cada vez mais cruel e falho de humanidade.

  • Filmes
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

Hiroo Onoda, um tenente dos serviços secretos do exército nipónico, foi o penúltimo soldado japonês da II Guerra Mundial a render-se, 29 anos após o fim do conflito, tendo passado todo esse tempo escondido nas selvas da ilha filipina de Lubang, convencido de que o conflito ainda continuava. O francês Arthur Harari recria aqui a história deste homem que, longe de ser um louco ou traumatizado pela guerra, surge como um militar que assume, inflexivelmente e até às últimas consequências, o seu dever de continuar vivo e a lutar pelo seu país e pelo imperador. Começando como um filme de guerra convencional, Onoda, 10.000 Noites na Selva, vai assumindo pouco a pouco uma dimensão fantasmagórica e de absurdo beckettiano, sublinhada pela atmosfera da selva cerrada. Sem fazer juízos de valor, Harari transmite-nos as razões do comportamento de Onoda (interpretado na juventude por Yuya Endo e na idade adulta por Kanji Tsuda), os seus valores e a sua psicologia, sem pedir que adiramos a elas, mas pedindo que procuremos entendê-las.

Publicidade
  • Filmes
  • Drama
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

Quem for ver Belfast, de Kenneth Branagh, pensando que trata da violência sectária entre católicos e protestantes na Irlanda do Norte nos anos 60 e 70, mais vale pedir o dinheiro do bilhete de volta. Passado em 1969 na cidade do título, em que Branagh nasceu e viveu parte da infância, o filme é feito de recordações do realizador e a contextualização político-social é só a estritamente necessária para nos situar. Belfast é um filme sobre a família e a sua força e importância, em tempos de paz como de conflito. No caso, a família do pequeno Buddy (Jude Hill), protestante e em minoria no bairro católico em que vive, e que antes do eclodir da violência é pintado por Branagh como um modelo de boa convivência.

Buddy vive com o irmão mais velho, Will (Lewis McAskie), a mãe (Caitriona Balfe) e o pai (Jamie Dornan), operário que passa grande parte do tempo a trabalhar em Inglaterra. Há ainda o avô (Ciaran Hinds) e a avó (Judi Dench), dos quais é muito próximo, e os tios e a prima, que moram mesmo ao lado. A família tem problemas de dinheiro, deve grandes somas ao fisco e o pai joga nos cavalos de vez em quando. O filme é rodado a preto e branco (cliché da representação cinematográfica das recordações do passado, que Kenneth Branagh atenua sempre que eles vão ao cinema, mostrando os filmes a cores) e visto do ponto de vista de Buddy, todo filtrado pela percepção do menino, o que, naturalmente, condiciona o impacto dos acontecimentos e a sua importância numa escala maior.

O que importa aqui é que, para Buddy, o início dos conflitos entre católicos e protestantes, e a intervenção dos militares ingleses, significa o fim da harmonia que reinava no modesto bairro, pode pôr o seu pai, um homem de bom senso, moderado e avesso à violência, numa posição delicada perante os protestantes mais fanáticos, e, pior que tudo, obrigar a família a mudar-se para Inglaterra. E assim fazê-lo deixar para trás o seu pequeno mundo: a casa, a rua, o bairro, a escola, a colega de turma de longos cabelos loiros de quem gosta, o avô e a avó, os tios e a prima mais velha, a qual ajuda um dia a roubar chocolates de uma mercearia, acabando por ficar com um pacote de Delícias Turcas de que ninguém gosta (por falar em roubos, numa das melhores sequências do filme, a mãe de Buddy obriga-o a ir repor o pacote de detergente para a roupa que ele tirou durante o saque do supermercado católico do bairro, enquanto este ainda está a decorrer!).

Apesar de todas as coisas complicadas, violentas e tristes que acontecem a Buddy e à sua volta, bem como aos familiares, Belfast mantém-se, do princípio ao fim, um filme de uma enorme doçura, que por vezes ameaça perigosamente caramelizar no mais descarado sentimentalismo, com uma ajudinha da banda sonora de Van Morrison. Uma armadilha que Branagh consegue evitar graças ao impressionismo telegráfico da realização (menos os planos gerais feitos a partir de drones, que agora parecem obrigatórios...), à sinceridade emocional que atravessa o filme, a um elenco em que cada personagem é interpretada exactamente pelo actor que ela pedia (o cinema não teve nos últimos tempos um avô e uma avó tão carismaticamente singelos e afectuosos como os de Ciarán Hinds e Judi Dench), à naturalidade e espontaneidade de Jude Hill, e ao subtil sentido da época na evocação do microcosmo do bairro, e que abrange mesmo os brinquedos de Buddy (ver a farda completa de membro dos Thunderbirds que ele recebe no Natal).

Branagh embute ainda no filme, através do destino da família de Buddy, um elogio da capacidade de resistência e superação dos compatriotas irlandeses, o que lhe confere um optimismo cada vez mais raro no cinema nos dias que correm. Com Belfast, Kenneth Branagh consegue limpar-se – se bem que não totalmente – de alguns dos horrores que assinou recentemente, como é o caso de Jack Ryan: Agente Sombra, Artemis Fowl e em especial do hediondo Morte no Nilo, em que atenta miseravelmente contra a memória de Agatha Christie e a integridade de Hercule Poirot. Que os seus próximos filmes sejam mais como Belfast, e não como estes, são os meus mais sinceros e fervorosos desejos.

  • Filmes
  • Drama
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

Assentar na vida. É tudo o que quer Julie, prestes a entrar na casa dos 30, e heroína de A Pior Pessoa do Mundo. Este é o último filme da chamada Trilogia de Oslo, do norueguês Joachim Trier, escrito com Eskil Vogt, seu habitual colaborador e velho amigo – e à qual pertencem também Reprise, de 2006 (dois jovens amigos, ambos escritores, tentam perceber o que o futuro lhes reserva, ao mesmo tempo que começam a levar encontrões da vida), e Oslo, 31 de Agosto, de 2011, baseado em Le Feu Follet, de Drieu La Rochelle (um toxicodependente em tratamento aproveita um dia livre para reencontrar amigos em Oslo, percebe que o futuro não lhe reserva nada e decide matar-se).

Ao que parece, Trier só se deu conta de que estes filmes formavam uma trilogia, pelos temas, personagens e por se passarem todos em Oslo, quando um dos actores lhe chamou a atenção para o facto após ler o argumento de A Pior Pessoa do Mundo. Pouco importa se isto é verdade e se houve intenção consciente de fazer um trio de filmes interligados. Mas parece inegável que em todos eles Joachim Trier dá voz, rostos e representação à geração dos chamados millennials, às suas ambições, dúvidas, ansiedades e desejos de estabilidade social, sentimental e profissional, num mundo em que a pressão e os estímulos para o fazerem não pára de aumentar, e onde a sensação de que o tempo está a correr contra eles é cada vez mais intensa (como disse recentemente um economista: “Já não são os fortes que comem os fracos, são os rápidos que comem os lentos”).

A Pior Pessoa do Mundo é um retrato em 12 tempos, e ao longo de quatro anos, de Julie (Renate Reinsve, Prémio de Interpretação Feminina em Cannes), uma verdadeira salta-pocinhas em termos de vocações, empregos, projectos de vida e amores, e cada vez mais angustiada por ir passar a barreira dos 30 anos sem ter arrumado a vidinha e acalmado os sentimentos, conseguido um trabalho de que gosta minimamente, arranjado (ou não) um namorado ou um marido, e tido (ou não) filhos. E apesar de viver numa época em que, como mulher, tem uma liberdade e uma disponibilidade como nenhuma outra da sua família teve (há uma altura do filme em que Julie passa em revista-relâmpago o destino das mulheres da família pelo menos até ao século XIX, através das fotografias que a mãe tem em casa), ela só tem falsas partidas. Mesmo no amor, já que depois de se juntar com Aksel, um autor de comics underground quarentão (Anders Danielsen Lie, cara habitual nas fitas de Trier), acaba por o deixar pelo mais jovem e sedutor Eivind (Herbert Nordrum).

Tudo isto considerado, A Pior Pessoa do Mundo é uma comédia romântica com feitio indie, na qual Joachim Trier consegue, ao mesmo tempo, manejar temas, convenções, personagens e dispositivos consagrados deste formato, e virá-los do avesso ou pô-los em perfeita sintonia com os tempos (ver o gráfico do artigo sobre sexo oral que Julie escreve, publica e é amplamente debatido nas redes sociais, ou a sequência em que Aksel tem um ácido debate na rádio com uma feminista da era #MeToo e descobre que os seus aclamados e subversivos comics afinal são sexistas, ofensivos e misóginos).

Trier fá-lo lançando mão de um estilo visual tão dinâmico e inquieto como a própria personagem, que nos presenteia com um par de achados (a cena em que Julie corre através de uma Oslo congelada para ir ao encontro de Eivind – e a única no filme em que o tempo está do seu lado, ao parar para a deixar fazer o que deseja); e com tracção a cargo de Renate Reinsve, senhora de uma capacidade e uma versatilidade de expressão emocional a perder de vista, e que consegue que continuemos a interessar-nos por Julie até ao final. Até nas alturas em que, se ela existisse na vida e a conhecêssemos, nos apetece pregar-lhe um par de estalos e dar-lhe um berro para que pare de andar feita barata tonta e atine de uma vez por todas. (Mas era mesmo preciso que o já tão castigado Aksel acabasse como acaba?)

Publicidade
  • Filmes
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

Muitos ainda se recordam de quando andavam na escola e havia aquelas aulas em que o tempo parecia não passar, ou então passava muito devagar, e quanto mais olhávamos para o relógio, mais essa sensação se acentuava. Ela reaparece, a espaços, no documentário O Professor Bachmann e a Sua Turma, da alemã Maria Speth, que se prolonga por três horas e meia, e no qual a realizadora segue, ao longo de seis meses, o trabalho do professor Dieter Bachmann do título, que tem 64 anos, está à beira da reforma e é amigo pessoal de Speth. O tempo é aqui muito importante, para a forma, para o discurso e para as intenções do filme, mas é natural que seja sentido de forma diferente por quem o vê, e O Professor Bachmann e a Sua Turma teria beneficiado com uma tesourada de 20 ou 30 minutos.

Bachmann não é um docente igual a muitos outros: dá aulas numa escola na cidade industrial de Stadtallendorf, a crianças entre os 12 e os 14 anos, que têm a particularidade de serem filhos de imigrantes de mais de dez países, nomeadamente da Turquia, mas também da Rússia, da Bulgária ou de Marrocos, e quase todos eles muçulmanos. Dominam a língua alemã, embora parte deles com dificuldade. Alguns foram para a Alemanha ainda muito novos e outros já nasceram lá. Mas, quando Bachmann lhes pergunta se se sentem alemães, os que levantam o braço para responder dizem que não, que são do país de onde vieram, ou do dos pais.

O desafio posto a Bachmann, bem como aos outros professores da escola, através da educação e do convívio, é tentar atenuar as várias barreiras de identidade, culturais, étnicas e religiosas que os diferenciam, e integrá-los no país que os recebeu, para que se sintam, acima de tudo, cidadãos alemães. Uma tarefa que o filme sugere ser complicada, e de sucesso difícil em boa parte. À medida que o ano lectivo progride, surgem as naturais afinidades e tensões entre os alunos, forma-se a pouco e pouco um espírito de turma e desenvolvem-se laços afectivos entre o professor e os discentes.

Os métodos de Bachmann não são convencionais, tal como a sua apresentação (tende a usar uma irritante sweatshirt dos AC/ DC e não larga o seu gorro de lã), mas apesar do seu aspecto e dos métodos cool, de ensino e relacionamento, não admite confusões nem faltas de disciplina e insiste em que falem sempre alemão. E há uma cena em que desabafa a um colega que talvez os miúdos estivessem melhor, e lhes fosse mais útil, se houvesse mais insistência no ensino de disciplinas tradicionais como a Matemática, a História ou o Inglês.

Maria Speth filma num estilo que evoca o do mestre Frederick Wiseman, assente na observação imersiva, não-interventiva e isenta de opiniões, sermões e manipulação sentimental, ideológica ou outra em relação ao meio, grupo ou tipo de estabelecimento escolhido para documentar. E vai assim fazendo o espectador sentir-se uma testemunha invisível, gradualmente mais integrada e bem informada sobre a região, o meio, as pessoas, as relações entre elas e as suas personalidades, os objectivos da instituição. E o tempo passado com eles e entre eles revela e amplifica a dimensão pedagógica, social, emocional e humana de O Professor Bachmann e a Sua Turma (ganhou o Urso de Prata no Festival de Berlim).

Isto quer sejamos cépticos e pessimistas ou tenhamos esperança na experiência que o documentário nos revela e no que poderá resultar dela para os seus jovens protagonistas e o país que os acolheu; ou sintamos mais ou menos simpatia pela figura de Dieter Bachmann. Maria Speth diz ter sido ele a principal razão para ter feito este documentário, apesar de ficarmos a saber apenas meia dúzia de pormenores sobre a sua vida, a sua família e o que o terá levado ao ensino – já tardiamente, ao que parece. O que fica claro no final destes 220 minutos é que algo dele deverá ter ficado nalguns dos alunos daquela que foi a sua última turma em quase 20 anos como professor.

  • Filmes
  • Comédia
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

O novo filme de Paul Thomas Anderson está tão solida e convictamente instalado nos anos 70, que parece que veio de lá numa máquina do tempo. Passado quase todo na zona do Vale de San Fernando, em Los Angeles, Licorice Pizza é uma sucessão de episódios na vida de Gary Valentine (Cooper Hoffman, filho de Philip Seymour Hoffman), um finalista do secundário, jovem actor e fura-vidas, e de Alana Kane (Alana Haim), uns anos mais velha do que ele e pela qual está apaixonado. Enquanto Gary tenta convencer Alana a ser mais do que uma grande amiga e a tornar-se na sua namorada, e ela lhe resiste, vivem ambos uma série de peripécias descosidas, insólitas e hilariantes, desde vender colchões de água pelo telefone até terem um encontro surreal com o exaltado e engatatão ex-cabeleireiro, produtor e namorado de Barbra Streisand, Jon Peters (Bradley Cooper), em plena crise do petróleo e da falta de combustível. Filmado por Anderson em alegre ritmo de mata-cavalos e interpretado com piada e despretensão por Hoffman e Haim (do grupo com o mesmo nome, as duas irmãs dela na vida real fazem o mesmo papel aqui, tal como o pai e a mãe), Licorice Pizza é uma história de amor assolapado e relutante (ficarão Gary e Alana juntos?), e de agitação juvenil benigna (em que mais andanças disparatadas eles se irão meter?), tão aleatória e desconcertante como afável e folgazona.

Publicidade
  • Filmes
  • Acção e aventura
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

O Homem-Aranha interpretado por Tom Holland não só tem que enfrentar vilões provenientes de linhas temporais alternativas, neste novo filme, como o espera uma enorme surpresa em termos da sua própria identidade. O que o vai levar a pedir ajuda ao Doutor Estranho (Benedict Cumberbatch), embora o contacto não corra lá muito bem. Mesmo contemplando os temas estandardizados, as situações feitas e o gigantismo habituais das fitas de super-heróis, Homem-Aranha: Sem Regresso a Casa consegue manter a bonomia simpática, a ausência de peneiras e um sentido de humor que têm marcado quase todos os títulos desta série, o que o destaca do ramerrame da pomposa, elefantina e estereotipada oferta deste género.

  • Filmes
  • Drama
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

A crítica de cinema do The New York Times Manohla Dargis chamou “talkathons” (“maratonas de conversa”) aos filmes do japonês Ryusuke Hamaguchi. Fala-se muito nas fitas do autor de Happy Hour: Hora Feliz (mais de cinco horas de palheta) e Asako I & II (duas horas de dar à língua). Hamaguchi é um daqueles realizadores cujas personagens se definem, relacionam e revelam pelo verbo. A palavra é o veículo privilegiado das suas vidas íntimas e sentimentais e dos seus comportamentos, o grande revelador de si mesmas.

Os filmes do realizador, de um realismo discreto e de um profundo sentido do tecido, dos matizes e dos ritmos do quotidiano, são filmes de acção verbal, da qual a câmara, a banda sonora e a montagem funcionam como recatadas serviçais, onde os diálogos fluem com tanta naturalidade e à-vontade como a narrativa visual, e se evitam os sobressaltos melodramáticos. Embora expressem a maneira particular japonesa de ser, estar, sentir e perceber o mundo, não é por isso que não deixam de ter uma reverberação universal. Embora inferior em estrutura de enredo e em complexidade emocional e psicológica aos citados Happy Hour: Hora Feliz e Asako I & II, Roda da Fortuna e da Fantasia (Grande Prémio do Júri no Festival de Berlim) não desiludirá os admiradores do cinema de Ryusuke Hamaguchi. O filme é composto por três histórias. Na primeira, Gumi, uma rapariga, modelo fotográfico, conta à amiga, Meiko, que conheceu um rapaz fascinante, que entre outras coisas lhe contou o desgosto que teve quando a namorada rompeu com ele. Gumi não faz a menor ideia que Meiko era essa namorada, que a seguir vai confrontar o ex-namorado no seu escritório. Na segunda, uma estudante universitária casada que tem como amante um colega mais novo, é enviada por este para seduzir um professor que o humilhou, e o chantagear a seguir, mas a iniciativa vai ter um resultado muito diferente do pretendido. E na terceira, uma mulher, que veio a uma reunião de antigas alunas do liceu, encontra uma outra na estação de comboios, gerando-se uma situação equívoca. Julgam conhecer-se, o que afinal não acontece, mas estas duas estranhas acabam por confessar coisas das suas vidas uma à outra como se fossem amigas de longa data.

Não há qualquer relação entre as personagens do trio de histórias, nem ligações ou pontes formais entre estas. Além da ressonância emocional das várias situações humanas que Ryusuke Hamaguchi põe em cena em cada uma delas, este tríptico de ficções tem em comum a importância fulcral, activa, da palavra (as conversas entre o trio amoroso da primeira, a leitura sensual do livro premiado do professor pela aluna na segunda, os diálogos confessionais entre as duas mulheres do terceiro), o recurso narrativo à coincidência, ao mal-entendido, ao acaso e ao lapso, e ainda uma serenidade no contar, e uma discreta elegância e delicadeza visual, sob as quais o realizador orienta o abundante trânsito de sentimentos, recriminações, desejos, dúvidas e frustrações que animam as várias personagens e as atraem, unem, repelem ou identificam. E tudo passado sempre num enquadramento do mais banal e reconhecível dia-a-dia: táxis, cafés, gabinetes, autocarros, salas de estar, no meio da rua.

Aguardamos agora com expectativa a estreia do segundo filme que Ryusuke Hamaguchi realizou em 2021, Conduz o Meu Carro, Prémio do Melhor Argumento no Festival de Cannes. Mais três horas de prosa densa, envolvente, significativa e emotiva como apenas ele a sabe escrever, dar aos actores a dizer e filmar no cinema japonês contemporâneo.

Publicidade
  • Filmes
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

Em vez de fazerem mais um documentário convencional sobre os predadores sexuais na internet, os documentaristas checos Barbora Chalupová e Vit Klusák seleccionaram três jovens actrizes com ar de terem 12 ou 13 anos, construíram três cenários de quartos em estúdio e criaram outros tantos perfis falsos na net. Em poucas horas, dezenas e dezenas de homens entraram em contacto com elas, parte deles expondo-se de imediato, solicitando fotos ou vídeos de nudez, propondo encontros e enviando imagens pornográficas. À Solta na Internet é um arrepiante mergulho no mundo do aliciamento e abuso de menores online, onde cruzamos exibicionistas, pedófilos e perversos de todo o tipo, e partilhamos as reacções das três actrizes (escolhidas também por terem experiência de situações semelhantes quando eram mais novas, e sempre apoiadas por sexólogos, psiquiatras e advogados). O filme nunca ganha contornos voyeuristas ou de exploração com alibi “sociológico”, e deixa bem claro que não é por os pais avisarem e acautelarem os filhos sobre o lado negro do mundo online que eles não vão lá aventurar-se. Um dos momentos inesperados de À Solta na Internet dá-se quando uma das actrizes, após ser contactada por um rapaz com namorada, que só quer mesmo falar e a avisa sobre os perigos da net, chora comovida por ter encontrado alguém normal e decente no meio de tanto lixo humano.

  • Filmes
  • Acção e aventura
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

Há um super-herói que rouba a cena em Víuva Negra – e não é a Viúva Negra. Pelo menos, não é essa Viúva Negra (já que há muitas ‘Viúvas Negras’ neste 24.º filme do Universo Cinematográfico da Marvel). Depois de uma eternidade à espera do filme a solo da Vingadora de Scarlett Johansson – sem Tony, Steve e companhia –, eis que vem Florence Pugh e lhe rouba o protagonismo. A actriz interpreta a irmã mais nova de Natasha Romanoff (Johansson), Yelena Belova, também ela membro do programa das Viúvas Negras, e fá-lo com o brilho e naturalidade de quem está nestas andanças do “Marvelverse” desde o primeiro dia.

A mistura feliz de músculos e emoção lembra, em pelo menos metade do tempo, o franchise Jason Bourne. As cenas de luta têm um vigor de abalar os ossos. Um confronto violento entre Romanoff e Belova, numa casa-segura que de segura tem pouco (vamos arquivar a relação destas irmãs na categoria “é complicado”), resulta na interpretação mais arrepiante de Johansson desde Marriage Story. Viúva Negra inclina-se em influências de filmes de espionagem, com referências claras ao mundo dos espiões (parabéns a quem pensou no nome ‘Fanny Longbottom’ para o passaporte falso de Romanoff) até nos locais onde a acção se desenrola, como Budapeste, Marrocos e Noruega. E quando Romanoff se senta para beber uma cerveja, enquanto cita 007 – Aventura no Espaço, parece ser a forma de este Viúva Negra reconhecer uma dívida ao filme de James Bond, pela escolha de um vilão com semelhanças a Hugo Drax (Michael Lonsdale).

Embora a história aconteça no rescaldo da discórdia entre os Vingadores, em Capitão América: Guerra Civil, o prelúdio leva-nos de volta ao Ohio de 1995, onde uma Natasha Romanoff adolescente, de cabelos azuis, acomodada e feliz, de repente é levada, juntamente com a irmã mais nova (Violet McGraw), pela mãe (Rachel Weisz) e pelo pai cientista (David Harbor). Acontece que esta família é nuclear apenas no sentido em que trabalham para pessoas com posse de muitas armas nucleares: são uma célula soviética adormecida, em busca de informações secretas dos EUA, e tão americanos quanto uma ressaca de Stoli – o pai é na verdade um super-herói soviético e corpulento chamado Red Guardian.

Os créditos iniciais que se seguem dão continuidade à história ao estilo de docudrama: Natasha e a irmã são deixadas ao cuidado de um malvado general soviético, Dreykov (Ray Winston, com um terrível e inconsistente sotaque russo), numa academia para treino de assassinas chamada Red Room. Romanoff está à procura de vingança, com a irmã ao lado para a ajudar – e para fazer pouco das suas poses de luta. “Duvido que o deus vindo do Espaço tenha de tomar um ibuprofeno depois de cada luta”, goza a irmã. Para complicar as coisas, Dreykov tem um executor na máquina implacável, com cara de caveira, chamado Taskmaster (imagine o filho ilegítimo do Exterminador Implacável com o Skeletor).

Depois da trama complicada dos últimos filmes do Universo da Marvel, a falta de Pedras do Infinito nos bolsos deste filme é revigorante. E embora Viúva Negra não seja totalmente livre de um MacGuffin – há um dispositivo de controlo da mente para desarmar e um vilão para desmascarar – Cate Shortland (Somersault, Lore) tem aqui muito espaço para aprofundar as lutas de identidade de Romanoff e trazer ao de cima uma velha culpa sobre uma missão que correu terrivelmente mal. E também há muitas risadas para contrabalançar os temas mais pesados. A velocidade com que os quatro membros desta falsa família regridem a arrufos e picardias quando finalmente se reencontram é uma das muitas pequenas alegrias deste filme. Tal como quando Harbor se diverte no papel do pomposo Red Guardian, a tentar espremer-se para caber novamente no fato de super-herói enquanto imagina, em voz alta, uma rivalidade com o Capitão América.

Algumas falhas deixam Viúva Negra um degrau ou dois abaixo dos melhores filmes da Marvel, incluindo um acto final lento, alguma vilania genérica e ainda o longo tempo de duração da fita – vá lá, duas horas são mais do que suficientes – mas se procura um grande blockbuster, habilmente elaborado e autoconsciente, a Marvel, como sempre, dá conta do recado.

Publicidade
  • Filmes
  • Drama
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

“David, não corras!”. Esta frase é ouvida ao longo de Minari, o filme semi-autobiográfico de Lee Isaac Chung sobre uma família coreana-americana, os Yi, que se muda de uma grande cidade para o interior do Arkansas nos anos 80, onde Jacob Yi, o pai (Steven Yeuen) quer concretizar a sua ideia do Sonho Americano: ter uma quinta e viver da terra, cultivando vegetais para vender aos mercados e restaurantes de outros coreanos. David (o irresistível mas nunca demasiadamente cute Alan S. Kim) é o filho mais novo, de seis anos. E a razão pela qual o pai, a mãe, Monica (Yeri Han), e Anne, a irmã mais velha (Noel Kate Cho), lhe estão sempre a dizer para não correr é porque tem um sopro no coração e não se pode cansar. Mas como impedir uma criança de dar asas aos pés na imensidão do Arkansas rural?

O filme vai buscar o seu título a uma erva aromática coreana de uso culinário e medicinal, que é trazida para a quinta pela avó materna de David e Anne, Soonja (estupenda Yuh-Jung Soon, merecidíssima vencedora do Óscar de Melhor Actriz Secundária). E, como se não bastasse ao pequeno David estar impedido de correr à vontade, ter que morar numa casa improvisada sobre pneus e blocos longe da vila e de outras crianças da idade dele, Soonja não é uma avó convencional. Ao contrário das outras, não sabe ler nem fazer bolos e biscoitos, pragueja, joga à batota, usa cuecas de homem e gosta de ver luta-livre na televisão. “Ela cheira a Coreia!”, queixa-se o menino a certa altura.

A avó põe-se a plantar minari perto de um regato, esperando que a erva cresça em solo estranho e prospere. É claro que a erva funciona como uma metáfora da adaptação da família às novas e amplas paragens e ao novo e difícil modo de vida, e como um correlativo da esperança do prático e persistente Jacob em vingar como agricultor, ajudado por Paul (Will Patton), o seu prestável e excentricamente religioso empregado, e veterano da Guerra da Coreia. Entretanto, David e a avó protagonizam vários momentos cómicos, como aquele em que o miúdo se vinga a preceito, após ela o ter gozado por ele ainda não conseguir controlar a bexiga quando está a dormir na cama à noite.

Também escrito pelo realizador, e rodado em 25 dias ao custo de uns magros dois milhões de dólares, Minari é um filme subtilmente evocativo, terno e impressionista, reservado nas palavras e poupado nos rasgos dramáticos, em que uma família enfrenta, em terra estranha, a meteorologia (o tornado do início), o isolamento, a natureza (a escassez de água no terreno), o escasso convívio comunitário (não se sentem à vontade nem com os locais, nem com os outros sul-coreanos que vivem e trabalham na região) e as tensões que aparecem no seu interior. No final, a corda já muito esticada por Jacob ameaça partir-se pelo lado da mulher, farta de viver em condições precárias, de não ver a quinta dar resultados e de perceber que o marido está a pôr o trabalho à frente da família.

Lee Isaac Chung não recorre a sentimentalismos pegajosos, a ameaças racistas ou manifestações de xenofobia, ou a personagens tipificadas, para dar enchimento narrativo ou relevo emocional a Minari, nem a soluções forçadamente reconfortantes para resolver os problemas dos Yi e a ameaça da sua separação. Um incêndio intempestivo, seguido da descoberta de um novo veio de água, bastarão. Entretanto, David conseguirá finalmente correr, e mesmo na altura certa. E nem me perguntem se a minari irá ou não medrar tão longe de casa.

  • Filmes
  • Comédia
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

Thomas Vinterberg recebeu o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro com este filme que escreveu com Tobias Lindholm. Quatro professores de um liceu dinamarquês decidem, às escondidas de toda a gente, fazer uma experiência em que consomem uma determinada dose de bebidas alcoólicas diariamente, verificando depois o seu efeito a nível profissional, social e familiar. Mas, um dia, perdem o controlo e as suas vidas derrapam. O imponente e brilhante Mads Mikkelsen lidera esta comédia dramática sobre os prazeres e os perigos da bebida, que não é facilmente moralista ou banalmente irresponsável.

Publicidade
  • Filmes
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

E se comunicassem à vossa namorada que queriam acabar com a relação e ela respondesse: “Então tenho que te matar.” Das duas, uma: ou ela é uma psicopata, ou então uma ninfa aquática da mitologia popular, uma ondina. É que, perante a infidelidade do seu companheiro, as ninfas perdem a sua alma humana e estão condenadas a morrer, se não o matarem antes, após o que têm que regressar à água. É o que se passa logo na abertura de Undine, o novo filme do alemão Christian Petzold. Johannes, o namorado de Undine Wibeau (a magnífica Paula Beer), uma historiadora que trabalha no departamento de desenvolvimento urbano da Câmara de Berlim, diz-lhe que quer terminar com a relação e que a engana com outra mulher. E ela logo: “Então tenho que te matar.”

Passa-se que, muito longe de ser uma psicopata, Undine é uma ninfa do rio Spree, que atravessa Berlim. E que logo a seguir a ser rejeitada pelo namorado, conhece Christoph (Franz Rogowski), um simpático, carinhoso e algo desajeitado mergulhador industrial, que anda a fazer verificações nos pilares das pontes do Spree. Apaixonam-se e começam até a mergulhar juntos, e tudo leva a crer que Undine não irá infligir a Johannes a morte que fatalmente o esperava, porque encontrou de novo o amor, e desta vez, muito mais verdadeiro e sólido do que o anterior. Só que, certo dia, Christoph tem um acidente durante um dos seus mergulhos, fica 12 minutos sem oxigénio e é internado, em situação de morte cerebral. O destino da ninfa está traçado.

Depois do embaraçoso passo em falso que foi Em Trânsito, Christian Petzold volta a apresentar-se, em Undine, na boa forma dos dois filmes anteriores àquele, Barbara e Phoenix, regressando às protagonistas femininas e a uma narrativa enquadrada pela história recente da Alemanha (neste caso, particularizada na história de Berlim e no seu desenvolvimento urbano), acrescentando-lhe uma modalidade de romantismo fatalista de sabor bem germânico. Undine é um filme fantástico que dispensa o espectáculo de efeitos digitais e que cultiva o maravilhoso ancestral com roupagens contemporâneas, singeleza e um lirismo discreto, na escrita, na câmara e na interacção das personagens.

Alguns dos melhores momentos da fita passam-se, naturalmente, no elemento líquido: a cena nocturna na piscina da vivenda de Johannes; Undine cavalgando, para espanto de Christoph, o enorme e célebre peixe-gato que nada no Spree; a mão alva da ninfa saindo de súbito da arcada do pilar da ponte para acariciar a de Christoph; ou o silencioso e fantasmagórico encontro final entre os dois amantes, à noite e debaixo de água. Pura poesia aquática com mediação cinematográfica.

E embora Christian Petzold pareça transgredir em Undine as regras das narrativas populares relativas a ninfas e outras criaturas do elemento líquido, a verdade é que as cumpre escrupulosamente, e com amarga ironia. Christoph não tem o mesmo destino que Johannes, porque tecnicamente, já esteve morto numa cama de hospital, razão também pela qual a sua amada teve que regressar ao seu habitat natural. Em resumo, o ano não podia abrir melhor do que com um filme como Undine.

  • Filmes
  • Terror
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

Se andam à procura do filme do confinamento por excelência, não precisam de ir mais longe. Chama-se Host, foi realizado por Rob Savage e está na Amazon Prime. E é de terror, rodado para a Shudder, a plataforma de streaming especializada, filiando-se no novo subgénero baptizado “laptop horror”. Nele, os assassinos em série e as forças sobrenaturais utilizam as novas tecnologias – em especial os computadores portáteis – e as redes sociais para se infiltrarem entre nós e nas nossas casas, e espalharem a morte e o pânico, e tem como exemplos recentes títulos como Open Windows, de Nacho Vigalondo (2014), Unfriended, de Leo Gabriadze (2014), ou The Call, de Lee Chung-Yun (2020).

Savage fez o filme sem ter qualquer contacto físico com o seu (pequeno) elenco, integrando a situação do confinamento na história e dirigindo os actores à distância, transformando-os não só nos operadores de câmara como também em técnicos de efeitos especiais, tirando assim o máximo partido narrativo e cinematográfico do isolamento a que temos estado todos submetidos. Tudo se passa nos ecrãs dos computadores das personagens, ora vistos em simultâneo, ora individualmente, e Host reflecte ainda a capacidade de síntese do realizador, já que dura apenas 56 minutos, sem vestígios de palha ou de ganga.

Seis amigos, cinco raparigas e um rapaz, fechados nas suas casas e aborrecidos de morte com o confinamento a que a pandemia obriga, resolvem fazer uma sessão espírita via Zoom, servindo-se de uma médium para a orientar. Só que uma delas leva a coisa para a brincadeira e acaba por invocar um espírito demoníaco, que aproveita a ligação simultânea em que o grupo se encontra, primeiro para pregar alguns sustos, passando depois para coisas muito piores. A entidade nem sequer se esquece de lhes cortar a comunicação com a médium, impedindo-a assim de as ajudar.

Impotentes para se socorrerem umas às outras, as participantes na sessão vão vendo nos seus computadores, aterrorizadas, o que o espírito vai fazendo a cada uma delas e aos seus familiares, envolvendo a manipulação de objectos do quotidiano que têm em casa, como mesas, cadeiras, utensílios de cozinha, isqueiros, caixas de música, fantoches, etc. A Polaroid de uma das personagens é também muito bem usada por Rob Savage para dar gás ao efeito de terror, e a entidade maligna nunca é mostrada.

Vemos apenas os efeitos devastadores da sua maléfica presença (o rapaz, que vive na luxuosa moradia da sua namorada rica, certamente terá lamentado a existência de uma piscina no jardim) e, a certa altura, as suas pegadas na farinha que está espalhada no chão da dispensa e no corredor da casa de uma das personagens, o que é infinitamente mais aterrador e eficaz do que dar-lhe forma. O realizador até aproveita a ficha técnica final para uns arrepios de despedida. Quando um dia, no futuro próximo, se fizer a história do cinema produzido durante o confinamento do coronavírus, Host será de menção obrigatória e estará lá no topo da lista dos melhores, mais inventivos e mais genuínos filmes destes estranhos e deprimentes tempos de isolamento forçado.

Publicidade
  • Filmes
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

Não é a primeira vez que o clássico infantil Pinóquio, de Carlo Collodi, é filmado com actores de carne e osso. Antes desta nova versão de Matteo Garrone, o realizador de Gomorra, O Conto dos Contos e Dogman, houve outras, sendo a mais recente a de 2002, de e com Roberto Benigni, que aqui interpreta Gepeto. Mas esta adaptação à tela de Pinóquio é decerto uma das mais próximas do livro de Collodi, no tom e nos ambientes, do espírito e das atmosferas dos contos de fadas que ele adaptou no citado O Conto dos Contos, e ainda das ilustrações originais de Enrico Mazzanti.

Neste Pinóquio, Matteo Garrone cultiva aquilo a poderíamos chamar de neo-realismo fantástico, ao situar a história na Itália rural de há 200 ou 300 anos, uma Itália de quintas, pequenos ofícios, estalagens, gente que trabalha duramente e vivia com pouco, pequenos circos remendões e espectáculos ambulantes pobrezinhos. Mas no meio da qual se manifesta uma plêiade de animais antropormorfizados, falantes e vestidos como humanos, fantoches de madeira com vida própria e uma fada com poderes mágicos, que tanto é uma menina como uma mulher de meia idade, e vive numa quinta, sendo servida por um enorme caracol feminino que se mexe e fala muito devagar, entre outros.

O naturalismo dos ambientes do filme convive sem choques nem rupturas com episódios grotescos que constam no livro (o teatro das marionetas, onde Pinóquio, personificado pelo pequeno Federico Ielapi, é recebido como um igual pelos bonecos, vivos como ele, e o confronto com Mangiafuoco, o seu assustador dono, que afinal tem um coração mole); e de terror e crueldade, como aquele em que Pinóquio é atacado de noite pelo Gato e pela Raposa disfarçados de assassinos para o roubar, e que o enforcam numa árvore, deixando-o lá pendurado até raiar o dia, enquanto discorrem se ele já terá ou não morrido. E tal como também sucede no livro, o Grilo Falante só aparece duas ou três vezes, sendo sempre insultado e tratado com violência por Pinóquio. Walt Disney está muito, muito longe daqui.

Matteo Garrone recorre a um mínimo de efeitos digitais, preferindo quase sempre confiar nas maquilhagens sofisticadas (a “madeira” que cobre o Pinóquio de Ielapi obrigava o actor a ser submetido a três horas diárias de aplicação de maquilhagem), nos cenários tradicionais, na animação e noutras trucagens, algumas delas artesanais. Por aqui passam referências a A Parada dos Monstros, de Tod Browning, a filmes de Terry Gilliam como A Fantástica Aventura do Barão, e mesmo ao cinema de Fellini, no caso, pelo mesmo gosto do artifício assumido (ver as sequências com Gepeto e Pinóquio no interior do monstro marinho). E tudo isto sem que o filme perca de vista ou subverta a lição de vida do livro: só sendo bom, obediente e cumpridor Pinóquio poderá tornar-se num menino de carne e osso.

Este Pinóquio bem equilibrado entre o realista e o mágico de Matteo Garrone entra directamente para o topo das adaptações ao cinema da obra de Carlo Collodi, e sem ser preciso bater na madeira.

  • Filmes
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

Os americanos têm o buddy movie, os franceses têm o film de copains. Vai tudo dar ao mesmo, o filme de amigos dos quatro costados. Foi já um subgénero muito cultivado em França, mas que não se vê nas telas com a regularidade – e a qualidade – com que se via nas décadas de 70 e 80, mais porque têm vindo a desaparecer os argumentistas, dialoguistas, realizadores e actores que o faziam bem, do que por uma mudança no público e nos seus gostos.

O duo de argumentistas Alexandre de La Patellière e Matthieu Delaporte estreou-se na realização em 2012 com uma muito divertida comédia, O Nome da Discórdia, dando ao cantor e actor Patrick Bruel o papel principal. Sete anos depois, de La Patellière e Delaporte escreveram e realizaram aquele que é um dos melhores films de copains dos últimos anos: O Melhor Ainda Está para Vir, de novo com Bruel, agora emparelhado com Fabrice Luchini.

Arthur (Luchini) e César (Bruel) estão ambos na casa dos 50 e são amigos desde que se conheceram num colégio interno, eram ainda miúdos. São diferentes como o ovo e o espeto, mas une-os uma amizade em betão armado. Arthur, divorciado e com uma filha adolescente, é médico e investigador no Instituto Pasteur, um coca-bichinhos crónico e um cidadão exasperante de tão exemplar. César nunca teve um emprego certo, é um estoira-vergas que colecciona amantes e é adepto da filosofia chapa ganha, chapa gasta. De tal forma, que o filme abre com a penhora de tudo o que tem.

Devido a um equívoco, Arthur descobre que César tem um cancro e poucos meses de vida, enquanto que este pensa que é o amigo que está canceroso. Arthur não tem coragem de dizer a verdade a César, que entretanto se mudou para casa deste porque a ex-namorada o expulsou da sua, e os amigos combinam ir viver a vida em pleno, concretizando cada qual, alternadamente, um desejo de longa data. E enquanto que entre os sonhos de Arthur estão ganhar o Nobel da Medicina ou visitar a campa de Albert Schweitzer, os de César são mais simples: paródia, jantaradas, casinos e mulheres.

Aqui chegados, e ao contrário do pudéssemos pensar, O Melhor Ainda Está para Vir não resvala nem para a farsa grosseira e bagunçada, nem para o melodrama fungado e rameloso. Graças a uma escrita rigorosamente equilibrada, com todas as palavras, situações e emoções certas nas alturas certas; a uma gestão de relojoeiro suíço da comédia e da gravidade, da espirituosidade e do drama, da ligeireza e da melancolia; e às interpretações arrebatadoras de Luchini e Bruel, verdadeiras e vivas na efervescência do riso como na punção do drama, Alexandre de La Patellière e Matthieu Delaporte arrancam um filme na boa cepa tradicional francesa sobre o significado mais corpóreo, mais real, mais efusivo e mais pungente da amizade entre dois homens que, à partida, tudo daria a entender que nunca poderiam ser amigos. Como diria o imenso argumentista e dialoguista Michel Audiard, “Ça, c’est des copains!”.

Publicidade
  • Filmes
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

Diga-se logo a abrir que este ‘Bora Lá não está ao nível de animações mais recentes da Pixar, como Coco, The Incredibles 2: Os Super-Heróis ou Toy Story 4. Mas tal como um grande clube de futebol não é capaz de ganhar todos os jogos que disputa, ou um campeão de Fórmula 1 não consegue triunfar em todos os grandes prémios em que corre, também um estúdio com os pergaminhos da Pixar não está obrigado a produzir uma obra-prima em cada filme.

E não sendo uma dessas, ‘Bora Lá é, mesmo assim, uma fita bastante agradável, técnica e narrativamente superior à maior parte da concorrência e com várias coisas que se recomendam.

Uma delas, e a principal, é ter uma história que remete para uma época em que os jogos de vídeo ainda não estavam tão vulgarizados nem eram tão numerosos e sofisticados como hoje, e um dos jogos mais populares do mundo, com um tema de fantasia, era jogado não num computador, mas sim num tabuleiro: o Dungeons & Dragons.

‘Bora Lá passa-se num mundo em muitas coisas semelhante ao nosso, só que habitado por criaturas dos universos da mitologia, da fantasia e da espada e feitiçaria. Esse mundo onde outrora a magia e as grandes demandas aventurosas eram a norma, começou a ser invadido pela inovação tecnológica.

Em pouco tempo, a magia foi esquecida e a aventura posta de parte ou desvirtuada e comercializada, dando lugar aos electrodomésticos, aos telemóveis, aos aviões, aos carros e à fast food. Basta dizer, e como exemplo significativo, que os centauros deixaram de cavalgar e passaram a andar de automóvel.

Ian Lightfoot e Barley, o seu irmão mais velho, são dois elfos que vivem nos subúrbios de uma grande cidade. Perderam o pai quando eram pequenos e vivem com a mãe. Ian vai fazer 16 anos e tem as preocupações típicas dos adolescentes dessa idade. Barley, por seu lado, adora tudo o que tenha a ver com o mundo de magia e aventura do passado, é um fã de jogos de tabuleiro e de cartas do género e mete-se em sarilhos de vez em quando, por querer salvar da destruição património desse tempo glorioso.

Acontece que o pai deixou a Ian um presente muito especial, para ser aberto no dia dos seus 16 anos. Um presente que vai lançar a família numa demanda como as que fazem vibrar Barley, onde Ian nunca pensou que se ia ver metido e na qual o pai também está presente – embora não na totalidade.

Dan Scanlon, o realizador e um dos argumentistas de ’Bora Lá, perdeu o pai quando tinha apenas um ano, tal como Ian. Por isso, o filme tem uma carga de importância e de emoção pessoal pouco vulgar neste género.

Ao tema da ausência do pai vem juntar-se o do amor e da cumplicidade faternais, que juntamente com as peripécias típicas de uma demanda tradicional, bastante e bom humor (ver as fadinhas bikers) e a costumeira qualidade da animação digital do estúdio, são suficientes para que ‘Bora Lá satisfaça os fãs de cinema animado, bem como os indefectíveis da Pixar.

  • Filmes
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado
O Paraíso, Provavelmente
O Paraíso, Provavelmente

Há 20 anos, desde O Tempo que Resta, que Elia Suleiman não realizava uma longa-metragem (em 2012, participou com um segmento no filme colectivo 7 Dias em Havana). E quando vamos ver O Paraíso, Provavelmente, parece que O Tempo que Resta foi feito ontem. Suleiman continua com a mesma cara de ovo cozido com óculos e barba; continua a apresentar a mesma impassibilidade muda a 99% (só diz quatro palavras em O Paraíso, Provavelmente); a sofrer interiormente pela Palestina; a cultivar o mesmo tipo de comédia “branca”, autobiográfica e melancólica, entre a farsa e o nonsense, entre Buster Keaton e Jacques Tati, e a usá-la para meditar sobre a situação e a identidade do seu povo, a sua alienação cultural, a ausência de um lugar a que possa chamar pátria e a sua condição de árabe de Israel, sujeito a todo o tipo de pressões e indignidades. Em O Paraíso, Provavelmente, Suleiman decide ir mais longe do que nos seus filmes anteriores e correr mundo, visitar a França e os EUA em busca de financiamento para o seu novo filme (que, numa brincadeira meta-cinematográfica é precisamente este O Paraíso, Provavelmente) e participar numa iniciativa pró-palestiniana. O olhar que o realizador e actor lança sobre os sítios que visita é exactamente o mesmo de quando está em casa, agudo de observação e atento à comédia do quotidiano e aos seus insólitos e absurdos, e Suleiman esmera-se em planos tirados a regra e esquadro, que aproveitam a beleza, a variedade e as particularidades da paisagem urbana de

Publicidade
  • Filmes
  • Drama
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

Na França de finais do século XVIII, ainda antes da revolução, Marianne, uma pintora (Noémie Merlant) e Héloise (Adèle Haenel) uma jovem aristocrata e sua relutante modelo, tornam-se amantes durante a execução do retrato desta, que vai ser enviado para Itália, para o homem com quem vai casar a conhecer. Com duas formodáveis actrizes, recatadamente sensual, inteligente e sensível, reflectindo sobre a condição da mulher (e da mulher artista na época) sem se transformar numa arenga feminista ou num panfleto gay, e nunca se submetendo a qualquer dirigismo formal da pintura, Retrato da Rapariga em Chamas ganhou o Prémio de Argumento no Festival de Cannes e é o melhor filme de Céline Sciamma.

  • Filmes
  • Drama
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

Werner Herzog rodou no Japão esta ficção tão contígua da realidade, que se pode confundir com esta, na qual convenceu o dono e director da empresa do título (que aluga actores para interpretarem, em diversos contextos sociais ou profissionais, parentes, amigos ou pessoas próximas dos clientes) a interpretar-se a si próprio numa sucessão de sketches encenados. Na sua componente mais complexamente ficcionada, onde o empresário finge ser o pai de uma adolescente, que ela nunca conheceu por ser ainda bebé quando ele abandonou a mãe, Herzog questiona as implicações éticas e morais deste insólito negócio e dá ao filme dimensão dramático, peso emocional e vibração humana.

Publicidade
  • Filmes
  • Documentários
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

Entre 2011 e 2016, Waad al-Kateab, uma estudante universitária síria, filmou com a sua câmara digital o início dos protestos contra o Presidente Assad e a divisão e o cerco da cidade de Alepo, o seu casamento com o médico e activista Hamza Al-Kataeb e o nascimento de Sama, a sua filha, a quem é dedicado este documentário feito do ponto de vista dos civis que sofrem os efeitos de uma guerra. Para Sama é cru e lancinante ao ponto do insuportável, mas também caloroso e esperançoso. Só lhe falta um enquadramento global e explicativo do conflito e seus vários actores.

  • Filmes
  • Drama
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

Depois de Carvão Negro, Gelo Fino, Urso de Ouro e Urso de Prata do Melhor Actor no Festival de Berlim de 2014, o chinês Diao Yinan traz-nos este fulgurante O Lago dos Gansos Selvagens, a narrativa vertiginosa e intensa de uma dupla caça ao homem na cidade de Wuhan, onde um gangster que matou um polícia inadvertidamente e tem a cabeça a prémio, é perseguido pelos outros marginais e pelos homens da lei. Yinan faz a transcrição, para a China contemporânea, de um daqueles policiais de acção de série B que os americanos rodavam nos anos 40 e 50, filmando com uma câmara agilíssima e nervosa, um sentido consumado da tensão e da acção visual e uma exímia utilização expressiva e dramática dos ambientes, revelando-nos ao mesmo tempo uma China marginal, feia, pobre e kitsch que coexiste com a China próspera e futurista dos telejornais e da propaganda.

Publicidade
  • Filmes
  • Drama
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

Primeira longa-metragem de Ladj Ly, Os Miseráveis teve o Prémio do Júri do Festival de Cannes, foi rodado no bairro de Montfermeil, nos subúrbios de Madrid, onde o realizador cresceu. É um retrato frontal, equlibrado e muito inquietante da realidade nas cités parisienses, onde se acumulam os imigrantes, o Estado parece ter abdicado de exercer a sua jurisdição, os bandos de delinquentes e os fundamentalistas islãmicos disputam os favores dos habitantes, e em especial a atenção e a lealdade dos mais jovens, e onde apenas a Brigada Anticrime da polícia consegue entrar e manter contactos. O filme começa num tom de euforia nacional, e termina noutro, radicalmente diferente, de fragmentação total e caos geral anunciado.

  • Filmes
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

Esta realização de Jan Komasa concorre pela Polónia ao Óscar de Melhor Filme Internacional e tem um notável jovem actor chamado Bartosz Bielenia no papel de Daniel, um rapaz que sai de um centro de detenção juvenil para ir trabalhar numa serração no campo, mas acaba a fingir que é padre e a envolver-se profundamente na vida de uma pequena comunidade (Daniel tem vocação para o sacerdócio, mas o facto de ser cadastrado impede-o de ir para um seminário). Inspirado por um facto real, Corpus Christi-A Redenção é um sério, intenso e belíssimo filme sobre os paradoxais atalhos da fé, a forma como Deus escreve direito por linhas tortas e a dificuldade do perdão e da redenção pessoal, onde Komasa nunca recorre a expedientes fáceis, simplistas ou confortáveis. Como se prova pela brutal conclusão. A não perder.

Publicidade
  • Filmes
  • Drama
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

À sétima versão para cinema do livro clássico de Louisa May Alcott, Greta Gerwig desarrumou-lhe a cronologia, começando o filme lá para o meio, quando Jo (uma fulgurante Saoirse Ronan) já está em Nova Iorque a tentar viver da escrita. Mas a imortal história das quatro irmãs March resiste a tudo, e Gerwig faz todo o jus emocional, cinematográfico e evocativo à obra de Alcott sobre a vida entre irmãs, o fim da infância e a queda na maturidade, o porto seguro da família e sobretudo a vontade da arrapazada, inquieta, imaginativa e impetuosa Jo ser independente, escritora reconhecida, feliz nos termos que deseja. Com a esplêndida Florence Pugh em Amy, Emma Watson e Eliza Scanlon em Meg e Beth, e Laura Dern e Meryl Streep perfeitas como Marmee e a tia March.

  • Filmes
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado
J'accuse - O Oficial e o Espião
J'accuse - O Oficial e o Espião

Roman Polanski adapta o livro de Robert Harris sobre o Caso Dreyfus, que abalou e dividiu a França em finais do século XIX, adoptando o ponto de vista do coronel Georges Picquart, que descobriu o verdadeiro espião e tudo fez para que Dreyfus fosse inocentado e reintegrado no Exército, arriscando a sua própria carreira, segurança e liberdade. No seu assumido academismo formal e narrativo, o filme é uma robusta recriação de um processo judicial e político escandaloso, tendo como força motriz a portentosa interpretação de Jean Dujardin no corajoso e íntegro Picquart, e Polanski parece aproveitar esta história real de um falso culpado para fazer paralelos com a sua situação pessoal de acusado de crimes sexuais, de que diz estar inocente.

Publicidade
  • Filmes
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

João Moreira e Pedro Santo, os criadores de Bruno Aleixo, tiveram o bom senso de não se porem a fazer "cinema" neste filme em que a personagem é solicitada a fazer um filme sobre a sua vida por uma produtora, e convoca a sua bizarra pandilha (Homem do Bussaco, Busto, Monstro da Lagoa Negra chamado Renato Alexandre) para o ajudar com a história. O Filme do Bruno Aleixo porta-se como se fosse um episódio melhorado e com um bocadinho mais de orçamento da série, e esse é logo um dos seus principais méritos. Vários actores e convidados especiais - Adriano Luz, Rogério Samora, João Lagarto, Manuel Mozos, Fernando Alvim etc. - dobram aqueles (ou são personificados e dobrados por eles) ou interpretam outras personagens, e o universo de nonsense estanque e circular da série mantém-se intacto, havendo até espaço para uma publicidade da Mister Cimba. Melhor gag: a esfregona assassina.

Por Eurico de Barros

  • Filmes
  • Comédia
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

Corneliu Porumboiu, um dos principais nomes do novo cinema da Roménia, pega em situações feitas, personagens tipo e estereótipos do cinema policial e acrescenta-lhes o excêntrico elemento de uma ancestral linguagem assobiada de uma ilha das Canárias, para fazer um filme que é ao mesmo tempo um pastiche e uma glosa aplicada, com todos os eles e erres, deste género clássico. A que não falta o tradicional comentário sobre a corrupção institucional no seu país. Tudo feito com a economia visual e expressiva, circunspecção dramática e toques de humor nonsense habituais do realizador. A Ilha dos Silvos é um filme de três assobios.

Por Eurico de Barros

Publicidade
  • Filmes
  • Drama
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

Clint Eastwood recorda neste filme uma história vergonhosa ocorrida nos Jogos Olímpicos de Atlanta de 1996. Richard Jewell, um segurança, detectou uma bomba num parque da cidade durante um concerto e ajudou a evacuar o recinto. Poucos dias depois, passou de herói nacional a suspeito de terrorismo, porque o FBI, pressuonado pela organização dos jogos e pelo governo, precisava de apresentar um culpado, e os media foram atrás da história, crucificando Jewell perante a lopinião pública. O Caso de Richard Jewell é um alerta contra os abusos e as arbitrariedades do Estado e do Quarto Poder, filmado por Eastwood com concisão brilhante e sem flores moralistas, e um elenco inatacável - a começar pelo atá aqui "secundário" Paul Walter Hauser no papel principal. O primeiro filme solida e certeiramente político de 2020.

Por Eurico de Barros

  • Filmes
  • Drama
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

François Ozon filma o escândalo que ainda está actual em França e que se deu na diocese de Lyon, envolvendo um padre que abusou de rapazes ao longo de décadas sem que a hierarquia agisse, e que foi denunciado e levado à justiça por um grupo de paroquianos que foram molestados pelo sacerdote quando eram jovens. Ozon não quer fazer tiro ao alvo, praticar o sensacionalismo indignado ou o anti-clericalismo fácil, e sem deixar de expor o silêncio, a negação, o atabalhoamento e as hesitações da igreja perante o caso, põe em cena a complexidade e a diversidade das emoções e das reacções de um trio de homens que sofreram os avanços do padre (vividos por Melvil Poupaud, Denis Ménochet e Swann Arlaud).

Por Eurico de Barros

Publicidade
  • Filmes
  • Drama
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

No seu pior, Ken Loach é demagógico, tendencioso e simplista. No seu melhor, como é o caso de Passámos por Cá, é frontal, justo e justificadamente indignado e maneja o realismo social como mais nenhum realizador. Escrito como sempre por Paul Laverty, o filme é o aflitivo e inglório espectáculo de uma família de Newcastle enredada em dívidas e ameaçada de desintegração, e que quanto mais se esforça para se livre delas, mais acumula. Sobretudo o pai, que arranja um emprego como franquiado de uma empresa de entrega de encomendas, que se revela uma forma moderna de escravatura laboral sob a capa de trabalho independente.

Por Eurico de Barros

  • Filmes
  • Animação
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

A continuação do descomunal sucesso da Disney, que se transformou no filme animado mais lucrativo de sempre, é uma história de "origens" em que Elsa, Anna, Olaf, Kristoff e Sven têm que fazer uma viagem a uma floresta encantada para encontrarem respostas sobre o passado das duas irmãs e os poderes da rainha, e salvarem Erendalle da destruição. A história é mais complexa que a do filme original, a banda sonora não tem uma canção à altura de Let it Go (embora tente com Into the Unknow) e a animação é estupenda, na linha clássica da Disney. E os realizadores "repetentes" Chris Buck e Jennifer Lee não resistem a dar aqui a Elsa um polimento de super-heroína da Marvel.

Por Eurico de Barros

Publicidade
  • Filmes
  • Acção e aventura
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

James Mangold realiza esta fita que recria o célebre duelo travado entre a Ford e a Ferrari nos anos 60, pela supremacia nas pistas de corrida americanas e europeias, e muito em especial pela vitória nas 24 Horas de Le Mans. É uma celebração da velocidade, da competição e da excelência técnica e humana, com Christian Bale muito bem no castiço piloto ingles Ken Miles, um sobredotado da mecânica e da condução, e o mortiço e deslavado Matt Damon a fazer de Carroll Shelby, o antigo piloto e construtor independente a quem a Ford confiou o aperfeiçoamento do lendário GT40, que em 1966 alcançaria os três primeiros lugares em Le Mans.

Por Eurico de Barros

  • Filmes
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

Há quase dez anos que Woody Allen não filmava na sua querida Manhattan, e o regresso não podia ter sido mais auspicioso. Requintadamente fotografada pelo mestre Vittorio Storaro, faça sol ou chova torrencialmente, Um Dia de Chuva em Nova Iorque é uma elegante, nevrótica, satírica e refrescante comédia romântico-sentimental que tem o ADN do realizador por toda a parte. Timothée Chalamet e uma hilariante Elle Fanning lideram um elenco onde ninguém dá um passo em falso e Allen celebra mais uma vez a sua cidade adorada, simultaneamente idealizada e real, entusiasmante e melancólica, onde as suas personagens tanto se podem apaixonar, andar num virote cómico ou receber uma grande lição de vida.

Por Eurico de Barros

Publicidade
  • Filmes
  • Drama
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

Marco Bellocchio dá uma contribuição maior para o acervo de filmes, séries e telefilmes italianos sobre a Mafia, com esta obra sobre Tommaso Buscetta, um dos primeiros "arrependidos" da Cosa Nostra, a Mafia da Sicília, interpretado com magnífica sobriedade por Pierfrancesco Favino. Bellocchio mostra que, para Buscetta, o traidor não era ele, que se via como um mafioso honrado e homem de palavra, "à antiga", mas sim Totò Riina, o cruel líder da Cosa Nostra, que quebrou todos os códigos de comportamento da organização com os seus métodos sádicos e arbitrários, e recria o ambiente das prisões, dos julgamentos colectivos e das vendettas desses anos intensos de combate ao crime organizado em Itália.

Por Eurico de Barros

  • Filmes
  • Drama
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado
Asako I & II
Asako I & II

Ryusuke Hamaguchi, o realizador de Happy Hour: Hora Feliz, apoia-se aqjui num romance da sua compatriota Tomoka Shibasaki para assinar um filme sensibilíssimo, delicadamente elíptico e de grande decoro emocional sobre o confronto entre a idealização romântica e a realidade concreta e quotidiana da paixão e das relações sentimentais, e sobre os acasos, os inesperados, as ilusões e a componente racional do amor. E por Asako I & II paira, mesmo qua suavemente, a sombra de Vertigo.

Por Eurico de Barros

Publicidade
  • Filmes
  • Documentários
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado
Varda by Agnès
Varda by Agnès

Podia chamar-se, em alternativa, Varda Explica e Decifra Varda, este último filme da realizadora, que morreu aos 90 anos em Março. Varda passa em revista e comenta a sua obra cinematográfica, fotográfica e as instalações, com uma enorme carga emocional, afectiva e íntima, trazida pelas riquíssimas memórias e recordações, profissionais, pessoais e familiares que lhe estão associadas. No discreto final, Agnès Varda desaparece na bruma de uma das suas queridas praias. Custa pensar que nos deixou, e não voltaremos a ver filmes seus.

Por Eurico de Barros

  • Filmes
  • Terror
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

Depois do soturno, invernoso e sobrenatural Hereditário, Ari Aster assina aqui um filme de terror pagão passado no pino do Verão e todo à luz do dia. Um grupo de estudantes universitários americanos vai para a Suécia, assistir, numa comunidade rural, às celebrações do Solstício de Verão, mas aquilo que parecia ser umas férias idílicas transforma-se num pesadelo que brota do passado remoto e tradicional. Em Midsommar-O Ritual, o horror é lenta e pacientemente construído por Aster, num gradual mas seguro crescendo de inquietação e desconforto, sem sustos falsos nem sobressaltos gratuitos. Com a excelente Florence Pugh e Jack Reynor.

Por Eurico de Barros

Publicidade
  • Filmes
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

Pedro Lino investiga neste documentário a movimentada vida do realizador italiano Rino Lupo, que percorreu toda a Europa a filmar e esteve em Portugal nos anos 20, ainda no tempo do mudo. Aqui, Lupo rodou filmes relevantes, como Mulheres da Beira ou Os Lobos, e abriu uma escola de actores que Manoel de Oliveira chegou a frequentar. Um filme rigoroso e visualmente inventivo, em que Lino consegue desvendar lo mistério da morte de Rino Lupo, que tinha desaparecido misteriosamente na década de 30, algures na Europa que palmilhou de lés a lés a fazer cinema.

Por Eurico de Barros

  • Filmes
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

Tiago Guedes filma em A Herdade uma história familiar robustamente romanesca, de amplo fôlego dramático e com músculo cinematográfico, bem ancorada na história portuguesa recente, apanhando o fim do antigo regime, a loucura revolucionária pós-25 de Abril e a acalmia democrática. Ela é dominada por João Fernandes, uma personagem forte, carismática e trágica, um poderoso proprietário rural do Ribatejo. A sorte da herdade está ligada à de João Fernandes e da família, e se ele sabe como lidar com o mundo exterior para proteger e fazer prosperar o seu pequeno império, o mesmo já não acontece dentro de portas. A sua incapacidade de expressar sentimentos e dispensar afectos, irá fazer implodir tudo em seu redor e espalhar a infelicidade nos que lhe são mais próximos, ou afugentá-los. Albano Jerónimo, Sandra Faleiro e Miguel Borges, todos soberbos, encabeçam um elenco bem escolhido e dirigido, irrepreensível e homogéneo, dos papéis principais aos mais pequenos.

Por Eurico de Barros

Publicidade
  • Filmes
  • Documentários
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

Quase 50 anos depois de ter sido rodado, eis finalmente o filme da gravação ao vivo numa igreja de Los Angeles, em 1972, de Amazing Grace, o lendário álbum de gospel de Aretha Franklin. Sydney Pollack na altura não conseguiu sincronizar o som com a imagem e Amazing Grace ficou arrumado no arquivo da Warner Bros., até o produtor Alan Elliott ter resgatado as imagens em 2007, e conseguido uma cópia síncrona graças às tecnologias digitais. Só que Aretha proibiu a exibição pública da fita, o que apenas sucedeu após a morte da cantora, em 2018. É um concerto de ir às lágrimas de êxtase. O Senhor estava com Aretha Franklin, e abençoou-lhe a voz à nascença.

Por Eurico de Barros

  • Filmes
  • Drama
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

Um filme semi-autobiográfico, de enorme gravidade introspectiva e rememorativa, onde Antonio Banderas personifica Salvador Mallo, alter ego de Pedro Almodóvar, um realizador à beira dos 70 anos, afligido por uma série de dores físicas e existenciais, que julga ter deixado para trás os seus dias de glória e não tem mais disposição para escrever ou filmar. Banderas tem uma interpretação de grande reserva emocional e em meia-luz anímica nesta fita sobre a velhice e o agridoce passar em revista das memórias familiares, amorosas e profissionais, cheia de melancolia mas também de afectuosidade e ternura, e limpa de narcisismo e condescendência.

Por Eurico de Barros

Publicidade
  • Filmes
  • Animação
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

A irlandesa Nora Twomey assina esta longa-metragem de animação passada em Cabul, sob o regime talibã. Com o pai na cadeia, Parvana, uma menina de 11 anos, arrisca a vida fingindo que é um rapaz para poder sustentar a mãe e os irmãos. Saído dos estúdios que já nos deram The Secret of Kells e A Canção do Mar, A Ganha-Pão é uma história de coragem, sacrifício e desafio a um poder arbitrário, obscurantista e violento. Twomey enriquece o filme estilistica e esteticamente com a história que Parvana conta ao irmão mais pequeno, e que espelha a sua ao nível fantástico.

Por Eurico de Barros

  • Filmes
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

João Maia estreia-se a realizar com esta biografia de António Variações, onde se concentra no “antes” da fama do compositor e cantor, que morreu faz agora 35 anos. O enredo decorre quase todo entre 1977 e 1981, quando Variações, então ainda António Ribeiro, era um barbeiro e uma figura excêntrica e vistosa de Lisboa e da noite que aspirava ser cantor, e procurava por todos os meios dar-se a conhecer no pequeno e pouco receptivo meio da música. Alicerçado na soberba interpretação de Sérgio Praia, que se transmuta em António Variações, da voz ao modo de ser e estar (não há aqui qualquer playback, vocal ou instrumental), recriando a época de forma credível e fugindo a lugares comuns e tiques pop na forma e no discurso, Maia assina aqui um dos melhores filmes portugueses deste novo século.

Por Eurico de Barros

Publicidade
  • Filmes
  • Suspense
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

Mel Gibson e Vince Vaughn interpretam, neste filme de S. Craig Zahler (Bone Tomahawk, Rixa no Bloco 99), dois polícias suspensos sem vencimento por terem alegadamente usado de excesso de força durante a prisão de um traficante de droga. Necessitados de dinheiro com urgência para prover aos seus, os polícias decidem assaltar um traficante de droga, mas este reuniu um bando para roubar um banco e eles surpreendem-no com a mão na massa. Importante para a história é também um pequeno delinquente negro (Tory Kittles) que está no bando do traficante para conseguir dinheiro para a família, com tanta urgência como o duo de polícias. As sombras de Sam Peckinpah, Don Siegel e Robert Aldrich passam por Na Sombra da Lei, um policial de acção soturno, duríssimo, seco e fatalista, como Hollywood os fazia nos anos 70 e 80. Absolutamente a não perder por quem tinha saudades deles.

Por Eurico de Barros

  • Filmes
  • Animação
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

Esta continuação da longa-metragem animada de 2016 consegue ser-lhe superior. Os realizadores Chris Renaud e Jonathan del Val contam duas histórias em paralelo, uma envolvendo o cãozinho Max, o seu amigo Duke e a nova família da sua dona, Katie, durante uma visita ao campo; e a outra metendo ao barulho o frenético coelho Snowball, a cadelinha Gidget, Daisy, outra cadela, e um desvairado exército de gatos, que, na cidade, vão salvar uma cria de tigre presa num circo itinerante, e atam jubilatoriamente estes dois enredos no final da fita. A animação continua a ser subtilmente estilizada. as personagens permanecem pandegamente variadas e bem caracterizadas, e os gags são distribuídos com abundância e qualidade. Esta parte 2 até tem Harrison Ford a fazer a voz de um cão, o imponente e imperturbável Rooster.

Por Eurico de Barros

Publicidade
  • Filmes
  • Drama
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

O realizador e encenador russo Kiril Serebrennikov evoca e celebra a sua geração neste filme ora melancólico, ora enérgico, passado na Leninegrado do início dos anos 90, quando dois grupos pop/rock de culto, os Zoopark de Mike Naumenko, e os Kino de Viktor Tsoi, faziam entrar alguma luz de alegria, agitação, revolta e esperança no quotidiano dos jovens. Verão é um filme político, mas não de forma estridente e óbvia, recriando, sem revanchismo e com delicadeza de toque e de sentimentos, esse tempo de declínio da URSS e do seu regime de cinzentismo totalitário, em que quem ouvia, tocava e respirava rock, mesmo sob todos os constrangimentos e todas as repressões, procurava ser minimamente feliz através dele. E tanto fazia que fosse Marc Bolan ou Bob Dylan, os Doors ou os Blondie, Mott the Hopple ou Kraftwerk.

Por Eurico de Barros

  • Filmes
  • Drama
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

O quarto filme rodado por Jafar Panahi à revelia das autoridades iranianas tem, de novo,o próprio realizador como protagonista. Panahi e a famosa actriz iraniana Behnaz Jafari metem-se num jipe e rumam à montanhosa região da fronteira com o Azerbaijão, para investigarem da veracidade de um vídeo que receberam, em que uma adolescente dali parece suicidar-se, ante a recusa da família em a deixar ser actriz. Com meios mínimos e baralhando mais uma vez a fronteira entre realidade e ficção, Panahi assina uma fita admirável sobre três gerações de actrizes iranianas, sobre os absurdos da situação da mulher no Irão e sobre as carências, os contrastes e os paradoxos de um país onde as pessoas são hospitaleiras e generosas, mas também apegadas a costumes rígidos que podem muitas vezes ser implacáveis e arruinar as vidas de quem não os quer seguir.

Por Eurico Barros

Publicidade
  • Filmes
  • Animação
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

Chris Butler, o realizador de ParaNorman (2012) assina esta homenagem (e paródia) aos filmes de aventuras sobre explorações a lugares remotos ou míticos, que envolve Sir Lionel Frost, um aventureiro vitoriano, e o Pé-Grande, que se revela um monstro amigável e jovial. A animação é deliciosamente expressiva e o humor vai do nonsense à espirituosidade seca e ao slapstick.

Por Eurico de Barros

  • Filmes
  • Família e crianças
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

Nesta versão em imagem real e efeitos especiais, Tim Burton manteve-se fiel ao essencial do clássico de 1941. O realizador evita uma aproximação verista à história, que poderia comprometer a credibilidade do elefantezinho voador e, através de uma leve estlização, transforma Dumbo numa fantasia de rosto “realista”.

Por Eurico de Barros

Publicidade
  • Filmes
  • Documentários
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

O francês Julien Faraut foi resgatar dos arquivos um documentário didáctico em 16mm sobre John McEnroe feito nos anos 80, em Roland Garros, por Gil de Kermadec, então director técnico nacional do ténis francês, bem como imagens inéditas do mesmo, e construiu este filme sobre o irascível prodígio do ténis, ajudado por opiniões de Jean-Luc Godard e do crítico de cinema Serge Daney, ambos ferrenhos da modalidade.

O resultado é um documentário inteligente, elegante e incisivo, que explica o talento sobre-humano de McEnroe e a sua fome de perfeição, analisa a sua psicologia profunda, demonstra que o seu lendário mau feitio fazia parte da sua identidade de jogador e como ele se alimentava do clima hostil e de riso que se criava em seu redor nos jogos. E Faraut contraria ainda os habituais estereótipos e lugares comuns preguiçosos sobre o campeão americano dos courts.

Por Eurico de Barros

  • Filmes
  • Drama
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

Passado entre 2001 e a actualidade, o filme documenta o efeito da acelerada e violenta transformação da China numa superpotência. Jia Zhangke desenvolve a história num quadro narrativo que comunga do policial e do melodrama tradicional, pondo em cena um mafioso (Fan Liao) de uma cidade do interior e a sua devotada namorada (Tao Zhao, mulher do realizador e sua actriz favorita), cujas vidas são radicalmente sacudidas por poderosas forças políticas, económicas e sociais que os rodeiam. Mas a grande história do país nunca se sobrepõe à das personagens.

Por Eurico de Barros

Publicidade
  • Filmes
  • Drama
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

O oscarizado realizador iraniano Asghar Farhadi, autor de Uma Separação e O Vendedor, foi a Espanha filmar, com Penélope Cruz, Javier Bardem e Ricardo Darín à frente de um óptimo elenco, esta história que parecer ser, à superfície, um thriller sobre o rapto de uma adolescente numa vila castelhana. Mas este é, na realidade, o cabide narrativo onde Farhadi pendura o seu gosto pela observação e desmontagem meticulosa do desconcertante e imprevisível mecanismo de funcionamento das relações e dos conflitos humanos. A fita podia ser um pouco mais curta e por vezes, menos demonstrativa, mas a enorme qualidade da escrita, as interpretações e a inflexível tensão dramática que o realizador instala e não deixa afrouxar, compensam plenamente estas pequenas arestas.

Por Eurico de Barros

  • Filmes
  • Drama
  • 4/5 estrelas
  • Recomendado

Baseando-se em situações reais, Yorgos Lanthimos filma aqui
a história da feroz rivalidade entre duas mulheres que também eram parentes, Sarah Churchill, duquesa de Malborough (Rachel Weisz), e a sua prima afastada e arruinada, a baronesa Abigail Masham (Emma Stone), que disputaram o exclusivo dos favores, da intimidade, da confiança e dos privilégios da Rainha Ana de Inglaterra (Olivia Colman), no início do século XVIII, e terão tido relações lésbicas com a monarca. A Favorita, filme candidato a 10 Óscares, comunga das produções históricas de prestígio da BBC, de filmes como Tom Jones, de Tony Richardson, e Barry Lyndon, de Stanley Kubrick, mas também do humor de um Black Adder. Weisz, Stone e Colman sugam os seus papéis até ao tutano, fazendo com que a fita pertença plenamente a este majestoso trio de actrizes.

Por Eurico de Barros

Publicidade